“Se tivesse que comparar o meu marido a alguém seria ao Cary Grant”

Maria Cavaco Silva saiu de Belém há mais de um ano e meio, deixando para trás uma vida pública de quase 40 anos. Na primeira entrevista desde que deixou a Presidência, a meses de fazer 80 anos, revela que não vai escrever as suas memórias e adianta que o segundo volume das memórias do marido…

Sentiu algum alívio no seu último dia no Palácio de Belém?

O maior alívio que senti não foi agora. Foi há mais anos e até foi público com uma fotografia, até engraçada, que diziam que valia mil palavras. Quando o meu marido perdeu as eleições para Presidente em 1996, é publicada uma fotografia minha com um sorriso enorme. Aí (em ‘96) é que senti verdadeiramente um alívio. Tinha sido um tempo muito intenso. Havia um certo cansaço. Pensei: ‘agora acabou’. Estava enganada, mas não sabia. Nesse momento, esse alívio é provocado por uma grande sensação que tinha definitivamente acabado.

Essa pausa [entre 1996 e 2006] soube-lhe bem?

Não sabia que era uma pausa, pensei que era definitivo, mas soube-me muito bem.

E esse alívio, ainda que temporário, foi maior que o alívio sentido no último dia em Belém?

Foi maior. Porque no último dia em Belém, já aqui  [convento do Sacramento] vinha compor as coisas, já tinha um grande entusiasmo porque ia ter uma vida mais livre e estava muito contente por poder pôr em evidência algumas coisas muito antigas. Sabia que seria uma vida e uma fase completamente diferente. As oito décadas de vida seriam celebradas num espaço que me agradou imenso. 

Está contente no novo espaço?

Muito contente. O espaço não é meu, é do meu marido, que é suficientemente amável para me deixar usá-lo com ele.

Como é hoje o seu quotidiano?

Não tem um padrão como tinha antes. É mais solto. 

É menos monótono, é isso?

Não… Nunca tive uma vida monótona. Nem quando estávamos em São Bento, nem quando estávamos em Belém. Em São Bento, além do muito que se passava, dava muitas aulas na Universidade Católica, que era o meu dia-a-dia, marcado pelo horário típico de uma professora. Tinha um horário muito carregado nessa altura. Em Belém, tinha muitos pedidos de entrevistas e de presenças e isso criava uma dinâmica, nem sempre igual. Ao longo desses dez anos, segui um tema fundamental: as deficiências, as pessoas com grandes dificuldades. Foi um tema que sempre me interessou muito. E quando cheguei a Belém, decidi logo que seria nessa área que queria estar e onde queria levar o meu sorriso. Hoje não tenho a visibibilidade que tinha, mas aprendi o valor da presença junto de quem mais precisa.

Sente falta dessa visibilidade?

Não, nenhuma. A ausência de visibilidade é muito agradável.

A vida da mulher de um primeiro-ministro mudou desde esse tempo?

(pausa) A mulher do primeiro-ministro que, por acaso, também é professora. Não me parece que seja uma vida que tenha mudado muito. A mulher do primeiro-ministro faz o mesmo que a mulher do primeiro-ministro fazia: trabalha. Não tinha intervenção política, até porque não gostava. 

Mas ser mulher passou a ser um ativo na praça pública?

A mulher tem mais lugares políticos do que tinha no meu tempo, sim. E ainda não são suficientes.

Faz falta uma primeira-dama ao Palácio de Belém?

Vou ser sinceríssima. Todos me dizem, os que lá estão, que faz imensa falta. As pessoas estavam habituadas a uma presença feminina constante. Durante 30 anos foi assim. As pessoas tinham alguém com quem podiam falar de maneira diferente. Passava por lá e perguntava ‘como estão as coisas’ e isso desapareceu. Externamente, também acho que se perde do ponto vista cultural, social, protocolar. Até na fotografia faz falta.

Qual foi o momento que a mais marcou como primeira-dama?

(pausa) Estou a pensar… Houve uma coisa muito bonita… Em Maputo, numa escola onde já tinha trabalhado nos anos ‘60. Já a tinha visitado quando o meu marido era primeiro-ministro e estava numa situação muito abandonada, muito fechada. Quando lá regressámos em visita de Estado, em 2008, essa escola estava cheia, estava viva outra vez. Fiquei emocionada. Comoveu-me regressar ali com paz. Foi bonito estar com eles, falar com uma geração nova, incentivá-los para essa paz. Uma senhora do corpo docente veio ter comigo e disse-me que tinha sido minha aluna, que era professora de português por causa disso. Esse foi um momento muito forte para mim. 

E em mais de 30 anos de vida pública, de São Bento a Belém, que personalidade mais a impressionou?

O Papa São João Paulo II, o Papa Bento XVI, o Papa Francisco. Bem, só estou a falar em Papas…Acredito muito que em cada época a Igreja acaba por ter o Papa que precisa. Com o Papa Francisco só nos encontramos uma vez. E tenho uma história engraçada. Fomos convidados para a missa inaugural e calhou ser no dia de São José, que é o meu aniversário. Foi uma prenda de anos para mim. O meu marido, que é uma pessoa muito contida como sabem, fica muito entusiasmado e diz a toda a gente ‘a minha mulher faz hoje anos’, o que me deixou algo espantada. O monsenhor que era chefe de protocolo acompanhou-nos ao cumprimento do Papa e disse-lhe logo ‘a mulher do Presidente faz hoje tantos anos’ e por acaso tirou um – o que achei simpático – mas a reação do Papa Francisco foi encantadora. Virou-se para o monsenhor, fuzilou-o com o olhar e disse, numa saída deliciosa, mas muito pouco papal: ‘Nunca se diz a idade de uma senhora’. É das histórias mais engraçadas que tenho. Há outras personalidades marcantes, claro, mas foi o meu marido a ter um contacto mais próximo como elas, como, por exemplo, Helmut Kohl. 

Os níveis de popularidade nem sempre lhe foram benéficos. Sentiu-se ressentida ou magoada com os portugueses?

Magoada com os portugueses, não. A democracia é assim, com altos e baixos. O que posso dizer é que por vezes me senti incomodada com comentários extremamente injustos e mentirosos. São momentos em que faltaram limites. Hoje em dia, parece que desapareceram. Passou a ser fácil destruir alguém na praça pública. Passei a estar sempre de pé atrás quando leio alguma coisa. As pessoas têm medo de usar a palavra ‘mentira’ quando algo não é verdade. Dizem que é uma ‘inverdade’. Esse é um termo que não reconheço.

No livro do seu marido – o primeiro volume das memórias presidenciais – nota-se alguma tensão…

O próximo é capaz de ser pior ainda.

Acha que sim?

Claro. A crise. Foi muito dolorosa. E o meu marido levou com ela em cima porque era quem aguentava os cavalos. Não andava aí a fazer festas.

Mas quando diz que foi dolorosa está a referir-se ao país, à Presidência ou a ambos?

Ao país, sempre ao país. Repare que nós somos felizes um com o outro, temos um base afetiva muito sólida, as coisas vencem-se. Mas para o país aquilo foi devastador. Vi de perto na ação social.

Alguma vez, na leitura que fez antes de o livro ser publicado, se sentiu impelida a sugerir alguma moderação no texto? A serenar alguma rispidez?

Não vou responder. Private matters…

Pensa em escrever suas memórias?

Vou escrevendo, mas só para os meus netos e para os meus filhos. As memórias da época que eles não conheceram são a história que lhes quero contar: o princípio, o mundo tão diferente, sem telefone, sem computadores.
Quais os seus planos para o futuro? 

Vou responder-vos com Agostinho da Silva: não faças planos para a vida para não atrapalhares os momentos que a vida tem para ti.