Sucata. Portaria coloca mais de 700 empresas em risco

Alteração da lei que ontem entrou em vigor obriga os particulares a terem atividade aberta para poderem vender resíduos nas sucatas. APOGER teme pelo destino de oito mil empregos diretos

Se estava a pensar compensar os gastos das festas com a venda de algum material velho que pudesse ter por casa, tome atenção que as regras mudaram. Entrou ontem em vigor uma portaria aprovada em abril de 2017 que obriga à criação de uma guia de acompanhamento de resíduos em formato eletrónico (e-GAR) para todos os materiais entregues nos operadores de gestão de resíduos, vulgarmente conhecidos como sucatas ou ferros-velhos. A portaria 145/2017 vai pôr em prática uma lei de 1997 que considera que todos os resíduos urbanos dos particulares – que produzem menos de 1100 litros de resíduos por dia – são da responsabilidade dos serviços de recolha das câmara municipais.

 A questão complica-se quando se fala de materiais com valor económico, como os metais e as fileiras de material separado (por exemplo, papel, alumínio, plástico, ferro). Existem gestores de resíduos urbanos licenciados pelo Estado para fazer o tratamento destes materiais, o que resultava em transações comerciais entre as pessoas que separavam o material e os empresários que gerem as sucatas. A partir de ontem, é preciso criar uma guia eletrónica de acompanhamento de resíduos (e-GAR) para qualquer transação com os operadores. E, para criar uma e-GAR, é preciso ter atividade aberta nas Finanças.

Segundo a lógica defendida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), “um cidadão particular (alguém que não exerce uma atividade económica) tem de enviar os seus resíduos às entidades gestoras dos serviços municipais”. A obrigatoriedade de entregar os resíduos nas câmaras municipais não está a ser bem vista pela comunidade de sucateiros.

Quitéria Antão, presidente da Associação Portuguesa dos Operadores de Gestão de Resíduos e Recicladores (APOGER), explica que a “e-GAR tem por base uma lei que já tem 20 anos e que nunca foi aplicada porque, no fundo, não tinha grande sentido e nem as câmaras podiam dar resposta. Portanto, os operadores privados foram-se licenciando, o Estado licenciou-os, recebeu do licenciamento, pô-los a funcionar e taxou-os com impostos” e agora impede-os de receber o material.

Francisco Teixeira, diretor do departamento de comunicação e cidadania ambiental da APA, reconhece que existem pessoas que “exercem de modo informal atividades de recolha, não se encontrando registados para essa atividade económica”, no entanto acredita que a implementação da portaria é uma oportunidade para “regularizar a situação fiscal e ambiental e passar a enviar os resíduos como e-GAR para operadores de gestão de resíduos”.

“Esta lei vai fazer com que haja muita economia paralela”, alerta Quitéria Antão, “porque uns operadores não vão receber, outros vão receber em economia paralela, a maior parte das pessoas vai abandonar, como sempre abandonou, em qualquer lugar porque não vão andar nem 2 nem 20 quilómetros para entregar as coisas à câmara de graça”.

“O que eles entendem é que até aos 1100 litros [de resíduos por dia] é obrigatório entregar na câmara quando na realidade não é isso que diz a lei”, continua Quitéria. “A lei o que diz é que o produtor está isento dessa responsabilidade e a câmara é que tem a responsabilidade”. Ou seja, segundo a interpretação da APOGER, o proprietário dos resíduos pode optar por entregar os seus resíduos aos serviços municipalizados, através dos contentores e ecopontos espalhados pelas cidades, ou pelos serviços de recolha existentes em alguns concelhos, ou aos operadores de gestão de resíduos licenciados para o efeito.

Informações falsas 

Para confirmar a situação, o i simulou a intenção de vender uma bicicleta a um sucateiro e entrou em contacto com o número indicado pela APA para esclarecimento de dúvidas. O operador informou que a venda pode ser efetuada se o resíduo não ultrapassar os três metros cúbicos de tamanho: “Não é preciso passar e-GAR nem deter atividade aberta se vai vender uma bicicleta”.

No entanto, esta informação é falsa e se a seguir arrisca-se a uma multa de 2 mil euros. A APOGER explica que “se a bicicleta for um resíduo, [o proprietário] não a pode vender e nós [gestores de resíduos] não a podemos registar”. A exceção dos três metros cúbicos é referente aos resíduos das pequenas obras, como vem na portaria, citada por Francisco Teixeira: “só existe isenção para aquilo que vai para os municípios”. “Agora que viu que os resíduos valem dinheiro, a câmara ficou interessada em ficar com os resíduos”, afirma Quitéria Antão.

Mais de 700 empresas em risco  

A APOGER teme pelo futuro das mais de 1600 empresas de gestão de resíduos, e pelos 8 mil empregos diretos, dos quais “30% altamente qualificados”. Do total de empresas, “709 estão licenciados para receberem fileiras urbanas”, explica Quitéria.

Posta em números, a situação envolve “mais de oito milhões de euros de taxas já pagas ao Estado, mais de 1,6 milhões de euros em investimento em instalações e condições técnicas de laboração”. “As pequenas e médias empresas de resíduos, cujo volume de negócios assenta essencialmente na receção e valorização das fileiras urbanas, irão desaparecer”, afirma Quitéria Antão lembrando que as sucatas em questão, “normalmente, estão no interior do país e funcionam como catalisadores de emprego”.

“Como é que vamos honrar os nossos empréstimos? O que é que eu vou dizer aos meus trabalhadores? Despedimento coletivo?” As questões estão, provavelmente, a ser colocadas pela maioria dos gestores de resíduos, mas neste caso refletem as preocupações de um empresário do negócio da sucata que trabalha diretamente com particulares. Segundo explicou ao i, a parcela representa entre 70 a 80% do volume total de negócios, o que envolve cerca de 16 mil pessoas. “Querem que a senhora de 80 anos ponha as panelas no lixo?”, questiona, revoltado, acrescentando que só vê “as empresas que tratam do lixo a beneficiarem com isto”.

Os “metais ferrosos e não ferrosos têm um elevado valor comercial, mas não um volume significativo [de vendas]”, afirma Francisco Teixeira. O diretor de comunicação da APA afirma que “o influxo de proveitos para os sistemas de gestão de resíduos urbanos da venda desses resíduos irá contribuir para a diminuição da tarifa a pagar pelos respetivos munícipes”.

Para outro empresário do mesmo ramo, o problema vai além das falências. “Há centenas de pessoas – reformados, pessoas mais pobres, sem-abrigo, ciganos, drogados – que andam à sucata e é isso que os safa. Se deixarem de ter para comer, o que é que esta malta vai fazer? Vai roubar”, alerta o gestor.

A questão dos roubos foi uma das preocupações da APA para avançar com a legislação, mas num âmbito diferente. Francisco Teixeira identifica os “furtos” de metais com valor económico como um problema que será resolvido com as e-GAR. Porém, Quitéria Antão não aceita que continuem a “denegrir o nome dos operadores privados”. A presidente da APOGER afirma que a APA se está a aproveitar disso para “à conta das acusações que fazem aos operadores poderem usufruir de uma vantagem no mercado”. “Em 2012 apoiamos uma lei contra a recetação dos metais”, explicou, acrescentando que “as pessoas começaram a registar tudo o que entra [nas sucatas]. Quem não fizer o registo é multado”, remata.

A APOGER nunca se manifestou contra a informatização do processo nem contra as e-GAR. O que a associação defende é a criação de uma plataforma onde seja possível inserir informações referentes aos resíduos dos particulares.

De forma a evitar a situação, a APOGER avançou com uma consulta pública à portaria onde sugeria alterações ao documento. “A maioria das sugestões não foi tida em conta”, diz a presidente. A associação apresentou também uma proposta com dois cenários sugeridos: manter a situação atual, com faturas de receção de resíduos em transações com particulares que seriam isentados da obrigatoriedade da e-GAR – à semelhança das empresas isentas de registo na plataforma; ou a criação de um sistema de controlo de transações com particulares, dentro da plataforma.

Avançaram ainda com uma petição pública, e que já conta com 1809 assinaturas, onde a principal intenção é alterar a e-GAR. “A Comissão Europeia (CE), reconhecendo o valor, a importância social, ambiental e económica dos operadores de gestão de resíduos, propôs já a neutralidade de gestão do operador, público ou privado, relativamente à gestão dos resíduos urbanos, na alteração da Lei-Quadro dos Resíduos”, pode ler-se. A CE é o próximo passo. A APOGER vai fazer uma exposição com o objetivo de promover a neutralidade dos resíduos, que está a ser revista a nível europeu.