Javier Pedraza: ‘A canábis medicinal é para doentes a sério, não é para hippies’

Médico fundador do Observatório Espanhol de Canábis Medicinal e da Cannativa – Associação de Estudos sobre Canábis, fez a especialidade de medicina familiar em Sintra e trabalha no Hospital de Beja. Ajuda a clarificar o que está em jogo no debate que esta semana baixou à comissão parlamentar de saúde, com as propostas de lei…

Trabalha atualmente no Hospital de Beja. Como surgiu a hipótese de vir para Portugal?

Fiz a especialidade de Medicina Familiar no centro de saúde de Sintra, pelo que estive a morar em Lisboa nos últimos dez anos.

Em Espanha já se usava canábis para fins medicinais? 

O meu primeiro doente a usar canábis medicinal foi no ano 2001, enquanto estudava na Faculdade de Medicina de Badajoz. O Infarmed aprovou há já alguns anos um medicamento à base de canábis [Sativex], para ser receitado por neurologistas, mas não tenho conhecimento de nenhum neurologista português a prescrevê-lo. Em Espanha os doentes tem acesso a canábis medicinal por via das associações de utilizadores de canábis há cerca de dez anos.

Em Espanha há mais medicamentos à base de canábis à venda?

Não, também só temos o Sativex, o resto os doentes têm de procurar. A única diferença são esses clubes sociais de canábis que assentam no cultivo partilhado: um conjunto de pessoas adultas que cultivam para auto consumo. Em Portugal nenhum tipo de consumo é legal, as sementes estão proibidas, o que fecha completamente as portas. Mas não estou a ver os doentes a pedir para cultivar. Quando diagnosticam um cancro a uma pessoa e lhe dizem que vai começar a quimioterapia dentro de três semanas, ela não pensa em cultivar uma planta que vai demorar três meses a crescer. Pensa é em ir ao médico e que este lhe possa prescreve um produto que lhe alivie as náuseas e os vómitos.

A Ordem dos Médicos disse esta semana estar contra o uso de canábis fumada. Como vê esta posição?

A canábis fumada está fora do uso terapêutico.

Não deve ser permitido?

O que digo é: um doente que não tenha a oportunidade de ter acesso a um vaporizador, que é um dispositivo médico que aquece a matéria vegetal até os componentes ficarem voláteis – que é como se utiliza a canábis medicinal quando se usa a planta medicinal, em concreto a flor – em última instância pode fumar, mas ninguém pensa que é suposto a canábis medicinal ser uma pessoa fumar charros. Da mesma forma que temos morfina na forma intravenosa, em comprimidos, e não dizemos aos doentes para fumar a morfina em prata. Também podia resultar, mas quando se pensa em dar morfina a um doente ninguém vai dizer isso.

A ideia de auto cultivo faz sentido?

Faz sentido numa fase mais tardia, não numa fase inicial. A maioria dos doentes que utiliza canábis não quer cultivar plantas em casa, quer é ter acesso a canábis medicinal de qualidade, controlada, livre de pesticidas, de fungos e não querem ter problemas legais pelo facto de terem de transportar estes produtos. É disto que os doentes precisam, não é de uma autorização para cultivar em casa. A canábis medicinal em grão já é exportada para 12 países europeus e usa-se como qualquer outro medicamento: as agências de medicamentos dos países devem garantir a importação como qualquer outro medicamento que não se produza no país.

Em que casos pode ser necessário o auto cultivo?

Alguns doentes podem descobrir que uma determinada espécie funciona melhor para eles: não quer dizer que as outras não sirvam, mas há uma que tem mais efeito. Se não há um produto no mercado, percebo que o doente possa querer ter acesso através do auto cultivo. Agora se uma senhora está cheia de dores e ouve falar da canábis medicinal, o que quer é que o médico lhe prescreva um frasquinho de gotas para pôr debaixo da língua ou comprimidos.

Em que tipo de doenças considera haver mais-valias clínicas?

Doentes de foro oncológico, doentes com dor crónica resistente a tratamentos convencionais e doenças do foro neurológico.

A canábis e derivados funcionam como tratamento ou apenas no alívio de sintomas?

A canábis funciona como tratamento no alívio dos sintomas de varias doenças. Em algumas, apresenta maior eficácia e um melhor perfil de segurança, como no caso das epilepsias farmaco-resistentes nas crianças

O parecer da Ordem dos Médicos disse esta semana não haver evidência para algumas doenças, grupo em que incluiu a epilepsia. Por que diz o contrário?

Tenho a certeza de que se basearam no último relatório da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, que diz que não há evidência do uso de canabinoides em epilepsia. A questão é que, no caso da epilepsia, a definição para ter eficácia era garantir um ano sem nenhuma crise epilética. Haverá poucos medicamentos a conseguir isso. Agora se tem um pai com um filho que tem 90 crises epiléticas, começa a fazer o canabidiol [CBD, um dos componentes da cannabis sativa] e passa a ter nove crises epiléticas, é perguntar a esse pai se é eficaz ou não. É mais eficaz do que qualquer coisa que possam ter experimentado. Há que ler os estudos completos, não basta ler os resumos. Quando a Alemanha, a República Checa, Israel, Canadá, Alemanha e todos os países que têm programas de canábis medicinal avançaram, se calhar é porque estudaram o assunto. Não acredito que países evoluídos avançassem sem evidência científica.

Como viu o debate no Parlamento?

Não vi ainda tudo, mas ouvir a Dra. Isabel Galriça Neto dizer que isto é uma pseudomedicina quando o Governo já autorizou a maior plantação de canábis da Europa… [a plantação da Tilray, em Cantanhede, para exportação].

Mas os projetos de lei em cima da mesa não restringiam o fumo.

Prevê-se a prescrição médica e dispensa na farmácia. Quando um doente vai a uma farmácia levantar um medicamento, o que nos garante que não transforma aquilo em pó, mistura na água, mete a ferver e injeta? A via de autorização tem de ser esta. Há sempre o risco de um doente fazer maluquices, mas não estou a ver uma doente idosa a fumar charros. Pensar que a canábis medicinal é para doentes fumarem charros é muito mal intencionado. Estamos a falar de doentes a sério, de pessoas com problemas oncológicos, não estamos a falar de hippies que têm uma dor nas costas e precisam de fumar charros porque dizem que o benuron lhes faz mal ao estômago.

Pode dar um exemplo?

Uma mulher de 30 e poucos anos, que nunca experimentou canábis, de repente tem um cancro da mama, tem de fazer quimioteapia e tem náuseas e vómitos horríveis que não consegue controlar com outros medicamentos. Precisa de um comprimido, de gotas debaixo da língua ou da vaporização com um dispositivo médico. É isto que é a canábis medicinal. Se os meus colegas não querem ver isso, ou têm muito má intenção ou um grande grau de desconhecimento. 

Em termos de legislação, o que lhe parece que é essencial garantir? 

É essencial garantir que os doentes não têm problemas legais no transporte dos seus medicamentos na via pública. O maior risco está em existir um controlo dos doentes que usam canábis medicinal, no sentido de evitar que existam ‘falsos doentes’ que utilizem este estatuto para práticas ilegais. Deve existir um ‘Registo Nacional de Doentes de Canábis Medicinal’.

A dispensa fazia mais sentido nas farmácias ou nos hospitais? 

A dispensa por parte das farmácias hospitalares seria um bom início, ou seja, doentes do foro oncológico poderiam levantar a sua canábis medicinal no IPO, os doentes com dor crónica nas unidades de dor, etc.

Tende a haver alguma colagem entre o uso medicinal e o uso recreativo da canábis, sendo que tem havido alguns alertas de que os canabinoides da droga são cada vez mais potentes. Como vê o uso recreativo da canábis e o seu impacto na saúde? 

Nenhuma pessoa com menos de 21 anos deveria consumir canábis de forma recreativa se quiser minimizar, já que o sistema endocanabinoide, que é ativado pela canábis, é responsável por guiar o crescimento e desenvolvimento do sistema nervoso.

É a favor da liberalização do uso recreativo ou são legítimos os receios que levam a que esta seja considerada uma droga ilícita?

A experiência acumulada durante décadas diz-nos que a ilegalidade das drogas provoca mais problemas sociais e médicos do que a própria droga.

Sente que os médicos estarão abertos a experimentar esta alternativa da canábis medicinal?

Sinto que estão com vontade de receber uma formação adequada para poderem prescrever e recomendar.

E os doentes, nomeadamente a população mais idosa, estará aberta ao uso destes produtos?

Desde que sejam eficazes para as suas doenças e prescritos pelo seu médico, acho que sim.

Em termos de prescrição, há contraindicações que os médicos têm de ter em conta?

Doença cardíaca descompensada, hipotensão e predisposição familiar para a esquizofrenia são as principais contraindicações para o uso da canábis.

A Tilray estima que, dentro de dez anos, haverá 10 milhões de doentes na Europa a usar produtos à base de canábis. Imaginando o mesmo horizonte temporal, como antecipa que será o uso da canábis na medicina?

Mediante dispensa na farmácia com receita, como qualquer outro medicamento, existindo diversas apresentações, desde a forma herbal até comprimidos, supositórios, etc.