Dissertação sobre o gargarejo

A imprensa amiga poupou António Costa, com a amável tolerância que devotava a Mário Soares

Um amigo costuma dizer: «Temos uma hora de burrice por dia. Felizmente, a maior parte das vezes, ela vem quando estamos a dormir». Não estou seguro de ser bafejado por tal sorte, mas há uma certeza consolidada pelos anos: as minhas ideias mais frescas chegam na hora do duche matinal. 

Entre amigos, passou até a ser comum recomendar um duche sempre que algum se saia com um dito infeliz. Certa vez, estando um médico na mesa, corrigiu: «Melhor que o duche são os gargarejos» — e todos nos rendemos à superioridade do gargarejo. Poupar os outros às nossas patetices é melhor do que perder a ‘ideia fresca’ que pode sempre ser recuperada no duche seguinte. 

Falando de argoladas, muitas vezes recordámos o ‘Pai Tomás’ (para quem não viveu esses tempos, o ‘venerando Chefe do Estado’ de antes do 25 de Abril) e as suas célebres tiradas, feitas de primarismo e redundâncias, quando não tropeções merecedores de palmatoadas. 

Foi o caso de, em dias consecutivos, ter inaugurado dois hotéis de 5 estrelas na ilha da Madeira, um no Funchal e outro no Machico. 

Na segunda inauguração, empolgado pelo ambiente, o velho almirante saiu-se com esta: «Não há dúvida de que estamos numa terra de progresso, ainda ontem inaugurei uma moderna unidade hoteleira, com x quartos, x metros quadrados de construção e x empregados, e hoje estou aqui a inaugurar outro hotel que ainda é melhor que o de ontem, porque… e lá veio a quantidade de quartos, metros quadrados e empregados.

Lembrei-me de Américo Thomaz quando vi o primeiro-ministro, na recente visita a Marrocos, debitar este mimo de elegância diplomática: «Ditou a sorte que Portugal e Marrocos estejam no mesmo grupo do campeonato do mundo de futebol, onde estão também a Espanha e o Irão. Deixo aqui os meus votos para que sejam os nossos dois países a passar à fase seguinte… assim eliminando um vizinho com quem partilhamos fronteiras e rios, e uma economia que namoramos em permanência. 

A gafe tem o tamanho de um elefante, mas a imprensa amiga poupou António Costa, com a amável tolerância que devotava a Mário Soares, nos seus constantes deslizes. Já Cavaco Silva, ‘filho de um Deus menor’, foi zurzido sem piedade e tornou-se alvo de gozo por causa de um inócuo bolo-rei, enquanto o sucessor mastiga onde quer, e como quer, sem que ninguém lhe aponte o dedo. E muito bem, acrescente-se. 

Claro que o primeiro-ministro sabe que ninguém vence os socialistas na guerra pelo controlo da informação. 

Foi sempre assim mas, com a trupe de Sócrates, tornou-se uma força imbatível nos media tradicionais, nas redes sociais e nos programas de antena aberta nas rádios e nas televisões. Simplesmente, às vezes o Diabo tece-as e o ridículo acaba no anedotário nacional, reduto da resistência popular e, por isso mesmo, impossível de domesticar.

Senhor primeiro-ministro, quer um conselho de amigo? Quando se sentir empolgado, por exemplo, quando achar que «2017 foi um ano saboroso»… gargarejos! Muitos e prolongados gargarejos!