Jean-Claude Brisseau. Depois do homem, que lugar para a sua obra?

A divulgação nas redes sociais de uma sessão de cinema programada para lançar um debate que, no tempo do #MeToo, se torna cada vez mais urgente – o da separação entre o homem e a sua obra – tornou-se mais polémica do que o previsto quando, depois de várias denúncias, a página do Nimas desapareceu…

Por estes dias, Jean-Claude Brisseau estreou em França “Que le diable nous emporte”, o seu último filme depois do sucesso de “A Rapariga de Parte Nenhuma”. Estreia que esteve para ser acompanhada de uma retrospetiva à sua obra na Cinemateca Francesa, adiada sem data depois da onda de protestos de organizações feministas que se apoiaram no movimento #MeToo para tentar impedir um outro ciclo, dedicado à obra de Roman Polanski, em novembro. Em reação a isso – o diretor da Cinemateca Francesa veio entretanto esclarecer que a intenção de programar a retrospetiva à obra de Brisseau se mantém, mas ainda sem data –, e defendendo que a obra não deve ser confundida com o homem que a produz, o site português de cinema “À Pala de Walsh” decidiu programar, a propósito do seu quinto aniversário, uma sessão com aquele que, para os seus críticos, foi consensualmente um dos filmes mais marcantes dos últimos anos: “A Rapariga de Parte Nenhuma”, de Brisseau, justamente.

Para juntar à sessão (quarta-feira às 19h30) no Espaço Nimas, da Medeia Filmes, a exibidora de Paulo Branco, organizou-se um debate desafiando as reações que a intenção de programar um conjunto de filmes do realizador, em 2005 e 2006 condenado por assédio sexual a três atrizes, colheu em França: “A criação e o artista: como separar a obra do seu criador”. “Mostrar este filme hoje é um statement”, nota ao i Luís Mendonça, coeditor do “À Pala de Walsh” e moderador da conversa que se segue à sessão, com Cíntia Gil, diretora do Doclisboa, e Vasco Câmara, crítico de cinema e editor do suplemento de cultura do “Público”.

Uma sessão à partida polémica que durante o último fim de semana chamou ainda mais atenção quando a página do Espaço Nimas desapareceu do Facebook depois de um post de promoção do filme e da conversa. Aparentemente porque no cartaz, o mesmo que foi utilizado para a promoção internacional do filme que em 2012 estreou em Locarno, a atriz que o protagoniza aparece nua. E não só a página do Nimas foi removida – António Costa, da Medeia Filmes, confirmou ao i que só à hora de almoço de ontem conseguiu recuperar o acesso – como o evento que tinha sido criado para a sessão, na página da Medeia. As publicações desapareceram e entretanto foi criado um novo evento, com o fundo a negro em vez do cartaz. Também Luís Mendonça perdeu durante o fim de semana o acesso à sua página pessoal depois de ter promovido o evento.

“Recebemos uma notificação a dizer que a página seria removida por uma publicação com nudez explícita”, diz António Costa, que sublinha tratar-se do cartaz que foi usado na promoção internacional do filme, de resto classificado para maiores de 12 anos.

“O que queríamos era provocar um debate sobre a utilidade – no nosso caso, o desejo – da separação do criador da sua obra. Como coletivo, patrocinamos a ideia de que deve haver uma separação total, por isso é que exibimos o filme.” No tempo do #MeToo, a discussão impõe-se também para António Costa – foi aliás a Leopardo Filmes, de Paulo Branco, e por isso associada à Medeia, que distribuiu em Portugal o último filme do realizador francês. E que em novembro manteve também em sala o rejeitado “I Love You, Daddy”, que marcou a estreia na realização do comediante Louis C.K., nesse mesmo mês acusado de se masturbar em frente a várias mulheres.

“Não é o #MeToo que queremos discutir”, nota António Costa. “É se devemos alterar a nossa visão ou usufruto de uma obra artística por aquilo que um artista faz enquanto cidadão, numa altura em que algumas vozes começam a querer fazer releituras, em relação ao ‘Blow Up’, por exemplo”, de Michelangelo Antonioni. Filme de 1966 que – ao lado da obra de Jean-Claude Brisseau ou de Roman Polanski ou, noutras formas de expressão artística, de Schiele ou de Balthus – citava o conhecido como “manifesto Deneuve”, publicado este mês no “Le Monde”, criticando a recente onda revisionista motivada pelo #MeToo. “O filósofo Ruwen Ogien defendia a liberdade de ofender como essencial para a criação artística”, escreveram na carta as 100 mulheres que, do mesmo modo, reivindicavam a “liberdade de importunar” como “indispensável” à liberdade sexual. “A carta foi muito mal entendida por pessoas que leram a quente excertos mal traduzidos”, defende António Costa. “Aquilo que fez [Deneuve] assinar a carta era exatamente esta questão que vamos discutir com este filme: estarmos a entrar num período em que, um destes dias, se deitam para a fogueira as obras de Sade ou se proíbe Leonardo da Vinci em museus.”

Protagonizado por Brisseau e por Virginie Legeay, o filme, que ainda em julho tinha sido exibido na Cinemateca Portuguesa, integrado no ciclo “Fantasmas ao Nosso Encontro”, conta a história de Michel (Jean-Claude Brisseau), um professor de Matemática reformado, que vive sozinho desde a morte da sua mulher, 29 anos antes, quando conhece Dora (Virginie Legeay), uma jovem mulher de 26 anos, num encontro que mudará definitivamente a sua vida. Estreado em Locarno em 2012, onde foi distinguido com o prémio máximo atribuído pelo festival, um Leopardo de Ouro, foi apenas mais um dos aclamados filmes do realizador de “Céline” (1992), “Os Anjos Exterminadores” (2006) ou “Coisas Secretas” (2002), filme que esteve na origem das acusações de abusos por parte de três atrizes, num escândalo que terminou com a condenação do realizador, em 2005 e, depois, em 2006, a um ano de prisão com pena suspensa.

Em tribunal, Brisseau nunca negou os factos apresentados pelas atrizes, que dizem ter sido, durante os castings, obrigadas a masturbar-se para uma câmara. “Não é um caso totalmente diferente de outros realizadores cujas práticas passadas vêm ensombrar o cineasta no presente”, lembra Luís Mendonça. “Para mim, o caso do Brisseau é mais importante que o do Woody Allen porque é um caso extremo: ele foi a tribunal, teve a oportunidade de se defender e foi mesmo condenado. E é muito interessante o caso porque, em tribunal, ele corroborou tudo o que tinha sido dito pelas atrizes. Partiu para um exercício de tentar legitimar o que tinha acontecido à luz do seu processo artístico, nunca disse que aquilo não aconteceu. E temos, a certa altura, a juíza a dizer ao realizador como é que ele deve preparar os seus filmes, como é que ele deve fazer cinema. Não há muitos casos em que uma questão de processo artístico e de criação seja levada a tribunal.”

Trata-se ainda, prossegue Luís Mendonça, de um caso especial por em causa estar um “cineasta mais débil e pouco visto”, apesar da sua “enorme relevância” desde a década de 1970. De Paris, a crítica de cinema Gloria Zerbinati concede que “o problema” com Brisseau é que, “quando ele quer mostrar o prazer de uma mulher, quer (ou gostaria de) filmar a mulher a ter realmente um orgasmo, não a fingir. Mas claro que não se tratando de um filme pornográfico, feito com atores pornográficos, não é assim tão comum que se peça [num casting] a alguém que se masturbe para ver o que acontece”.

E não reconhecendo ao filme que acaba de se estrear em França, numa sala menor, o mérito de outros que assinou no passado, nota que, tendo estado envolvido num escândalo sexual há dez anos, “é natural que esta não seja a melhor fase da sua carreira”. Sublinha, contudo, que a Cinemateca Francesa “não é um tribunal” e que, portanto, “não lhe compete julgar o comportamento de um realizador, apenas a sua obra, que é notável para quem a conhece”. Jean-Claude Brisseau, diz, “já foi julgado por um tribunal e condenado a uma pena que já cumpriu”.