A ideia não é original – pelo menos a Felícia Cabrita já a aflorou na CMTV – mas não resisto a voltar ao assunto.
Refiro-me ao paralelismo entre as histórias de Rui Rangel e de José Sócrates.
De facto, ao lermos as notícias que envolvem o juiz Rangel, é como se revivêssemos a Operação Marquês.
As personalidades de Sócrates e Rangel são parecidas, os métodos são semelhantes.
Sócrates tinha uma ânsia enorme de mediatismo, gostava de aparecer no ecrã e sabia explorar como ninguém as possibilidades da sociedade mediática, criando uma realidade paralela; já o país estava à beira do abismo financeiro e ele afirmava convictamente que vivíamos no melhor dos mundos e não precisaríamos de auxílio externo.
Ora, Rangel também se pelava pelas aparições públicas e tinha uma grande atração pelo vedetismo, ao ponto de fazer aquilo que nunca se vira nenhum juiz fazer: ser comentador residente num programa de TV onde se falava de Justiça e candidatar-se à presidência de um grande clube.
Sócrates vivia claramente acima das suas possibilidades, gostando de boas casas, de bons carros e de bons restaurantes, que não podia pagar com os seus rendimentos.
Ora, Rangel também vivia acima do que podia, tendo alugado uma casa num condomínio de luxo, conduzindo um jipe de alta gama e não abdicando de outros prazeres da vida para os quais o seu ordenado não chegava.
Sócrates tinha uma preocupação especial com a imagem, vestindo fatos Armani e sendo cliente de uma loja de roupa para milionários em Beverly Hills.
Ora, Rangel partilhava as mesmas preocupações, a ponto de ter ficado a dever vários tratamentos a uma clínica de estética.
Sócrates é acusado de usar o cargo público que desempenhou – de primeiro-ministro – para fazer favores políticos, recebendo em troca disso chorudas contrapartidas financeiras.
Ora, Rangel também é suspeito de usar o cargo público que desempenhava – de juiz desembargador – para fazer (ou prometer) favores ilegítimos e retirar daí importantes quantias em dinheiro.
Sócrates escondia o dinheiro nas contas bancárias de outras pessoas, para não levantar suspeitas, usando como testas de ferro primeiro o primo João Paulo e depois o amigo Carlos Santos Silva.
Ora, Rangel também é suspeito de esconder os montantes das luvas que recebia nas contas bancárias de outras pessoas, contando para isso com o apoio do seu amigo advogado José Santos Martins.
Sócrates tinha a particularidade curiosa de ficar de boas relações com as mulheres que ia colecionando, designadamente com a primeira mulher, Sofia Fava, que lhe fazia imensos favores.
Ora, Rangel também tinha a curiosa particularidade de as mulheres com quem ia vivendo o ajudarem no esquema de ocultação do dinheiro, a ponto de serem arguidas no processo. E mantém ainda uma relação privilegiada com a primeira mulher, Fátima Galante.
Sócrates assinou dois livros – A Confiança no Mundo e O Dom Profano – que se suspeita terem sido escritos no todo ou em parte pelo professor universitário Domingos Farinho.
Ora, Rangel também assinou acórdãos que se suspeita terem sido escritos por Fátima Galante, também ela juíza na Relação.
As semelhanças não poderiam ser maiores: as mesmas personalidades, os mesmos truques, a mesma capacidade para manipular as pessoas e em especial as mulheres.
A acusação contra Sócrates já foi deduzida, pelo que quase tudo o que aqui se diz terá a prova consolidada.
A acusação contra Rui Rangel ainda não saiu, pelo que, por enquanto, só existem suspeitas.
Mas, se as suspeitas vierem a confirmar-se, e o processo chegar a julgamento, vai ser muito interessante fazer o paralelo entre os dois casos.
E isto porque, de certo modo, um caso ‘prova’ o outro.
O facto de Sócrates esconder o dinheiro em contas de amigos era um expediente que tinha o seu quê de novidade – pelo que, quando foi noticiado, provocou estranheza, permitindo até a Sócrates dizer com alguma verosimilhança que o dinheiro não era dele, apesar das evidências em contrário.
Mas quando lemos que Rangel utilizou o mesmo expediente, já o caso não nos suscita muitas dúvidas.
E o que se diz para o dinheiro diz-se para tudo o resto.
Muito daquilo que na Operação Marquês surgia como quase inverosímil, depois de vermos as suspeitas que recaem sobre Rangel surge-nos agora como quase banal.
Resta dizer que Rui Rangel defendeu sempre José Sócrates – sendo o único magistrado que lhe deu razão numa fase do processo.
Mas aí não acredito que tenha sido subornado.
A questão é que todas as pessoas que vivem nos limites da marginalidade (ou para lá deles) têm tendência para se protegerem umas às outras.