Vanessa. As casas da nossa vida

A casa a que os filhos da Vanessa rapidamente começaram a chamar ‘a despensa’ era um rés-do-chão em Campolide, um bairro extraordinário mas não trendy, com quatro micro-assoalhadas, numa daquelas ruas perpendiculares à propriamente dita rua de Campolide.

Eu penso que foi a seguir ao seu último divórcio que a Vanessa foi viver numa despensa. 

Para quem não saiba, uma das consequências do divórcio é a pobreza. Não é claro que o divórcio conduza a menos sexo – na maior parte das vezes num casamento em dissolução já não há sexo nenhum. Se a existência de menos sexo não é uma certeza, a pobreza, pelo menos na classe média que em Portugal começa nos 800 euros líquidos, é quase uma inevitabilidade. 

Como nenhum dos três ex-maridos da Vanessa dispunha de grandes rendimentos (o casamento por amor e nenhum dinheiro foi uma invenção da modernidade que trouxe bastantes problemas), a capacidade de pagarem a tempo e horas as pensões de alimentos também era reduzida. E foi então que a Vanessa concluiu, isto no princípio do século quando a palavra ‘gentrificação’ não tinha ainda entrado no léxico português, que com o seu salário só poderia alugar uma casa mínima em Lisboa.

A casa a que os filhos rapidamente chamaram ‘a despensa’ era um rés-do-chão com quatro micro-assoalhadas em Campolide, numa daquelas ruas perpendiculares à propriamente dita rua de Campolide, que é um bairro extraordinário apesar de ainda hoje estar longe de constar no mapa trendy da cidade. 

Para poder ir morar na despensa, a Vanessa teve que oferecer metade dos móveis que trazia da casa bastante razoável que partilhara com o seu terceiro marido, o Zé, e que tinha entregue ao senhorio depois do divórcio. Não cabia lá nada. Numa das micro-assoalhadas instalou a sua cama, noutra um beliche e um divã para os três miúdos, na terceira via-se televisão em dois sofás que juntinhos pareciam uma cama, na quarta comia-se ao lado do grande roupeiro que guardava a roupa de quatro pessoas. 

Em contraste, a despensa tinha um quintal gigantesco mas nesse inverno choveu demasiado para que a Vanessa e as crianças pudessem ocupar o espaço ao ar livre. Assim, foram obrigados a estar sempre juntinhos, o que foi vantajoso para poupar no aquecimento. 

A Vanessa só levou duas pessoas lá a casa: a mãe e a melhor amiga.
A mãe entrou em transe: «É aqui que vocês vão viver??!! O que é que foste fazer da tua vida? Eu sempre achei que ias acabar assim».

A melhor amiga mostrou a mesma face aterrorizada: «Não queres vir viver lá para minha casa? Vocês os quatro estavam lá mais bem instalados».

Depois disto, a Vanessa não mostrou a sua casa a mais ninguém, exceto a uma ‘special relationship’ que aparecia lá quando as crianças estavam com os respetivos pais. 

Como a vida não é linear, a Vanessa criou uma relação de afeto profundo com a despensa. O divórcio conduz a algumas tristezas (além da já citada pobreza, é sempre chato acabar com um hábito e romper uma família) mas leva-nos a inesperadas alegrias. E como a libertação de um casamento que perdeu o sentido tem momentos de prazer fulgurante, a Vanessa sentiu que a despensa era, na realidade, a capital do seu território libertado. Houve ali uma sensação de rejuvenescimento que é uma coisa que acontece a todos nós quando eliminamos os ativos tóxicos da nossa vida: a esplêndida alegria da liberdade. 

Um dia a Vanessa decidiu abandonar a despensa. Tinha encontrado uma casa com uma maior quantidade de metros quadrados, onde iria conseguir não ter o roupeiro ao lado da mesa do jantar, por mais 75 euros. Estava chegada a hora de deixar Campolide e as quatro micro-assoalhadas. 

Aqui há dias perguntei-lhe:
– Qual foi a casa onde te sentiste mais feliz?
– Não sei bem. Mas se calhar foi talvez na despensa.