‘Se morresse amanhã morria com um enorme sorriso na cara’

Tem uma gargalhada fácil e pouco se importa com o que pensam dele. Encontrámo-nos em Cascais, o seu refúgio, onde os empregados do restaurante sabem muito bem quais são os seus gostos. Apostou que a entrevista não demoraria mais do que 90 minutos, mas quando os ultrapassámos percebemos que ficaram coisas por dizer. Profissionalmente nasceu…

Quais são as suas origens? 

Martim de Matos Lencastre Cabral, nascido em Lisboa, freguesia de Benfica, a 15 de outubro de 1952. Ao fim de quatro dias em Benfica, vim a correr para Cascais – trouxeram-me. Aqui vivi alegremente, fiz a instrução primária, onde fiz alguns amigos que ainda tenho hoje – claro que já somos diferentes, não somos a mesma pessoa que éramos, mas ainda subsistem algumas dessas pessoas -, e depois com nove anos fui para os Estados Unidos.

É filho único?

Não. Somos quatro, sou o mais velho. São dois casalinhos muito queridos.

E os seus pais, eram ambos portugueses?

O meu pai era português, nascido – ele dizia que era transmontano, embora tenha nascido no que nós hoje chamamos o Douro, em Santa Marta de Penaguião, ao pé da Régua, mas ele chamava àquilo Trás-os-Montes. A minha mãe nasceu na Beira, em Moçambique. O meu avô tinha sido enviado para Moçambique, julgo que tinha alguma coisa que ver com algumas asneiras que ele fez cá em Lisboa e a família dele enviou-o para Moçambique para se afastar. Aconteceu uma coisa muito engraçada: na viagem de barco, quando ele ia a caminho de Moçambique, conheceu a minha avó, que era uma senhora grega e que ia acompanhar a tia dela – iam dar a volta ao continente africano a caminho da Índia. Ela conheceu o meu avô a bordo, e quando chegaram a Moçambique, ela saiu também – despediu-se da tia e estava completamente apaixonada pelo meu avô, deixou a tia a bordo do barco, não sei se com outras pessoas ou não, sei é que foi atrás do meu avô por quem se tinha apaixonado e ele por ela. Comunicavam em francês, não tinham uma língua comum, mas falavam em francês que era a língua franca entre eles os dois, e a família dela nunca mais lhe falou. Cortou-a radicalmente e nunca mais houve contacto entre a família grega da minha avó e ela, porque casar fora da tribo era completamente proibido. E então a minha mãe nasceu em Moçambique, era filha única, e com 13 ou 14 anos, não se dava nada bem com o clima da Beira e os médicos recomendaram que ela viesse para Portugal. 

E os seus pais, o que faziam?

A minha mãe sempre foi mãe e dona de casa, nunca teve profissão. O meu pai trabalhava para a Shell cá em Portugal. Depois, a certa altura, sei que trabalhou cá nos caminhos-de-ferro de Benguela. Foi a África várias vezes mas trabalhava cá. E, quando eu tinha nove anos, fomos todos para a América, foi um marco importante na minha vida. Ele foi criar um lobby, que era uma coisa que ninguém sabia o que era nessa altura – os americanos já funcionavam em lobby, mas em Portugal não se tinha a noção do que era. Era um grupo de pressão criado para influenciar os dirigentes americanos. Isto porque estávamos no auge do clima político ocidental que levou ao fim de todas as colónias europeias. O Macmillan falava nos ‘ventos da mudança’ que havia nas colónias, o Kennedy também era completamente contra os impérios coloniais europeus, e o meu pai foi para os Estados Unidos representar um grupo de colonialistas, empresários, capitalistas portugueses, que tinham grande interesse em deixar passar a mensagem de que a colonização portuguesa era fundamentalmente diferente da britânica, ou da belga ou da francesa. Havia uma mistura e uma integração entre o povo de Portugal e os povos africanos que não havia em relação ao colonialismo desses países, e portanto era uma colonização diferente e a ideia deste emprego que ele teve era basicamente fazer lobby em Washington, junto do Governo americano e em Nova Iorque junto da ONU para justificar o império colonial português. É claro que sabemos que isso não deu resultado e para o bem ou para o mal o mundo evoluiu.

Viveu quanto tempo nos Estados Unidos?

Quase sete anos. Fui com nove e vim-me embora com 16. Foram uns anos bastante influentes na minha formação, porque é um período da nossa vida que marca, adquire-se hábitos de pensar e parte da nossa personalidade é formada nesses anos e isso marcou-me muito.

Marcou-o porquê?

Acho que adquiri uma maneira de pensar americana, anglo-saxónica, mas provavelmente mais americana. Igualdade entre os sexos era uma coisa que quando cresci na América já se dava como adquirido, havia igualdade entre os sexos, não havia segregação, não havia divisões…

Havia segregação racial nessa altura…

Havia segregação racial, mas não entre sexos. Nunca senti no meu dia-a-dia segregação racial. Vivia num subúrbio de Nova Iorque de classe média-alta, tinha colegas de liceu que eram negros, com quem a gente convivia a bem ou a mal como convivíamos a bem ou a mal com outros que eram descendentes de italianos ou irlandeses, o país é uma enorme mixórdia de imigração, toda a agente tinha sangue de algum lado, eram todos diferentes. É claro que com um negro a gente vê porque olha para cor da pele. A diferença entre um italiano e um irlandês não se vê logo, a não ser normalmente a cor dos olhos ou um ter sardas e o outro não.

E o que o marcou mais?

A primeira vez que dei um beijo numa mulher foi nos Estados Unidos, tinha 11 anos e ela 13.

Além do beijo? Foi o ensino…?

Era uma vida confortável. O liceu era muito agradável, era misto já nessa altura – coisa que era completamente diferente quando voltei para Portugal -, gostava das disciplinas, da vida que tinha, era agradável. Os meus pais proporcionavam-nos um bom ambiente em casa, tínhamos uma empregada portuguesa que foi connosco para lá. Tendo entre nove e 16 anos comecei a despertar hormonalmente falando…

Isto é, sexualmente falando, foi onde teve a sua primeira experiência?

[risos] Exatamente, com americanas.

Mas como foi a sua adolescência?

Despertei muito para a leitura. O meu pai lia muita ficção científica e comecei também a ler ficção científica, houve uma altura em que devorava os livros que ele tinha lá em casa. Arthur C. Clarke… Li muitos, agora há muitos nomes que me falham. Ouvia muita música, nós gostávamos de Rolling Stones e elas dos Beatles. A única coisa para que não despertei foi para o desporto, passou-me completamente ao lado. Joguei futebol americano, porque no liceu fazia-se desporto à séria, duas ou três vezes por semana. E fazíamos desporto consoante a estação do ano – na primavera era basebol, no outono era futebol americano, no inverno era ginástica, havia hóquei no gelo também… Até que consegui falsificar a assinatura da minha mãe e deixei de fazer desporto na escola. Preferia música, leitura, as namoradas… era assim um bocadinho mais calmo, nesse aspeto.

E o regresso?

Voltámos passados sete anos, não porque o programa em que o meu pai estava a trabalhar tivesse acabado, mas deve ter havido um desentendimento entre eles ou então ele decidiu que era altura de nós voltarmos. O meu pai queria que nós fossemos portugueses, aliás nós teríamos tido a oportunidade de ser americanos e ele nunca quis. Chegou mesmo a ter um grande desentendimento com a minha mãe que queria que nós tivéssemos também a cidadania americana, e ela adorava estar lá. E então viemos para Portugal para sermos portugueses. E o regresso também foi agradável porque vim parar a Cascais, onde tinha vivido quando era miúdo. Isto é um ambiente muito agradável de se viver, nessa altura era muito mais pequeno – se não me engano havia quatro ou cinco polícias e nós conhecíamo-los todos pelo nome, sabíamos quem eles eram, ele sabiam quem nós éramos. Fui para um colégio particular e era só rapazes, não sabia português suficiente para ir para o liceu. Chumbei um ano, foi a única vez que chumbei na minha carreira educativa, no quarto ano. Eu e os meus irmãos chumbámos todos nesse ano e depois tivemos explicações de português.

Em Cascais vivia-se um ambiente mais libertino, parecido com o dos EUA?

Não, nem pensar. As meninas portuguesas saiam em grupo e tinham de ser acompanhadas, havia chaperones… as mães delas tinham muita confiança em mim, achavam que se eu fosse então as filhas também podiam ir e eu sempre fiz os possíveis para responder a essa responsabilidade, mas também iam as minhas irmãs. Estava a começar o turismo aqui no Estoril e em Cascais e virávamo-nos para as estrangeiras: inglesas, suecas, irlandesas… para tudo, basicamente. Bastava virem sozinhas passar férias a Portugal. Como falava fluentemente inglês, era muito procurado por amigos portugueses. Tinha de ser eu a meter conversa com elas e não me esqueço: eu avançava com um grande sorriso ‘hello, do you speak english?’, elas olhavam para mim com ar enjoado e estavam três amigos envergonhadíssimos atrás de mim de língua de fora [risos] na esperança de que elas dissessem alguma coisa para a gente se sentar logo. Éramos muito inocentes, nessa altura. Mas eu era muito procurado e era um bocado popular por causa disso.

Estava a estudar para quê?

Estava a estudar Economia, por uma razão muito simples. Uma das cadeiras obrigatórias era o Inglês que eu sabia mais do que a professora. Portanto, não tinha de estudar para seis cadeiras, só tinha de estudar para cinco. Fiz dois anos aí e depois ia passar para o terceiro ano quando veio o 25 de Abril.

E foi aí que foi para Inglaterra.

Sim, fui porque podia estudar de borla. Ir para os Estados Unidos, para a universidade, era proibitivo porque era muito caro. Em Inglaterra, nessa altura, o aluno estrangeiro não pagava propinas.

Mas em Portugal também podia estudar…

Em Portugal as universidades estavam todas fechadas nessa altura. Fechou tudo. Em 1974/75 não havia universidades. Os professores foram todos saneados, foi tudo corrido e nós tínhamos aulas dadas por elementos comunistas/marxistas/leninistas. Não tinha interesse nenhum nisso. Acabei por ir para Inglaterra, já depois de ter brincado à política um bocadinho – que não era bem brincar, na altura levava aquilo muito a sério -, mas fui militante fundador do PPD. Quando eu entrei para o PPD havia, se não me engano, umas 50 pessoas.

E é aí que conhece Balsemão?

Não o conhecia, mas ele já conhecia a minha família.

Mas foi convidado para ser fundador do PPD…

Não fui convidado, nessa altura ninguém convidava ninguém. Nós aparecemos e dissemos que não queríamos o regime comunista em Portugal, e que eles pareciam uns tipos civilizados – era o Francisco Sá Carneiro -, tínhamos visto na televisão a apresentação do partido. Fazíamos o que era preciso. Fomos conhecendo pessoas, lembro-me muito bem de ter contactado com a Conceição Monteiro. Nessa altura estávamos no Rato, do outro lado da rua onde é o PS.

Mas não aparece como fundador do PPD…

Mas sou. Sou e sou fundador da JSD. Eu, o Guilherme d’Oliveira Martins, o Manuel Castelo-Branco, o António Fontes… era um grupo grande. Eu era o número 40 e tal da JSD, mas na altura nós registávamos mais do que 500 para parecermos mais. E comecei a colar cartazes, ainda em 74, e lembro-me bem que acabei na segurança. Acabei por formar uma segurança interna para o partido, uma segurança externa, andava muito com o Francisco de Sá Carneiro de um lado para o outro. Fazíamos tudo o que era preciso, éramos jovens – eu tinha 22 anos nessa altura… Íamos para os comícios, tentávamos evitar que lhes batessem, acompanhávamos os dirigentes e fazíamos colagens de cartazes, à noite, para tentar evitar que nos batessem. E isso para mim durou um ano, porque em agosto de 1975 deixei Portugal e fui para Inglaterra.

E vai para Londres sozinho?

Fui com a minha mãe, que estava muito agitada. A minha mãe viveu a guerra civil de Espanha em Portugal. Estava num colégio de freiras e contactou com freiras fugidas à guerra civil de Espanha que vinham com histórias horrorosas do que é que tinha sido e do que era a violência dos comunistas em Espanha contra a igreja. E ela tinha o pânico e pavor de que acontecesse isso cá em Portugal. A ideia de comunistas na rua para ela era quase patológica e veio comigo para Inglaterra. A minha família dividiu-se: o meu pai foi para Espanha, as minhas irmãs foram ter connosco a Inglaterra e o meu irmão ficou em Portugal, em Évora. Candidatei-me e entrei em Economia, só que tive de voltar ao primeiro ano. Já tinha feito dois em Portugal, mas não me deram equivalência. 

Desistiu?

Não. O que aconteceu foi que estava à procura de um emprego em part time e comecei a assinar o Expresso onde vi um anúncio que dizia: ‘Tradutor português-inglês, BBC, Reading’. Percebi que não dava para viver e estudar em Londres e trabalhar lá em Reading, porque era longe. Entrei na BBC e consultei os meus professores que me disseram que o mundo não precisava de mais um economista. ‘Se tem oportunidade de ir para a BBC, agarre essa oportunidade com as duas mãos’. E foi o que fiz, por indicação deles.

Antes ainda trabalhou em Londres.

Sim, quando cheguei. Fui para um pub típico inglês, cheio de ingleses, onde elas principalmente adoravam um copo de vinho do Porto com limonada lá dentro. E eu recusei servir porque achava que estavam a estragar a bebida. Fui despedido.

E depois?

Fui trabalhar para um restaurante. Começaram a chegar a Inglaterra vários amigos meus refugiados da revolução, sem dinheiro e sem maneira de se sustentarem, e portanto tínhamos de trabalhar, íamos fazer o que era possível, fundamentalmente em restaurantes e bares a lavar pratos e a servir copos. Vivíamos em grupos, três ou quatro por apartamento, e eu como a minha mãe tinha ido tínhamos um apartamento em que vivia eu e a minha mãe e as minhas irmãs, mas basicamente a maior parte das pessoas que ia para lá dividiam apartamento, coisa que se começa a ver agora em Portugal. 

Qual era o seu papel, na BBC?

Ouvia a estação de rádio portuguesa, a RDP, ouvíamos os noticiários, os discursos do PR, discursos políticos… estamos a falar de 1975/76, do auge da revolução, e traduzia para inglês. Fazia uma espécie de agência noticiosa, decidíamos se valia a pena ou não fazer uma tradução textual ou fazíamos só um resumo… Lembro-me perfeitamente dos discursos do Ramalho Eanes, que eram complicadíssimos porque não se ouvia muito bem e ele tem uma voz que não é muito precisa, nem clara e era muito complicado traduzir o que estava a dizer. Voltava para trás e ouvia a mesma frase cinco, seis, sete vezes para tentar decifrar. Comunicados do Conselho de Revolução, que saíam sempre às três da manhã, foi uma coisa de que não me esqueço e que me marcou muito. Muitos pontos altos da minha carreira jornalística [risos] foram a traduzir os comunicados do Conselho da Revolução, que eram perfeitamente incompreensíveis, não se percebia nada do que aquilo queria dizer, e depois pô-los em contexto. As notícias eram transmitidas pela rádio portuguesa para um grupo de pessoas em Portugal que sabiam o contexto, eu estava a traduzir para o Foreing Office inglês, para os americanos, para variadíssimos clientes que não sabiam o contexto em que as coisas estavam a ser ditas. E fiz isso durante três, quatro anos. 

O que se seguiu em Londres?

Fui para a secção portuguesa e aí comecei a transmitir em português para África e para Portugal. Comecei o meu trabalho na rádio, por assim dizer. Passei a traduzir de inglês para português e fazíamos algumas reportagens originais também – poucas porque o orçamento não era muito.

Que tipo de informação faziam?

Aquilo era o World Service da BBC, que tinha o objetivo de falar verdade para toda a gente. Não nos podemos esquecer que estamos a falar num mundo que nessa altura estava dividido por uma cortina de ferro – havia um regime comunista/socialista, as democracias ocidentais e o terceiro mundo que ou oscilava para um lado ou para o outro. Havia um conflito ideológico muito grande no mundo inteiro e a BBC era uma arma no esclarecimento das pessoas, da informação, da livre circulação de informação. Aprendi várias regras essenciais do jornalismo aí. Uma delas é que mais vale dar a notícia mais tarde, mas ser correta, do que arrancar à bruta com a notícia para ser o primeiro e depois ter de desmentir. Criar uma reputação é uma coisa que demora décadas, mas perdê-la perde-se em 30 segundos. A BBC tinha uma regra muito forte que era nunca ir só com uma fonte. Se a Reuters dissesse uma coisa, ninguém avançava com a notícia até a AFP ou um jornalista da BBC confirmar a notícia. Era a regra das duas fontes. Foi uma ótima escola.

Mais vale dar a notícia mais tarde, mas ser correta, do que arrancar à bruta com a notícia para ser o primeiro e depois ter de desmentir

Nunca quis ser jornalista?

Nunca tive como objetivo ser jornalista, mas acho que se adequou bem à minha maneira de ser. Dou-me muito bem com outras pessoas, sou extrovertido, leio, interesso-me pelo que se passa à minha volta e tenho sempre pontos de conversa e de interesse pelo que se passa no resto do mundo – e julgo que com uma capacidade relativamente boa de escrever e assimilar aquilo que se passa à minha volta e de explicar aquilo que vi. Dei-me bem com o jornalismo, mas foi completamente por acaso.

Ficou sempre na rádio?

Sim, a não ser num período de seis meses em que fui trabalhar para a televisão, ainda estavam eles a fazer a transição de filme para videotape. Trabalhei num programa de atualidade diário, no BBC2, chamado Newsnight, e depois desse período voltei para a rádio em grande parte porque eles encontraram um lugar para mim e eu na realidade achei que a TV era demasiado complexa e havia muito entre mim e a notícia. Na rádio eu fazia tudo sozinho, precisava só de um técnico no estúdio. Em televisão havia muita gente entre eu dar a notícia e a notícia ir para o ar – câmara, som, realização. Quando voltei para a rádio, saí da secção portuguesa e fui para o World Service propriamente dito, para a secção inglesa, onde havia orçamentos muito maiores e dava para viajar e fazer reportagens à séria. Foi o período em que mais viajei já como repórter e jornalista.

Fez reportagens de guerra?

Fiz conflitos e a guerra de Angola. Estive lá três semanas na Jamba com as forças do Savimbi e três semanas em Luanda para tentar fazer dois documentários em que demonstrava como se vivia num sítio e no outro.

Esteve com Savimbi e com Eduardo dos Santos?

Com Eduardo dos Santos não, mas estive com Savimbi.

O que recorda dessa experiência na Jamba?

O ambiente era militarizado, mas simultaneamente tinham conseguido criar infraestruturas muito básicas que eram típicas de uma reconstrução como se fosse uma cidade. Tinha um sinaleiro, que as pessoas viram em reportagens televisivas, tinha um hospital, uma maternidade. Não me esqueço que era uma cubata toda forrada a papel de prata mas uma coisa limpíssima. E havia um cuidado muito grande com a aparência e limpeza daquilo, mas era um ambiente nitidamente militar, os homens andavam todos fardados de uma maneira geral.

E Luanda?

Achei uma confusão. Estávamos nos anos oitenta, era uma cidade que se via que tinha sido muito bonita, toda gasta e velha, não tinha sido renovada, havia prédios sem janelas. Chocava um bocado, o lixo nas ruas, acho que nunca houve capacidade para limpar as ruas daquela cidade, ainda hoje é um problema. Recordo-me que não havia nada, era tudo importado. Quando ia lá ficava no hotel Presidente e tudo o que se comia era importado. Não havia praticamente nada nessa altura produzido ou cultivado lá. De resto, havia uma grande confusão de trânsito. Uma vez estava com um carro alugado a descer uma rua e um polícia mandou-me parar e deu-me um raspanete. Perguntou-me se eu não sabia que aquilo tinha sentido único e eu disse que não, porque não havia nenhum sinal, e ele ficou a olhar para mim e reconheceu que realmente não havia, mas que toda a gente sabia que era sentido único. Eu não sabia, mas mesmo assim não me safei da multa…

Quanto tempo mais esteve na BBC?

Estive até receber um telefonema do gabinete do Dr. Balsemão, já nos anos 90, quando conseguiram o alvará para formar a primeira televisão independente. Lembro-me de ter enviado um telegrama a dar os parabéns e depois ter recebido um telefonema da secretária dele a dizer que ele gostava muito de falar comigo. Fui ao telefone, falei e convidou-me.

Mas tinha mantido contacto ao longo do tempo?

Inevitavelmente quando vinha a Portugal entrevistava-o, porque ele tinha sido primeiro-ministro, falava inglês fluentemente, era empresário, era jornalista, e ele representava uma corrente de opinião. Quando começou a SIC lembrou-se de mim para ser editor de internacional.

E nessa altura já era casado?

Já era casado, tinha duas filhas ainda pequeninas, a minha mulher era inglesa, era professora primária em Inglaterra. Falei com a minha mulher, que estava muito de pé atrás, mas depois consegui convencê-la e viemos. Estivemos cá durante quase ano e meio, depois tivemos de voltar para Inglaterra porque adoeceu.

Como foi o arranque da SIC?

Uma trabalheira. Éramos muito novos, 20 e tal anos, e eu era dos mais velhos, tinha quarenta e tal nessa altura. Conhecia o Paulo Camacho que esteve comigo na BBC e o António Carneiro Jacinto que tinha aparecido em Londres uma vez como assessor do Mário Soares. De resto, não conhecia mais ninguém, mas foi relativamente fácil a integração como editor de internacional.

Volta para Londres por causa da doença da sua mulher.

Volto, sim. E tive imensa sorte. Uma das regras que aprendi muito novo num dos livros de ficção cientifica foi para, se possível, nunca bater com a porta atrás de nós. Nunca se sabe se se tem de voltar atrás e convém não bater com a porta. Deram-me o emprego, tive muita sorte.

Mas não esteve lá muito tempo…

Estive três anos. A minha mulher recuperou, a coisa não era tão grave assim e voltámos para Portugal porque a SIC acabou por nunca me substituir como editor de internacional. Tinha duas filhas que estavam a começar a entrar nos anos de teenager, e era indiscutível que era melhor viverem cá nessa fase do que lá. E então viemos. E desta vez para ficar.

Como encara o jornalismo que se fazia na BBC e o que se fazia em Portugal?

Na altura em que a SIC começou eram semelhantes. De uma maneira geral, acho que o jornalismo que se fazia nessa altura era mais sério do que o que se faz hoje. Os objetivos eram também diferentes, não havia a ênfase que há hoje em dia na personalidade, era impensável abrir-se o telejornal com uma notícia social. Havia um enfoque mais nas coisas ditas ‘sérias’. Acho que nos virámos demasiado para o fait divers, o fait divers domina, a notícia da personalidade domina, há acontecimentos graves espalhados pelo mundo e acontecimentos graves até cá em Portugal que já não merecem a atenção que mereciam. As personalidades do futebol, do social, quem é que divorciou de quem… não é esse o jornalismo que aprendi a fazer, não é esse o jornalismo que sei fazer, por isso, até certo ponto, sinto-me feliz por não estar a funcionar como jornalista, porque na realidade julgo que não era capaz de fazer um alinhamento de um jornal hoje em dia.

Agora dedica-se a um fait divers gastronómico.

Sim, mas assumidamente. Era uma rubrica do telejornal que aparece no fim do jornal e é uma parte que faz parte da nossa vida. Há jornalistas que fazem desporto, automobilismo, cultura, moda… a restauração, os hotéis, o turismo, faz parte da nossa vida e é uma coisa que, de um ponto de vista televisivo, também é eminentemente televisionável. Produz imagens boas, as pessoas gostam de ver e é jornalismo no sentido em que mostra uma parte da nossa vida. Todo o jornalismo não tem de ser investigação ou mortos, guerras, escândalos políticos. Jornalismo é trazer informação ao público que nos ouve, escuta ou lê.

Começou a fazer esse programa com uma abordagem pouco habitual em Portugal para um jornalista. Sujeita-se quase ao ridículo.

Sim, porque acho que é divertido. E entendo que um programa destes feito com cara sorumbática, estilo professor universitário, não tem piada absolutamente nenhuma [risos]. Isto é assumidamente um programa leve, tenho uma atitude perante as coisas muito anglo-saxónica. Lembro-me de estar no metro londrino com um português que me disse que só ali é que se vê um homem de chapéu e fato ao lado de um punk, os dois sem se meterem um com o outro, a respeitar o espaço do outro. A primeira coisa que nós em Portugal fazemos quando aparece alguém diferente é gozar com essa pessoa. É uma defesa que temos, para ultrapassar o nosso desconforto, penso eu. Acho que das melhores capacidades que tenho é saber rir de mim próprio, sem ter o medo constante e aterrador que existe em Portugal de fazer a chamada figura de parvo.

A primeira coisa que nós em Portugal fazemos quando aparece alguém diferente é gozar com essa pessoa

Como reagiu a essas críticas?

Eu usava um chapéu de palha, muito inglês, um panamá, deu que falar um bocadinho porque nos outros programas que fazia não o usava. Não aparecia de gravata, a minha colega Teresa Conceição é muito fã de suspensórios e comecei a usá-los, e eram bem confortáveis. E fiz ski, por exemplo, num dos programas… ou melhor, fiz sku. Tentei levantar-me três vezes, não consegui, acabei por desistir, mas fui filmado a fazer isso, porque acho que nada disso trai quem nós somos. Há limites, como é obvio. 

O que acha dos telejornais terem mais de uma hora?

Nunca percebi, nem nenhum dos meus colegas estrangeiros. Acho que ninguém no mundo o faz.

Por que acha que fazemos?

Porque as pessoas querem ver. E se fazemos só uma hora as pessoas mudam de canal para ver os outros. Dizia-me um inglês: ‘Vocês devem ser o povo mais informado do mundo’. ‘Não, pelo contrario. Ninguém tem capacidade para ver uma hora e meia de um produto com atenção. O que é que o português gosta de ver na televisão? Talvez passem muitos bonecos diferentes nas reportagens, têm um minuto e meio, dois minutos.

Enviuvou muito cedo. Como lidou com isso?

Foi um período muito difícil na minha vida. Enviuvei quando tinha 48 ou 49 anos e fiquei com duas crianças. Se não fosse a minha família a ajudar-me tinha sido complicadíssimo. Acho que não estamos preparados para a morte e para lidar com a morte. Nós não falamos da morte, não convivemos com a morte, a morte para nós é uma coisa para ser esquecida, não queremos falar no assunto, não faz parte natural da nossa sociedade ocidental – a morte é uma coisa que existe, mas não pensamos nela, antes pelo contrário, pensamos é como é que vamos evitar a morte, vamos fazer mais exercício e comer melhor, queremos é parecer cada vez mais jovens… a aposta é precisamente o contrário do que é o nosso ser, o nosso organismo. Por não estarmos preparados para isso, quando acontece a alguém perto de nós é um choque tremendo.

Mas recebeu algumas ajudas?

Sim. Fiz terapias, tive um psiquiatra que me ajudou imenso, não só na parte farmacológica, que foi muito importante porque conseguiu pôr-me de pé. Eu estava num estado um bocado catatónico e a terapia de grupo ajudou-me. O médico achou que eu era uma pessoa com uma atitude extrovertida e que podia beneficiar outras pessoas do grupo e que podia beneficiar-me a mim próprio também. Deu um resultadão.

Eram só viúvos na terapia?

Não, eram pessoas completamente diferentes. Uma das coisas que aprendi foi que a depressão de uma dona de casa, de um engenheiro eletrotécnico, de um jornalista ou de outra pessoa qualquer são basicamente a mesma coisa. É como uma pessoa partir um braço – quando se parte o braço há uma maneira de o reparar. De uma maneira geral, a depressão, uma vez identificadas as razões, é igual para todos. E no meu caso foi aprender a lidar e a aprender a fazer qualquer coisa quando sinto a necessidade de o fazer. E depois há o tempo. Uma coisa que aprendi com a morte da minha mulher é o porquê de o luto ser um ano, não é por acaso – o luto tradicional era um ano porque é preciso passar quatro estações por cima da nossa relação, que agora é uma relação sozinha. Tem de passar um inverno, um outono, uma primavera e um verão. Passado um ano, começamos a caminhar outra vez e a aprender a viver sozinhos novamente.

E como está a lidar com o seu luto da reforma? Ter deixado de trabalhar todos os dias…

Muito bem, até fazer 65 anos, que foi dois anos depois de sair da SIC. Fiz 65 anos em outubro e aí sinceramente fui ao tapete. Porquê dois anos depois se me tinha aguentado lindamente? Porque o número 65 para mim teve uma importância enorme. Marcou-me, é o número tradicional em que a gente entra para a reforma, é a terceira fase da minha vida, é a ultima fase da minha vida, já não recebo 500 telefonemas por dia, recebo talvez 1 por mês, não tenho nada que fazer…

Como reage ao facto de não receber esses telefonemas? Deixou de aparecer na televisão, as pessoas reconheciam-no na rua…

Ainda reconhecem. Eu lido muito bem com isso, não foi um problema. O problema foi entrar nesta fase, terminal, em que na realidade a minha vida acabou, agora estou só aqui a marcar passo à espera de morrer. Isso é que me deu um pouco a volta à cabeça. A par disso, tive ataques de ansiedade – como é possível haver um presidente Trump, haver aquecimento global, eu sou diabético… tudo era motivo de ansiedade. Claro que depois se ultrapassava isso, mas se não se tem a cabeça ocupada, é complicado. Sou diabético, agarrei-me e levei à séria esta doença. Comecei a comer de forma mais saudável, comecei a fazer exercício regularmente, ando muito a pé e de bicicleta… e assim me mantenho ativo e interessado.

Há alguma reportagem que o tenha marcado?

Sim. Angola, marcou-me imenso. Lembro-me de estar uma vez no meio do mato com a ONU e ver duas senhoras africanas a apontarem para um jipe com matrícula portuguesa, a chapa preta com as letras brancas, e lembro-me de estarem as três a dizer ‘olha, os portugueses voltaram, vai haver paz’. Isso marcou-me extraordinariamente, o que foi o drama daquelas vidas.

Qual foi a maior gafe que cometeu?

‘Quem é o Xanana Gusmão?’. Foi no primeiro ano da SIC, era editor de internacional, e o José Alberto Carvalho olhou para mim e disse ‘o Xanana Gusmão acaba de ser preso!’, ficou tudo a olhar para mim e eu olhei para ele e disse ‘quem é o Xanana Gusmão?’. Tem uma explicação: eu vinha da BBC, onde Timor-Leste não figurava como história internacional. Mas é óbvio que para o jornalista português, Timor era uma realidade. Mas eu vinha de Inglaterra, onde tinha estado 20 anos. Reagi como um inglês.

Acha que Trump pode pôr a paz mundial em causa?

Pode. O Trump a mim faz-me muita confusão, como se elege um homem como ele, que é, de facto, um empresário, não é político, mas que é uma pessoa ignorante para desempenhar o cargo de presidente? Como é que um homem que sabendo que não tem capacidade para ser presidente dos Estados Unidos quer sê-lo? Acho que isso reflete um bocadinho o mundo em que nós vivemos hoje em dia. Não há noção do que se pode ou não se pode fazer. Tudo é viável, tudo é possível e que se lixem as consequências. O meu pai foi convidado a certa altura para ser diretor do Diário de Notícias e riu-se. ‘Eu não tenho capacidade para ser diretor do DN, nem pensar nisso’, disse ele. E julgo que hoje em dia se fosse feito esse convite a uma pessoa que manifestamente não era capaz de o exercer, a pessoa era capaz de dizer que sim. Há uma falta de modéstia também muito grande, penso eu, na sociedade ocidental hoje em dia. Tudo é viável, mesmo que se faça mal, paciência. Não há responsabilidades. Mas isto era outra conversa…

Como é o seu dia a dia?

Acordo cedíssimo porque vou para a cama muito cedo também. Às seis e meia estou acordado, antigamente dormia até ao meio dia. Demorou também algum tempo a habituar-me a isso, os nossos ritmos vão mudando à medida que vamos envelhecendo. De manhã faço exercício, vou andar, e as rotinas que tenho de fazer, ir às compras de manhã, antes de almoço. À tarde, é mais calmo. Varia também, e gravo um programa de vez em quando, tenho a sorte ainda de estar a participar no Ir É o Melhor Remédio, que é muito divertido de fazer. E continuo a comentar a atualidade internacional, além de ler quatro e cinco jornais por dia, hoje em dia com o iPad tenho os jornais todos à minha frente.

Costuma ir visitar as suas filhas?

De vez em quando. Odeio aeroportos, não gosto nada de viajar, já viajei tudo o quer queria na minha vida e vi tudo o que quero ver e o que ainda não vi não quero ver. E acho que hoje em dia andar de avião é muito desconfortável para uma pessoa da minha idade. Se tivesse 20 anos adorava. Mas nesta idade já me faz um bocado de confusão grandes quantidades de pessoas à minha volta e é como os aeroportos estão hoje em dia. Envelhece-se, adquire-se novos hábitos, receios e vontades. Aquilo que nos estimulava quando tínhamos 40 anos não é o que nos estimula aos 60. Duas vezes por ano vou a Londres ver as minhas filhas e o meu neto – ou os meus netos, que daqui a cinco dias vou ter outro. Mas de uma maneira geral evito viajar.

Nunca teve curiosidade em conhecer a família grega da sua avó?

Tive, mas sou um bocado mandrião e aquilo ia dar um bocado de trabalho. O mais perto que estive de tentar encontrá-los foi uma vez que estava na Grécia e contei a história e disse ‘a minha avó chamava-se Evelyn Philipakos’. ‘Philipakos?’, disse-me o grego. ‘Isso é de uma ilha, o nome é conhecido e de certeza que é dessa ilha’. Mas, depois, confesso que não tive interesse para avançar mais e descobrir.

Se tivesse de eleger uma refeição da sua vida, qual elegia?

A que gostei mais foi uma do José Avillez. Foi uma refeição no Tavares, antes de ele ser a estrela e o talento que é hoje em dia. Fui ao Tavares almoçar e foi uma refeição feita pelo Avillez e não te consigo dizer quais eram os pratos, mas foi das melhores coisas que comi até hoje.

O que lhe falta fazer?

Nada. Se morresse amanhã morria com um enorme sorriso na cara, fui privilegiadíssimo, fui uma pessoa com uma vida extraordinariamente feliz. Houve dramas, mas, de uma maneira geral, sou um privilegiado e felizardo e por isso tenho de dar graças a deus. Não falta fazer absolutamente nada. Falta-me ajudar pessoas, fazer aos outros aquilo que eu quero que me façam a mim. Foi uma regra que aprendi muito cedo. Sinto-me em paz. Não falta nada.