Eutanásia?

Fui testemunha do sofrimento sem esperança de familiares e amigos, que tinham perfeita consciência da inutilidade da luta e do sacrifício 

A prendi na catequese que a vida é sagrada, não sendo lícito a ninguém dispor dela – nem da sua, nem da do seu semelhante. 

Com a formação das convicções pessoais, fui interiorizando que as pessoas não são descartáveis, mesmo quando já não são autónomas e precisam de acompanhamento permanente. 

Até aqui tudo bem. O valor que dou à vida é tal que tenho bem presente a intensidade com que roguei a Deus que salvasse a minha mãe, que perdi aos 18 anos, e de, aos 41, ter voltado a apelar à intervenção divina para superar uma doença estranha, que teimou em não se deixar decifrar por dez longos meses. 

São vivências que me levariam a defender o primado da vida, quaisquer que fossem as circunstâncias. Infelizmente, a realidade é bem mais complexa.

Não raramente, fui testemunha do sofrimento sem esperança de familiares e amigos, que tinham perfeita consciência da inutilidade da luta e do sacrifício que era continuarem a viver. A muitos, vi implorar que os libertassem da dor e os ajudassem a manter uns restos de dignidade, cada dia mais escassos. Como os compreendi… Em meses, ou anos, partilhei as suas angústias, conscientes de que só poderiam esperar mais sofrimento e humilhação. Aí, fui forçado a render-me: a regra da catequese talvez tivesse exceções.

Lembrei-me então de que, na mesma igreja, me foi ensinado que Deus é infinitamente bom e misericordioso, e que, na sua infinita bondade, não pode querer para os seus filhos um sofrimento sem esperança. 

Diz-me a razão, ou apenas a intuição, que o bom Deus do Novo Testamento reservará a punição pelos pecados terrenos para depois do Juízo Final; e aceitará que é uma bênção – também divina, porque Ele próprio a impulsionou -, o facto de os avanços da civilização e da ciência já permitirem aliviar o sofrimento, com cuidados paliativos que mitigam a dor e possibilitam a preservação da vida. Dou graças a Deus por viver numa época em que posso beneficiar deste enorme progresso. Mas será este o caminho que tudo resolve? 

Em idade em que já não tem sentido aspirar a que as descobertas da medicina apressem a solução para males sem cura, porquê a opção única? Por que não a alternativa de pôr fim à dor, em vez de apenas a minorar? Por que não a possibilidade de recurso a um serviço, devidamente credenciado, que faça, com dignidade e respeito pela pessoa, o que ela já não pode fazer por si? 

A vontade e o comprovado estado de lucidez do próprio, e a ausência de objeções de consciência por parte de quem aceite atender ao pedido, não serão condições suficientes? A fé na bondade divida diz-me que os caminhos do Céu não serão cortados, nem aos que peçam, nem aos que atendam os pedidos. 

Amo a vida, e bem desejaria viver outro tanto, mas estou pronto a fazer tudo o que esteja ao meu alcance para ajudar à aprovação de leis que permitam a escolha. Com a discussão séria do assunto, com as melhorias que médicos, filósofos, teólogos e comités de ética possam acrescentar às propostas dos partidos, mas que aprovem o que entendo ser um avanço civilizacional. Será uma opção, nunca uma imposição.