Marta Jacinto. “Disseram-nos que não queriam ter o nome associado a doenças raras”

Na data em que se assinala o Dia Mundial das Doenças Raras, presidente de aliança que junta associações de doentes fala do papel do associativismo e das necessidades das famílias

À frente da Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras, Marta Jacinto, de 41 anos, lamenta que a polémica em torno da Raríssimas tenha lançado um manto de suspeição sobre todas as associações. A quebra nos apoios para as ações do Dia Mundial das Doenças Raras, que se assinala hoje, é um dos reflexos. Informática de profissão, Marta foi diagnosticada aos 17 anos com uma doença rara. É presidente da aliança que junta dez associações de doentes em regime voluntário, tal como os restantes dirigentes. Fala das necessidades dos portadores das doenças, do papel das associações e do estigma, que pode limitar o dia-a-dia bem para lá da condição física e mental.

Sente-se o impacto do caso Raríssimas nas associações de doenças raras?

Na Aliança, sentimos na pele o impacto. As nossas atividades mais visíveis para o público normalmente centram-se no Dia das Doenças Raras e este ano notámos que houve uma muito menor recetividade da parte dos órgãos de comunicação social e de entidades que no passado nos apoiaram e que este ano nos responderam que não queriam ter o seu nome associado às doenças raras. 

Respondem-vos diretamente isso?

Sim, que não iam dar apoio este ano porque não queriam estar associados. E mesmo nós dizendo que não temos nada a ver com a Raríssimas, porque não é nossa associada e nunca foi, nem com a Fedra, que foi outra entidade visada, tivemos esta resposta. Não é caso único. Nem todas foram tão diretas, houve outras que tiveram uma abordagem diferente, uma diminuição do apoio face ao histórico dos últimos anos. 

Que entidades?

Preferimos não identificar. Percebemos de certa forma e esperamos que voltem a dar-nos o apoio que sempre nos deram.

Representam quantas associações?

Dez, tal como a Fedra. A Aliança e a Fedra são as duas entidades agregadoras das associações de doenças raras em Portugal. Para nós, infelizmente: entendemos que devia haver uma estrutura forte que representasse as associações todas, especialmente num país pequeno como o nosso.

Tinham uma relação problemática com a Raríssimas?

Não. Creio que existe uma grande confusão no nosso país quanto ao papel de cada entidade. A Raríssimas é uma associação de doentes como qualquer outra. Depois há as estruturas agregadoras, que têm um papel de interação, por exemplo, com a Europa. Mas o que passa em Portugal é que a Raríssimas, até por causa do nome, parece que representa todas as associações e todas as doenças.

Em atividade e financiamento, entre Estado e donativos, teria uma dimensão superior.

Sim, e isso não contesto, o que digo é que não são únicos. Podem dizer que representam doentes de lisossoma, mas não terão a especificidade e conhecimento que a associação específica desse grupo de doenças tem. Dito isto, nunca tivemos nenhum problema.

Nos bastidores não havia comentários?

Desde janeiro de 2017 que havia uma suspeita de que alguma coisa estava errada, pelo menos com a federação, dada a carta aberta que foi enviada pelo membro demissionário da direção, a Piedade Líbano Monteiro. Foi uma carta enviada a todas as associações onde se questionava a necessidade de um veículo de luxo numa entidade sem fins lucrativos e o pagamento de viagens aparentemente pessoais a membro da direção e à presidente.

Além da retração dos apoios do Dia das Doenças Raras, há associações que no dia-a-dia estejam perto da falência ou mais limitadas nas atividades?

Há uma menor recetividade, até da opinião pública. Nós, na Aliança, não tivemos uma diminuição do valor global dos apoios, mas exige muito mais esforço consegui-los. Eu própria tive amigos a questionar-me: “Mas tu, afinal, estás metida nisto?” As pessoas, mesmo conhecendo–nos, ficam com dúvidas, e acho que este caso veio abalar não só as doenças raras, mas todas as associações de doentes e sem fins lucrativos. As pessoas retraem–se porque pensam que vão estar a apoiar despesas que não fazem sentido. O que posso garantir é que os órgãos na Aliança são 100% voluntários e sempre foram. Estamos de consciência tranquila. A diferença é que agora temos de o dizer porque, para nós, isso sempre foi óbvio.

O tema deste dia mundial é o apoio à investigação.

Sim, seguimos sempre o tema internacional que é decidido pela rede europeia Eurordis e votado pelas alianças nacionais. O tema geral é investigação e o lema deste ano é “apoie as doenças raras, mostre-o” – em inglês, “show your rare, show you care”.

Por cá acaba por ser um pouco irónico.

Sim, e por isso ainda mais faz sentido termos este tema. Vamos ter na Assembleia da República uma sessão de esclarecimento dirigida ao público mais desconhecedor das doenças raras.

Além de mais investigação, o que faz mais falta aos portadores?

Essencialmente que todas as pessoas possam ter acesso às consultas de que necessitam, que não haja limitações. Se um doente precisa de terapia da fala, que tenha acesso às sessões necessárias sem ter de fazer um intervalo enquanto consegue renovar as prescrições. As famílias acabam por ter de suportar do seu bolso as várias sessões de terapia. Podemos ter alguém em quem não se nota nada e outra pessoa que está completamente incapacitada em termos físicos ou mentais. São realidades muito díspares e, muitas vezes, as terapias são essenciais para manter alguma qualidade de vida. A investigação, depois, é essencial para que haja cada vez mais tratamentos que, mesmo que não possibilitem uma cura, podem fazer com que a pessoa viva melhor.

Em Portugal, o acesso a medicamentos inovadores nesta área é rápido?

Por vezes há medicamentos aprovados na Europa que não chegam logo cá mas, muitas vezes, o uso acaba por ser autorizado. Não temos ideia que exista um grande atraso. Os problemas estão sobretudo nestes apoios complementares, mas isso também se resolve com a criação de centros de referência, que começam a existir para algumas doenças. Além de reforçar a investigação, podem melhorar o acesso a consultas e garantir uma abordagem multidisciplinar. Sendo doenças sistémicas, é bom haver uma visão global sobre o tratamento. Outro ponto importante é o registo dos doentes raros, que é algo que está a cargo de uma comissão interministerial para a estratégia das doenças raras. Parece-nos essencial para que se possa compreender a realidade nacional, mas garantindo-se sempre a privacidade e que a informação está protegida. 

Ouvimos falar, da parte de doentes oncológicos , das dificuldades em obter créditos. Muitas vezes, as doenças raras manifestam-se em criança. Em adultos, também têm esta experiência?

Sim. Há uma franja significativa de doenças raras que se manifestam em criança e algumas que limitam a expetativa de vida, mas há várias que se manifestam em idade adulta. E aqui há que falar de um outro problema que é o seguimento das pessoas na transição da infância para a idade adulta. Às vezes são seguidas em centros e hospitais, por exemplo na Estefânia, mas depois fazem 18 anos e não têm logo sítio para onde ir. É algo que os pais nos relatam: notam mudanças no tipo de atendimento e acompanhamento. Precisamos de uma transição mais suave. Mas voltando às questões de privacidade, tanto o registo como os cartões de doentes raros – que são importantes para uma pessoa, chegando a um serviço de urgências, ser bem atendida tendo em conta a especificidade da sua doença – levantam preocupações, sobretudo se tivermos em conta que 80% são doenças genéticas, algumas de origem hereditária. Expor a doença de uma pessoa pode ter impacto para familiares seus no acesso a créditos, seguros de saúde…

… filhos poderem ser discriminados?

Sim, pode haver essa dúvida e esse estigma. Nunca nos foi relatado nenhum caso, mas o acesso a documentos, hoje em dia, é cada vez mais facilitado… Mas isto talvez seja defeito profissional meu.

A Marta é portadora de uma doença rara. Com que idade foi diagnosticada?

Com 17 anos. O pseudoxantoma elástico (PXE) é uma doença que normalmente não se manifesta na infância. Trata-se de um gene que codifica uma proteína que, como é defeituoso, a proteína não fica bem estruturada e faz com que uma substância que ainda não é bem conhecida não seja levada para a corrente sanguínea. Pensa-se que isso depois tem um efeito na mineralização das células, o que afeta as zonas do corpo que dobram, os olhos, o fígado.

No dia-a-dia, é uma doença muito limitadora?

Podemos perder a visão central, embora já existam alguns tratamentos. Eu tenho várias lesões no corpo, mas nada que me impeça de fazer o que quer que seja. Mas sei desde os 20 anos que, se inclinar a cara um bocadinho para a direita, fico com rugas no pescoço como se tivesse 70 anos. Tenho alguns sintomas de envelhecimento precoce, mas não é nada que me impeça de ir à praia e não tenho dores ao andar. Há pessoas com a minha doença que não conseguem andar sem cachecol. Mas a mim também já me perguntaram o que é que eu tinha no pescoço…

O pai ou a mãe tinham a doença?

Nenhum tinha. Serão os dois portadores, mas a doença é recessiva, o que quer dizer que só se manifesta se a pessoa herdar uma cópia do gene defeituoso dos dois.

Com que é que se sonha? Com o dia em que descobrem o que é a tal substância?

Sim, sem dúvida. São sempre passinhos de bebé. Em 1999, quando comecei a envolver-me nisto, nem se sabia qual era o cromossoma ou o gene. Depois foram criados ratinhos com PXE. Depois descobriu–se que a proteína se manifesta no fígado. E, agora, o próximo passo é perceber qual é a substância que falta. Sabendo isso, poderá ser possível fabricá-la artificialmente e administrá-la de alguma forma.

O que é mais marcante quando se tem um diagnóstico com uma doença rara? 

Ter o próprio diagnóstico é algo muito importante. Pior do que o diagnóstico, mesmo que seja com uma coisa rara de que pouco se sabe, é a pessoa não saber o que tem. Pode levar uma década, porque a informação é escassa, porque os sintomas se confundem com doenças mais vulgares. Por vezes, até se sabe que uma doença é de uma determinada família de doenças, mas não está ainda descrita ou há ali qualquer coisa que não bate certo e não permite um diagnóstico exato. Quando finalmente há um diagnóstico, a pessoa consegue sossegar um pouco. Depois, algo importante é quando se fala com outras pessoas com a mesma doença. 

Lembra-se da primeira vez que conheceu alguém com PXE?

Lembro-me. Mas marcou-me se calhar mais as vezes em que fui a primeira pessoa que outras pessoas conheceram.

De que falam?

Muitas vezes, o alívio das pessoas é perceberem que certos cuidados que têm de ter, que não podem tomar aspirinas, anti–inflamatórios não esteroides por exemplo, que tudo isso é suportável. 

Acontece-lhe falar com jovens de 17 anos, a idade que tinha ao ser diagnosticada?

Sim, mas também há pessoas que só chegam quando têm 30 ou 40 e já andaram desesperadas. Felizmente, hoje acontece menos, mas cheguei a encontrar pessoas a quem foi dito que não podiam ter filhos.

A Marta tem filhos?

Sim. Tenho dois filhos pequenos, há pouco tempo, mas isso não tem a ver com a doença, foi a história da vida. Obviamente que tive de fazer exames para ver se podia ter um parto normal. Mas antigamente havia médicos que diziam que as pessoas não podiam engravidar quando os estudos indicam que não há consequências de maior de as mulheres com PXE engravidarem.

É isso que move as associações?

Sim. Claro que depois, para lá disso, há associações que fazem um trabalho meritório de prestação de serviços especializados, mas isso pode ser garantido noutros sítios. Para este encontro entre doentes, as associações são essenciais.