Paulo Portas: “A Moscovo de hoje não é a Moscovo da URSS”

Portas avisa: uma política externa hostil à Rússia não serve os interesses ocidentais. E Trump é caso bem diferente de Richard Nixon. 

Paulo Portas: “A Moscovo de hoje não é a Moscovo da URSS”

O debate foi melhor do que o filme. Ou, pelo menos, os membros do painel foram mais favoráveis à história estudada do que à narrativa filmada. Mark Felt – o homem que derrubou a Casa Branca – não é um grande filme, mas deu um belo debate, esta semana, nos cinemas do El Corte Inglês. 

Moderado pelo jornalista David Dinis, contou com o ex-vice-primeiro-ministro Paulo Portas e os professores universitários e colunistas João Pereira Coutinho e João Taborda da Gama. A infraestrutura sonora, todavia, – e não o critério editorial deste semanário – concederam maior protagonismo vocal a Portas, ainda que os restantes, aos ouvidos dos que marcaram presença, tenham igualmente contado a história como o filme não conseguiu fazê-lo.

Disse, então, Portas, que conhece bem ambos os lados da trincheira retratada – o jornalistas que reportaram o caso Watergate e os políticos que com ele conviveram -, renegando paralelismos entre eras: «Uma coisa é um Presidente dos Estados Unidos [Ricard Nixon] que não confia, por ter uma paranoia específica, nas agências oficiais. Que faz uma célula na Casa Branca com ex-agentes da CIA para trabalhos ilegais. Outra coisa é o que estamos a falar hoje em dia [com Donald Trump]. Até ver, estamos no domínio da opinião e não do domínio dos factos. Estamos no domínio da tentativa de demonstração que o Presidente dos Estados Unidos pretende fazer uma cooperação absolutamente não óbvia com um país chamado Rússia», diferenciou o homem que já carregou a pasta dos Negócios Estrangeiros. «Os diretores de campanha encontraram-se com russos e os embaixadores russos encontraram-se com a equipa de transição. Como se isso fosse um crime! Não é isso que fazem embaixadores? Reunir com representantes políticos de países em que estão acreditados?», inquiriu, mais assertivamente. «Dizem-me que os russos fizeram ‘fake news’ nos Estados Unidos. Mas isso é alguma novidade? Os Estados Unidos não espiaram o telemóvel da sra. Merkel aqui há uns anos?», insistiu. «Eu admito uma discussão sobre a política externa entre a Rússia e o Ocidente, claro. Faço parte daqueles que consideram que a Rússia de hoje não é a União Soviética, que a Moscovo de hoje não é a mesma de antes da queda do Muro. Mas isso não se confunde com factos que levem à prova de um processo por obstrução de justiça. Estamos, por enquanto, em matéria de opinião», rematou, sobre esse tópico. 

A restante conversa foi de aprofundamento do que ao filme faltara. Portas, um conservador, constatou que o dilema moral de Mark Felt – alto funciónario do FBI que serviu de fonte ao Washington Post no escândalo Watergate -, é «absolutamente humano».

«Houve sempre no então diretor-adjunto do FBI um dilema moral entre aquilo que ele achava que era o dever de funcionário de uma administração do Governo de uma das superpotências do mundo, e aquilo que ele achava que era, no sentido americano, uma conspiração para viabilizar um crime e obstruir a investigação desse crime», tornou a clarificar. 

«Durante 30 anos, apesar das pressões e da família, o segredo foi mantido intacto. Quando contou aos filhos, insistiu que não se dizia nenhum assunto que afetasse a administração ou a segurança do país seja a quem for. Chegou até a dizer que ‘Watergate não é uma coisa de que me orgulhe’. E foi nessa tensão interior que uma pessoa que entrou no FBI em 1942, que viveu toda a era Hoover, que fez do FBI o centro de poder dos Estados Unidos, faz com que seja mais importante o seu lado anti-heroico do que o seu lado heroico. Viveu em dilema face ao que fez. Decidiu, muito perto da morte, dizer que fora ele a falar. Mas não foi uma história nem linear nem isenta de contradições: isso é relevante por mais que perturbe a versão mais mítica desse tempo», continuou, citando trabalhos biográficos das personalidades protagonistas. 

Para Portas, o filme faz uma confusão entre a história pessoal de Mark Felt e a história institucional de Mark Felt. «O que aconteceu foi contribuir para que todos os Estados Unidos da América e o mundo percebessem que toda a gente tem de submeter-se à lei, incluindo o Presidente. Curiosamente, a seguir à queda de Nixon, à resignação, Felt foi acusado, incluindo por colegas do FBI, de ter contribuído para reduzir os direitos civis americanos – como o filme aludiu, nas investigações ao grupo Weather Underground, um grupo violento, de extrema-esquerda, não deixando, portanto, de ser irónico que dentro da mesma casa que Mark Felt procurou defender tenha sido maltratado por essa casa e pela própria história». 

Indo mais fundo na personalidade de quem dá o nome ao filme, Paulo Portas contou que, já na Presidência de Ronald Reagan, o ex-Presidente Richard Nixon foi chamado a depor por escrito no julgamento de Mark Felt. «E depôs a favor dele. E quando ele é absolvido dá-lhe os parabéns». Taborda da Gama acrescentaria até que Nixon oferecera uma garrafa de champanhe ao mesmo homem que fora responsável pelo fim da sua presidência.

Talvez só mesmo na terra dos sonhos se possa celebrar perder o emprego. Ou talvez só na América os homens entendam a tal ténue e natural linha que faz os «dilemas» mencionados por Portas. E, pelo caminho, beber um copo.