Rúben Semedo. O menino da Boba que nunca esqueceu as origens

O ‘menino que nunca tinha estado de castigo no quarto’, a ‘Estrela do bairro’ que, dos jogos de rua, conseguiu chegar aos relvados está agora atrás das grades em Espanha. O b,i. foi até ao Bairro da Boba em busca da história da ascensão – e queda – de Rúben Semedo.

Foi no bairro da Boba que Rúben Semedo cresceu. Nasceu no bairro das Fontainhas em 1994 e mudou-se com a família no início dos anos 2000 para a Boba quando este bairro social foi construído para acolher os moradores de alguns dos bairros de lata da Amadora.

Aqui, no bairro da freguesia da Mina de Água feito de apartamentos brancos empilhados, há sempre movimento nas ruas. Há quem ande de bicicleta entre os carros que vão passando, há quem se sente ao sol e há quem jogue à bola. Rúben Semedo era um dos muitos jovens do bairro de ascendência cabo-verdiana que, com os pais a trabalhar até à noite, passava os dias na rua a jogar à bola.

Aqui, todos conhecem a família Semedo e a opinião é sempre a mesma: Rúben não podia ter tido uma educação melhor. Ao contrário do que acontece em muitas famílias vizinhas, esta nunca se desestruturou, nem mesmo quando o pai foi detido. 

Destacou-se desde muito cedo. Na rua, os amigos viam nele qualidades pouco comuns para a idade. «Mesmo em criança, o Rúben sempre se destacou. Nos escalões mais jovens era sempre o melhor, a nível físico e técnico. Sabíamos que ia ter um grande futuro, todos víamos que era um grande jogador», diz ao b,i. Jaquílson Pereira, amigo de Rúben dos tempos da Boba. «É a estrela do bairro!», remata.

Essas características fizeram com que desse nas vistas e aos 14 anos começou a jogar no Clube Futebol Benfica, mais conhecido como Fofó, onde conheceu Gelson Martins. Um ano depois, o Sporting chamou-os e foi lá que os dois acabaram por fazer a formação como jogadores, desde os juvenis até à equipa principal.

Rúben Semedo fez 48 jogos na equipa principal do Sporting e pelo meio ainda passou pelo Reus, de Espanha, e pelo Vitória de Setúbal, em ambos os casos por empréstimo dos leões. O internacional português pelas camadas jovens era visto por Jorge Jesus, seu treinador no Sporting, como o futuro central da seleção nacional.

‘Cu bo ti fim do mundo’

No último jogo do Sporting, Gelson Martins marcou o golo da vitória do Sporting frente ao Moreirense aos 92 minutos e, ainda assim, deixou os sportinguistas com sentimentos mistos. Porquê? Porque já tinha levado um cartão amarelo e, mesmo assim, tirou a camisola para dedicar uma mensagem a Rúben Semedo: ‘Cu bo ti fim do mundo’, crioulo cabo-verdiano que, em português, significa «contigo até ao fim do mundo». Levou o segundo amarelo, foi expulso e não joga no estádio do Dragão na próxima jornada.

A amizade entre Rúben e Gelson vem dos tempos do Fofó. Cresceram juntos, formaram-se juntos, foram juntos para o Sporting e chegaram juntos à equipa principal. Enquanto o extremo leonino nasceu em Cabo Verde, o central já nasceu em Portugal, apesar de vir de uma família cabo-verdiana. No verão de 2016, foi Gelson quem levou pela primeira vez Rúben à terra da família e aproveitaram para passar pela Aldeia SOS para fazer trabalho humanitário com as crianças cabo-verdianas.

Mal surgiram as primeiras notícias da detenção de Rúben Semedo em Espanha, Gelson Martins utilizou as redes sociais para partilhar uma fotografia em que aparecem os dois juntos cuja descrição era também ‘cu bo ti fim do mundo’.

Apesar de não ter nascido em Cabo Verde, a comunidade do país tem apoiado o defesa. A face mais visível foi mesmo Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República de Cabo Verde, que esta semana publicou no Facebook uma mensagem de apoio a Rúben Semedo: «Estou a procurar saber o que se passa com o futebolista Rúben Semedo. Acompanho e interesso-me pelo caso». O Chefe de Estado cabo-verdiano referiu que se sentia «tocado» pelo caso e pelo homem. «Vejo-o como um dos ‘nossos’», acrescentou.

A revolta da Boba

Aos 23 anos, depois de ser uma das figuras da equipa do Sporting e de uma transferência milionária para os espanhóis do Villarreal, Rúben é visto como o símbolo da comunidade, que agora se diz «revoltada» com a detenção.

A família do jogador continua a viver na Boba e o defesa-central não perde uma oportunidade para fazer uma visita ao bairro onde cresceu e onde tem os amigos. «Mesmo depois de se tornar conhecido, continuava a vir aqui ao bairro para estar com os amigos. Uma vez até veio mesmo depois de um dérbi contra o Benfica», confessa Jaquílson. «No fundo, ele nunca chegou a sair do bairro», refere Dani Barradas, um outro amigo de Rúben.

E era recíproco. Os amigos do bairro acompanhavam o crescimento de Rúben dentro e fora das quatro linhas. «Os amigos reuniam-se a ver os jogos dele. No bairro conversavam sobre a sua carreira e criticavam por não ser chamado à seleção nacional», diz Dani.

A família remeteu-se ao silêncio e no bairro quase ninguém quer falar sobre o caso. Semedo foi detido na passada semana por suspeita de tentativa de homicídio, agressão e roubo. Depois de ter sido ouvido pela juíza espanhol, ficou em prisão preventiva.

Apesar das alegações, quem conhece Rúben não lhe reconhece atitudes violentas. «Ninguém lhe podia apontar nada. Nunca sequer o vi andar à porrada. Foi um grande choque, ele nunca se meteu em nada parecido», refere Dani. «Ele, que nunca esteve de castigo no quarto, agora vê-se privado da sua liberdade…», acrescenta.

«Aqui no bairro ficámos todos revoltados. Fizeram parecer que o Rúben era o mau da fita e ele não é o vilão desta história. Isto não foi como querem fazer crer, ele não tinha nenhum grupinho nem nenhum gangue para assaltar casas», explica Jaquílson, questionando: «Qual era a necessidade dele para fazer isso? Nem sequer percebo porque é que ele ficou em prisão preventiva».

Na Boba a opinião é de que o caso Semedo tem mostrado a face mais racista da Justiça e da comunicação social, que não tem defendido o jogador português e que tem ainda dado azo a mais polémicas. Jaquílson diz mesmo que se trata de uma «perseguição». A maneira como a sociedade tem encarado o caso, dando Rúben Semedo como culpado mesmo antes de se conhecerem todos os factos, revela que «ainda há discriminação». «Para mim, é claro: qualquer negro que sobressai na sua comunidade e que continue a sua ligação ao bairro, é logo penalizado. Quem vem desses bairros vai sempre ter problemas», diz Jaquílson. «Os negros que são bem-sucedidos têm de se começar a dar com brancos? Esticar o cabelo? Clarear a pele? A desgraça é conotada coletivamente, o sucesso não», atira.

O que está em causa

Agora, o futuro de Rúben Semedo está entregue à Justiça. Já esta terça-feira, o Tribunal Superior de Justiça da Comunidade Valenciana anunciou através de um comunicado que uma das acusações contra o futebolista, que dizia respeito a alegadas ameaças e maus tratos, foi arquivada. Segundo o jornal espanhol Las Provincias, as alegadas vítimas terão retirado a queixa contra Rúben Semedo.

Os queixosos, um homem e uma mulher que trabalham numa discoteca da cidade espanhola de Valencia, alegam que o jogador, juntamente com outras duas pessoas, os terão ameaçado com uma arma de fogo e depois retirado as chaves do apartamento onde foram roubar dinheiro e objetos.

Mas há uma outra versão desta história. Catió Baldé, o agente de Rúben Semedo, contou que, na verdade, o jogador português foi vítima de uma burla. «O Rúben foi vítima de uma burla. Aquilo que poderá ter acontecido, na atitude do Rúben, é ter reagido fora do âmbito da lei, daquilo que é legal, se é que aconteceu, mas porque foi vítima de burla», explicou Catió Baldé à TSF. «A carreira do jogador fica manchada com esta detenção. Esperamos que seja mais um caso que não tenha gravidade. É mau para um atleta jovem que estava a começar uma carreira promissora», acrescentou.

A situação já trouxe consequências para o jogador. O Villarreal, clube para onde se transferiu a troco de 14 milhões de euros que entraram para os cofres do Sporting, já anunciou a suspensão do contrato do jogador, assim como do seu salário. Rúben Semedo fez apenas cinco jogos pela equipa do Villarreal, o último dos quais frente ao Barcelona onde se lesionou com gravidade.

«Nós ficamos a aguardar pela Justiça. Esperamos que esta situação se resolva rapidamente», diz Dani Barradas. Por outro lado, na Boba há também quem já não acredite na Justiça. «Somos bodes expiatórios de tudo o que se passa de mal na sociedade portuguesa. A discriminação existe», ouve-se no bairro. Mas «ele vai voltar a singrar, vão ver…», vaticinam os vizinhos de Rúben Semedo.