Mercado de Levante à beira do fim

Os cinco comerciantes que ainda se mantêm têm que se adaptar à inconstância das condições meteorológicas. Todos os dias montam e desmontam as bancas e os chapéus de sol – que os protegem da chuva do inverno e do calor do verão – ali a dois passos da Avenida de Roma. Para breve está prevista…

Mercado de Levante, tal como é hoje conhecido, tem os dias contados e também irá mudar de nome brevemente. Ainda assim, vai manter algumas das suas características. Localizado no bairro das Estacas, em Lisboa, a poucos metros da Avenida de Roma, é neste momento o único a funcionar na cidade com estes moldes ‘fora de portas’ e talvez por isso, tem perdido cada vez mais vendedores. A explicação é simples e chega-nos logo pelo nome do próprio mercado: os cinco comerciantes que ainda se mantêm têm que se adaptar à inconstância das condições meteorológicas. Todos os dias montam e desmontam – ou levantam – as bancas e os chapéus de sol, que os protegem da chuva do inverno e do calor do verão. 

Inaugurado em julho de 1949 foi sempre considerado provisório – mas quase 68 anos depois tudo se mantém na mesma. Com uma única exceção: o espaço está mais reduzido e os comerciantes continuam à espera do novo mercado -a obra de construção do novo edifício arrancou em agosto passado e deverá estar concluído no próximo mês de maio, garantiu ao b,i. a junta de freguesia de Alvalade.

A verdade é que há quem espere por esta «nova vida» do mercado há 55 anos, revela o senhor Fausto, que tem uma banca de hortaliça e fruta neste espaço há… 58 anos. Agora com 80 anos, sente-se com força para mudar o seu negócio para o novo mercado. «Quando comecei a vender aqui havia 80 bancas, todas seguidas quase a perder de vista. Agora restamos só nós, mas também é natural, nem todos conseguem chegar à minha idade e muitos já vieram para cá com uns 40 anos»,brinca. Mas apesar da sua idade avançada sente-se com coragem para começar «quase tudo de novo». E dá uma explicação: «sempre trabalhei aqui com a minha mulher, não faria sentido desistir agora depois de tantos anos de espera, ainda por cima, nesta altura, que conto também com a ajuda do meu sobrinho», garante ao b,i..

Já em relação aos tempos antigos, o senhor Fausto lembra que se vivia com muitas dificuldades e, como tal, o dinheiro que era gasto nas compras era bem mais reduzido. «Hoje os clientes têm maior poder de compra. Antigamente era uma miséria, não se faz ideia»,. E dá um exemplo: «Atualmente qualquer pessoa compra um quilo de nozes, há uns anos atrás só um ministro é que o poderia fazer».

Mas apesar do poder de compra ser agora mais elevado, a dona Beatriz mostra algum saudosismo em relação aos tempos passados. «O espaço era maior e passavam mais pessoas por aqui. Agora além de mais pequeno, o próprio bairro está mais envelhecido e, por isso, há menos clientes. Tenho muitas saudades do tempo em que se vendia bem», revela. 

A dona Beatriz vende roupa há 30 anos neste espaço, mas ainda tem dúvidas se irá para o novo mercado. «Não sei se tenho coragem para começar tudo de novo», diz. Ao mesmo tempo que questiona: «Só por ser um novo local irá trazer mais clientes? Tenho dúvidas. Não vai ser um local de passagem e os moradores vão ser os mesmos, sem falar nos preços que vão subir».

Ainda assim, continua a pensar no assunto. A ideia de se reformar é tentadora, mas a possível falta de rendimento poderá ser um entrave, principalmente depois de se ver a braços com o regresso de uma filha a casa acompanhada por mais dois netos. «A reforma vai ser muito curta e estou viúva há três anos. Se for para casa não me esperam tempos fáceis». 

Mais otimista está a dona Maria de Lurdes que vende legumes e frutas neste mercado desde 1980. Agora conta com uma ajuda preciosa dos seus dois filhos durante as manhãs. Um deles, informático de profissão, também já segue as pisadas da mãe e conhece praticamente todos os clientes pelo nome. A filha, que veio ajudar a mãe depois de a avó ter ficado doente, também não fica atrás. E assim se transformam todos os minutos em momentos de cavaqueira. «Não me vejo a trabalhar noutro sítio. Somos quase uma família. E é engraçado ter conhecido senhoras com crianças pequenas e que hoje são adultas e também vêm cá fazer compras», diz, enquanto nos confessa que não se vê a mudar de ramo. «Vendo na rua desde os sete anos não estou a imaginar-me a fazer outra coisa qualquer», refere ao b,i..

Condições meteorológicas

Ser o «único mercado de levante de Lisboa» é uma das características que cativa os visitantes, mas por outro lado desmotiva alguns comerciantes que ainda continuam a permanecer de pedra e cal no local. E pior do que o vento ou do que a chuva só mesmo o calor, principalmente no caso de venda de produtos que correm o risco de se estragarem com o tempo quente.

Ainda assim, Maria de Lurdes Martinho desvaloriza algumas das desmotivações confessadas pelos seus «concorrentes». «Já estamos habituados a montar todos os dias e há sempre pessoas dispostas a ajudar. Chego aqui todos os dias por volta das 7 horas da manhã e menos de uma hora depois está tudo pronto a funcionar». 

Quanto às queixas dos clientes por estarem demasiados expostos ao frio ou ao calor, a dona Lurdes – como é conhecida no mercado – brinca: «Isso são reclamações de quem não está habituado a viajar. Quem for a Paris ou a Londres depara-se com mercados de rua que ocupam quarteirões inteiros. Não entendo como é que acham que este é típico de um país de terceiro mundo», revela. 

O que vai mudar

A visão da Junta de Freguesia de Alvalade – nascida no final de 2013 na sequência da reforma administrativa de Lisboa – passa por respeitar a memória e a identidade deste espaço, preservando aquelas que são as suas características únicas. Ao mesmo tempo, a autarquia pretende melhorar as condições do mercado e o seu enquadramento com a área envolvente. 

«A requalificação do Mercado de Levante foi uma das propostas vencedoras do Orçamento Participativo de Lisboa de 2014, do qual recebeu 150 mil euros. Para tal, muito contribuiu a Junta de Freguesia, que se empenhou para que a candidatura àquele processo participativo se concretizasse e que congregou vontades e interesses para que o projeto se sagrasse vencedor», explica fonte oficial da Junta.

Depois dessa vitória, a Junta de Freguesia (que com a reorganização administrativa de Lisboa assumiu a sua gestão e manutenção) promoveu um processo de discussão pública sobre a requalificação deste equipamento.

 «O que gostaria que fosse feito no novo Mercado de Levante» foi a pergunta colocada aos cidadãos, aos quais foi dada a oportunidade de se pronunciarem sobre várias propostas para a requalificação do mercado. «Foi na sequência desse processo participativo que se decidiu avançar com o projeto que está agora em vias de concretização, no âmbito de um contrato de delegação de competências firmado com o Município de Lisboa em meados de 2016».

A obra de construção do novo edifício do mercado – um projeto do arquiteto Rui Mendes – teve início em agosto de 2017. A ideia passa por permitir a existência de «uma estrutura permanente/fixa, com as infraestruturas necessárias e espaço para programas permanentes», por forma a garantir melhores condições aos comerciantes deste mercado e a todos os que nele realizam as suas compras». 

A dona Lurdes confessa, no entanto, que nunca lhe perguntaram o que acha da requalificação ou que alterações considera prioritárias. «O presidente da Junta disse que gostava de deixar um marco [na freguesia]. Mas eu não acho que isto nos venha beneficiar. O mercado vai ser de levante na mesma, não vai ser uma coisa fechada. Vamos continuar à chuva, ao sol, com as mesmas condições», diz a comerciante, reconhecendo que teme que acrescentem mais vendedores, sinónimo de «mais concorrência».

Espaço vai passar a Mercado Jardim 

No entanto, mesmo com estas obras, o mercado manterá as suas características de levante: a estrutura irá funcionar como uma cobertura, sob a qual serão dispostas as células de venda, através das quais se poderá circular e atravessar para o espaço público envolvente, nomeadamente o jardim contíguo. 

Mas as mudanças não ficam por aqui. Após a conclusão dos trabalhos o mercado vai adotar a designação de Mercado Jardim. E porquê? Porque a intenção do arquiteto é intervencionar o pequeno jardim ao lado do mercado, havendo uma junção entre os dois elementos. Rui Mendes quer criar, com este projeto, a sensação de se estar num espaço interior (o mercado) e depois num espaço exterior (o jardim).

Para trás, fica a localização no parque de estacionamento da Rua Antero de Figueiredo que acolheu este mercado em 1949 – uma consequência do encerramento do emblemático mercado da Praça da Figueira. Nessa altura, a autarquia lisboeta inaugurou três mercados provisórios nos bairros da Penha de França, Mouraria e este, em Alvalade. Só este último mantém os mesmos moldes.