Como é isto de ser mulher?

Simone de Oliveira, Alice Vieira, Luísa Castel-Branco e São José Correia, quatro gerações, ajudam a pensar sobre a condição feminina ao longo das suas vidas e nos dias de hoje. As mais velhas são do tempo em que o período era tabu e ir ao café com as amigas estava fora de questão. Venceram-se barreiras,…

// A DESCOBERTA

"Sou de uma geração em que os rapazes não faziam nada. O meu irmão era o mais novo, mas era o senhor da casa. Uma pessoa tinha de perceber que era rapariga muito cedo. O rapaz não põe a mesa, não faz a cama, não faz rigorosamente nada. E, depois, a quantidade de coisas que não podias fazer por ser rapariga eram tantas que a minha solução foi ser muito provocadora e desde muito cedo. Foram muitos nãos e apanhei muita tareia. O ato mais público foi talvez quando andava no liceu, onde era proibido usarmos calças. Um dia levei calças e obrigaram-me a despi-las em frente de toda a gente e a ficar só de bata. É um exemplo ridículo, mas mostra como era tudo proibido, era uma sensação de clausura."

Luísa Castel-Branco 


“Costumo dizer que nasci livre por dentro e, por isso, dizerem-me ‘agora não fazes’ não foi algo que me limitasse. Ser mulher é extraordinário, mas era e continua a ser muito complicado. Há sempre um dedo apontado. Nem vale a pena comparar como era e como é hoje. Sair às três da manhã como vocês andam hoje na rua? Não existia. Não podíamos ir ao café. Era o pai, a mãe, o liceu, as brincadeiras normais, e ficámos por aí. 

Simone de Oliveira


"Fui criada por mulheres. Tinha uma tia que dizia: “Os homens desta casa já nasceram com asas nos pés.” Foi uma descoberta da condição feminina talvez um pouco ao contrário, sempre estive num meio familiar em que as mulheres tinham muito peso. De qualquer modo, comecei a trabalhar cedo. Nos anos 70, o jornalismo era um meio muito de homens e nunca senti qualquer distinção no que podia fazer por ser mulher.

Alice Vieira 


"Sou a irmã mais nova de quatro, somos três raparigas e um rapaz. Sempre fui muito maria-rapaz. Brincávamos na rua e a minha mãe nunca nos protegeu de forma diferente. As brincadeiras eram um bocadinho masculinas: jogar ao mata, andar de skate. Chegava a casa com os joelhos esfolados, mas não havia grande problema. Claro que, se calhar, havia aquela coisa de termos mais atenção a arrumar o quarto, a fazer a cama. O meu irmão era um bocadinho menos apertado. Depois havia uns bailes ao domingo à noite, na Incrível Almadense, a que nós não podíamos ir, aí aos 14 e 15, só dava para irmos às matinés. Mas não era uma castração por sermos meninas, era por sermos muito novas." 

São José Correia

 

// CORPO

"Quando me apareceu o período, pensei que estava tuberculosa. Sabia lá o que era. Tinha 11 anos e não sabia rigorosamente nada. Como pertencia a uma família em que muita gente tinha morrido com tuberculose, de repente vi aquilo e pensei que estava doente. Lembro-me de sair da casa de banho e ir pela casa fora. Fui ter com a costureira lá de casa a dizer que ia morrer. Ela lá me passou para as minhas velhas tias. Mas até acontecer, ninguém falava. Num dos meus primeiros livros falo disso. Eu falei com os meus filhos, mas ainda hoje são coisas de que não se fala muito, sobretudo com os rapazes."

Alice Vieira


"Ninguém falava de nada do que acontecia no corpo. Em vez de se salientar o facto de uma mulher, a partir do momento em que tem o período, em que pode ser mãe, ter um poder fantástico – que foi o que mais tarde expliquei à minha filha –, era razão de vergonha. Foi-me dito que era um assunto horrível de que não se falava nunca. E lembro-me de que não podia entrar na cozinha menstruada para fazer o que fosse, “estragava as coisas”. Passavam-nos logo a noção de repulsa e de algo estar errado com o nosso corpo."

Luísa Castel-Branco 


"Quando me apareceu a menstruação, falei com a minha mãe, não foi nada dramático. Mas havia uma muito maior retração em tudo o que era falar de corpo. Às vezes nem com uma amiga. Que vergonha, tirem-me daqui. Muitas coisas nem sequer tínhamos curiosidade de saber."

Simone de Oliveira 


"A certa altura, as minhas irmãs já tinham o período e as minhas amigas também, e eu era a única que não tinha. Lembro-me de pensar: “Quando é que vou ser mulher?” Quando apareceu, começaram todos a festejar lá em casa. Para mim, acabou por não ser motivo de grande alegria: sempre tive muitas dores. Devia haver uma lei para que as mulheres pudessem não trabalhar nos dois primeiros dias da menstruação mas, se calhar, ainda é cedo para irmos por aí."

São José Correia


 

// SEXO

"Vinha com o casamento. Havia algumas que tinham furado o cerco, havia exemplos de raparigas que tinham engravidado, abortos que tinham corrido mal, a desgraça que isso trazia às famílias e pessoas que eram enterradas a correr. Nem é preciso falar de sexo: era impossível sentarmo-nos num café; as mulheres iam tomar chá, em grupo e a determinada hora. Aliás, a noção de grupo de amigas não tem nada a ver. É por isso que me incomoda muitas vezes que hoje a geração mais nova não dê valor à liberdade que tem. Era fundamental falar-se mais disto nas aulas de História, perceber-se a pressão que havia, a dificuldade que era fazer-se um aborto. Isto era o mau, mas também nos deu outra coisa: foi uma geração que teve uma muito maior capacidade de sonho do que hoje, em que é tudo imediato."

Luísa Castel-Branco 


"Nunca me tentaram impor nada. Perdi a virgindade na adolescência, mas nunca foi uma coisa do “tanto faz”. Foi com o meu namorado na altura, de quem eu gostava muito, e foi normal que acontecesse. No início há sempre aqueles pensamentos do “será que estou a fazer bem”, “ele merece?”, mas depois somos guiados muito mais pelas hormonas. Mas ainda há alguns estereótipos machistas, a tendência a pensar que uma mulher com muitos namorados é uma vadia e que um homem com muitas namoradas é o maior. Nunca mo incutiram, se bem que não me lembro de ter tido grandes conversas com a minha mãe sobre isto. Quando uma amiga me diz que foi passar um fim de semana e fez isto ou aquilo, não penso rigorosamente nada. “Se foi bom e tiveste cuidado, valeu.” 

São José Correia

 

// AMOR

"Ama-se nas diferentes fases da vida de maneira diferente. Amar só uma vez não é a minha praia. O que se ama aos 40 não se ama aos 70. Não há uma definição de amor. Se é diferente entre homens e mulheres? Não acho. Terá mais a ver com a cultura, com a pessoa."

Simone de Oliveira 


"Sempre achei que tinha de ser dona de mim mesma. Acho que uma mulher só é independente quando é economicamente independente. Também não me parece que possamos generalizar. Quantas mulheres no meu tempo não tentaram também sair de casa, mas não tiveram hipótese de o fazer nem tinham hipótese de se sustentar, porque nos trabalhos eram malvistas se não tivessem ninguém e não estivessem dentro do tal padrão. Mesmo na família: eu era adjunta de um secretário de Estado e a minha mãe dizia que eu era secretária, que era uma coisa normal e própria para uma mulher." 

Luísa Castel-Branco


Há de tudo. Tenho amigos rapazes que procuram o amor para criarem uma família e alguns já criaram. E conheço raparigas que não querem casar – eu, por exemplo. Nunca quis casar, mesmo em miúda. E se me perguntares porquê não sei responder. A verdade é que não casei. Tenho uma relação fantástica, não casei nem vou casar. Acho que, na nossa sociedade, o casamento é muito um negócio e uma coisa virada para fora, para mostrar aos outros qualquer coisa. Não tenho nada contra, mas também não tenho nada a favor. Os meus pais nunca disseram nada: os meus irmãos são casados, eles têm os seus netinhos…

São José Correia


 

// TRABALHO

"Claro que existe discriminação. A minha vida não tem nada a ver com coisa nenhuma, por isso é difícil falar de como é para quem é empregada de escritório, professora, médica. Comecei a cantar muito cedo. Cantar, naquela altura, era ser menina da vida. É uma coisa que os mais novos nunca conseguirão perceber. As mulheres ganharam muito nos últimos anos, mas ainda precisam de ganhar mais."

Simone de Oliveira


"Nunca senti que tive de batalhar mais para fazer o que queria. Lembro-me de ir à noite fazer serviços para o jornal, ia onde era preciso ir. Nunca fui assediada, nem no trabalho nem em nenhum contexto, mas sabia que havia assédio, óbvio. Quando eu era miúda, as mulheres eram sobretudo forçadas a ficar em casa. É das coisas que sempre me lembro de contrariar. Lá em casa, respondiam “disparate”. Quando fui para o jornal, com 18 anos, teve de ser tudo muito combinado. Mas isto do trabalhar em casa ainda hoje se vê: o homem ainda é visto como alguém que “ajuda” em casa e não que faz o que é preciso."

Alice Vieira


"Dá-me vontade de rir quando de repente descobriram a discriminação e o assédio. Não quero ir por aí, mas tive cenas verdadeiramente inacreditáveis. A questão que se põe é sempre: aceitas entrar no jogo ou não? Se não aceitas, claro que és penalizado. Na prática, não se evoluiu muito em termos de fosso salarial e progressão de carreira. As mulheres continuam a ganhar menos que os homens e a trabalhar fora e dentro de casa que nem uns cães. Excetuando o grande centro urbano, talvez, se quiserem fazer queixa de levar tareia, o marido conhece a GNR, a PSP, quem for preciso. Se temos uma sociedade em que mais de 80% dos licenciados são mulheres, como é que os cargos estão todos nos homens? É que há um problema: elas têm de parir e ainda não inventaram uma máquina."

Luísa Castel-Branco


Grande parte das direções são masculinas e às vezes, quando tens feminino na direção, é tão machista ou mais do que se fosse um homem e isso é que devia ser estudado, é uma incógnita. Vai-se lá pela força, porque sim. Quanto a coisas que me tenham dito só por eu ser mulher…Também há coisas que só disse a rapazes. Esta questão deste nosso tempo chega a ser um pouco patética porque, se virmos bem, passamos a vida a assediar e a ser assediados. Sempre assediei e sempre fui assediada. Nunca fui agressiva com ninguém e nunca ninguém foi agressivo comigo. 

São José Correia 


 

// FILHOS

"Ser mãe não define uma mulher; que tipo de mãe é, pode definir. Há mulheres que nunca deviam ter tido filhos, são isentas de instinto maternal. Há mulheres que não podem ter filhos e davam ótimas mães. Agora, os homens num parto morriam. Noutro dia passou num dos canais um estudo feito numa universidade em que deitaram homens numa maca e lhes proporcionaram as dores do parto. Aguentaram o início. Mas e nós? Eu sempre quis ser mãe e ter filhos. Não sei quem inventou a epidural, mas era capaz de ir de joelhos a Fátima… Tive os três filhos sem epidural e com gravidezes e partos e horríveis." 

Luísa Castel-Branco


"Há quem queira ter filhos e quem não queira. Eu não viveria sem filhos, mas sempre foi normal para mim que uma rapariga não quisesse ter. Claro que na nossa altura era algo fundamental: casar, ficar em casa e ter filhos. Havia pouco espaço para seguir outro caminho."

Simone de Oliveira


"Sempre quis ter filhos e assim que casei tive logo os filhos que quis. Mas entendo perfeitamente que haja mulheres que não queiram ser mães e isso não quer dizer nada."

Alice Vieira 


"A maternidade é só mais uma característica. Esta semana vi um documentário lindo de morrer que está no Nimas, “O Nosso Último Tango”. É a história do casal mais antigo do tango argentino: dançaram 53 anos. Ele teve uma mulher e teve filhos, e ela nunca casou e nunca teve filhos. Perguntam-lhe porquê e ela não sabe o que responder, foi porque nunca calhou. E isso faz dela melhor ou pior mulher? Não faz dela nada, faz dela uma mulher normal com uma história. Nem todas as pessoas nasceram para ser pais, são porque é o que se faz normalmente. Agora, uma mulher não existe só para ter filhos e é algo que temos de ultrapassar. Uma mulher que não queira ter filhos pode preencher a sua vida com outras coisas e nem tem de dar justificações. Na minha família, nunca senti que me pediam justificações, só em algumas entrevistas. Sobretudo quando me aproximei dos 40 anos, era uma pergunta que aparecia sempre no final das entrevistas. É um preconceito que replicamos."

São José Correia


 

// ENVELHECER

"Acho que a forma como se envelhece depende mais do tipo de vida que a pessoa tem, do conforto que consegue, das dificuldades que tem de ultrapassar. Todos os meus cabelos brancos apareceram quando produzi a minha primeira curta-metragem, em 2013. Acho que são as preocupações, umas boas e outras más, que vão marcando a forma como envelhecemos, junto com o estilo de vida, o que comemos. Os rapazes tendem a estar mais à vontade, parece que não estão preocupados em agradar mas estão. Não é à toa que neste século aparece o metrossexual: homens que perderam um bocado aquela coisa de que não me vou arranjar porque não quero dar bandeira de que quero agradar. Já põem um creme, um gel no cabelo. Claro que não se maquilham como nós, mas tenho colegas que vão a jantares maquilhados, é uma coisa de festa. Tendem a fingir que são menos preocupados, mas querem tanto agradar como as mulheres."
São José Correia


"Acho que é mais difícil para uma mulher do que para um homem. A sociedade exige cada vez mais. Mas uma pessoa precisa de ter tempo para ver as rugas. A primeira vez que dei pela idade foi quando escrevi 60 e percebi que era sexagenária. Até lá fiz a minha vida a correr porque estava sozinha para sustentar e educar três filhos. Isso ocupa o tempo todo. Agora perdi 14 quilos e foi uma grande decisão que tomei. Não digo que temos todos de seguir um padrão de beleza, mas faz muito bem à autoestima." 

Luísa Castel-Branco


Não sei se custa mais aos homens ou às mulheres. Às vezes, os homens parece que ficam gagás, convencem-se de que estão a ficar mais novos. As mudanças no corpo, as rugas, nunca foram uma coisa que me preocupasse.

Simone de Oliveira


Acho que tenho envelhecido bem, tenho mais trabalho do que quando era nova. Talvez se uma pessoa 
tiver uma profissão que tem muito a ver com a aparência ou em que tem de andar mais, isto dos ossos torna-se complicado… Mas envelhecer é um problema para todos, homens e mulheres.

Alice Vieira


 

// ÀS MAIS NOVAS

"Os jovens, homens ou mulheres, têm de ser mais educados. O “por favor”, “obrigada”. Acho esta geração muito sem noção das coisas. Têm tudo e nós não tínhamos nada. Ter um transístor já era coisa… "
Simone de Oliveira 


"Se calhar por sorte, se calhar por feitio, sempre fiz o que quis. Mas desde sempre percebi que temos de lutar. O meu sonho de menina era sair de casa o mais rapidamente possível. E sempre disse que queria ser jornalista, porque a ideia que tinha – e tinha muitos jornalistas na família – era que alguém que hoje falava disto e amanhã daquilo nunca estava em casa. Portanto, se havia profissão para nunca estar em casa era essa. Foi o que fiz." 

Alice Vieira 


"É uma dúvida que tenho, o que dizer. Será que ao educar-se hoje uma rapariga devemos dizer que existe um príncipe encantado, que vale a pena acreditar que o amor existe, pode não durar uma vida inteira, mas existe e vale a pena lutar por isso? Se dissermos a uma adolescente o que a pode esperar a vida inteira, não vamos destruir a sua capacidade de sonhar? E se por acaso for ela a encontrar a pessoa que a complementa e vai ser feliz?" 

Luísa Castel-Branco


“Orgulha-te de quem tu és.” Não sei o que gostava que me tivessem dito, mas hoje, se tivesse de falar com uma adolescente, era o que diria. “Não te julgues nem mais nem menos.” Pode parecer um bocado um lugar-comum, mas ainda precisamos de o dizer. Ainda há muito a tendência de algumas raparigas se deixarem anular pelos namorados, que é onde começa, até na adolescência, a violência e o controlo."

São José Correia