Entre a pomba e o gavião…

Televisa: é esse o nome da televisão mexicana que deu início à exportação em massa de novelas, sobretudo para oBrasil, há mais de 60 anos. Os brasileiros foram bons alunos e trataram de nos vender a ideia. Amigas y Rivales terá sido uma espécie de ponto de partida, mas confesso que nunca vi tal coisa…

Televisa: é esse o nome da televisão mexicana que deu início à exportação em massa de novelas, sobretudo para oBrasil, há mais de 60 anos. Os brasileiros foram bons alunos e trataram de nos vender a ideia. Amigas y Rivales terá sido uma espécie de ponto de partida, mas confesso que nunca vi tal coisa e para o caso pouco importa. Depois surgiu a TVAzteca e a concorrência tornou-se feroz.

Mas vi Gavilán o Paloma, uma xaropada das antigas que conta a vida de José José, nascido José Rómulo Sosa Órtiz, estrela da canção mexicana muito dada a libações alcoólicas e a paixões desatadas. Depois, a música (eles chamam-lhe una tonadilla) com o mesmo nome passou a fazer parte dos hábitos de quem, volta e meia, esgalhava as cordas de uma viola em qualquer grupo de amigos.

Confesso que não atinjo a profundidade da letra. Que é a história de um engate, isso entra pelos ouvidos dentro logo no início: «No dejabas de mirar estabas sola/Completamente bella y sensual/Algo me arrastro hacia ti como una ola/Y fui y te dije hola que tal…».

Um clássico da aproximação em bares manhosos.

Agrada-me bastante que o atiradiço se veja metido numa camisa de onze varas a partir do momento em que arrasta, deleitado, a bela e sensual criatura para o leito, transformando-se numa pombinha atoleimada depois de se ter armado em gavião destemido: «Amiga, hay que ver como es el amor/Que vuela a quien lo toma/Gavilán o paloma/Pobre tonto, ingenuo charlatán/Que fui paloma por querer ser gavilán…».

Se é o próprio a considerar-se um pobre tonto e um charlatão ingénuo, quem sou eu para o desmentir? Tal ideia nunca me passou pela cabeça. E também não consigo que me passe pela cabeça a desilusão do gavião entusiasmado à beira de um dos momentos decisivos da sua vida amorosa: «Fui bajando lentamente tu vestido/Y tu no me dejaste ni hablar/Solamente suspirabas te necesito/Abrázame mas fuerte, mas/Al mirarte me sentí desengañado/Solo me dio frió tu calor/Lentamente te solté de entre mis brazos/Y dije estate quieta por favor…».

Admitam que é de forte densidade dramática, tanto o nem me deixaste falar com o deixa-te ficar quieta por favor. E que é bem possível que o pobre moço se tenha deixado cair nas teias de uma dominatrix inesperada: «Esa noche entre tus brazos caí en la trampa/Cazaste al aprendiz de seductor/Y me diste de comer sobre tu palma/Haciéndome tu humilde servidor…».

Imaginar o canastrão do José José a lamber as botas de uma valquíria adoidada, armada de chicote, é algo de retemperador que nos põe de bem com a vida e com a metafísica.

Como sempre, de cada vez que puxo pela memória, vem tudo misturado à superfície e, por isso, escrevi  esse arrazoado pensando emPablo Bartolucci, avançado do Huracán, da Argentina, nos anos-20, tido como criador de La Palomita. Dizem que Bartolucci se deu conta de que poderia repetir sobre a relva o movimento que fizera, em voo rasante, de cabeça em direcção a uma bola disputada por uma rapaziada mergulhada no caudal de um riacho até à cintura.
Tratou de se precaver, no entanto, contra a dureza das costuras das bolas que se usavam à época e amarrou um lenço branco em volta do crânio. Ficou famosa La vincha blanca de Pablo Bartolucci. E ele ganhou a alcunha de Paloma.

O gesto foi sendo aperfeiçoado pelo seu criador. Às vezes parecia que ficava deitado no ar, à espera do momento exacto do contacto entre a bola e a cabeça, ponta-de-lança horizontal pelo meio da verticalidade dos defesas adversários. E era sempre uma surpresa. Mesmo se toda a gente já tivesse a contar com a arremetida aére dessa pomba sem asas.

José Gabriel López Buisán, nascido em Espanha, desde criança radicado na Argentina, jornalista, escritor, político, lançou uma vez esta frase que marcou a história do futebol: «Una palomita de Bartolucci al rechazar con la cabeza la pelota que vuela por el flanco es una accion de belleza y coraje que inútilmente esperaréis de Nijinsky en ningún ballet».

O poeta russo Aleksandr Blok tinha razão quando falava da Grande Orquestra Universal dasArtes. Para ele, desporto era também arte.

Eduardo Sacheri recordou Bartolucci no seu conto Lo Raro Empezó Después, encarnado-o na personagem de Cachito Espora, o grande cabeceador: «Para marcarlo de arriba más o menos tenés que tirarte de arriba del travesaño».

Era isso que não sabiam fazer os defesas verticais. Tirá-lo pela medida da trave. Pablo, a Pomba, voava à sua vontade. Como o outro Pablo, Picasso, elegeu a pomba para entrar na pintura poética, o futebol elegeu La Palomita para entrar no campo da poesia.

E não havia drama mexicano capaz de cantar o seu voo matemático. Com um lenço branco em volta da cabeça.

afonso.melo@newsplex.pt