Fernando Tavares Pereira. “Com a minha pequenez, sou maior do que muitos”

É um de oito irmãos. Começou a trabalhar no campo aos cinco anos. Hoje tem um império que dá emprego a mais de 600 pessoas

É um dos rostos do Movimento de Apoio a Vítimas dos Incêndios de Midões, que procura apoiar aqueles que perderam tudo nos incêndios de 15 de outubro. Já se manifestou no Terreiro do Paço, já esteve na televisão, e não desiste de ajudar as vítimas dos incêndios. Ele próprio, de resto, teve de defender a sua casa das chamas, chegando a queimar a cabeça. Este empresário bem sucedido, que emprega cerca de 600 pessoas, e que começou do nada, não se cansa de criticar o ministro da Agricultura.

Concorda com a obrigatoriedade da limpeza das matas?

Já peca por tardia, uma vez que já há legislação há tantos anos e nada se fez. Só que querem fazer em dois meses o que precisa de ser feito em dez anos. Quem criou esta situação não deve conhecer o que é a terra, os matos, a floresta.

Por que diz isso?

Porque, se limparmos os matos agora, em maio e junho vão estar praticamente prontos para arder. Estão a obrigar as pessoas que ficaram sem nada – pessoas que não têm nem para comer – a limpar aquilo que não têm capacidade. Não quer dizer que uma ou outra pessoa não tenha sido descuidada, mas posso-lhe dizer que um ano antes dos incêndios houve pessoas que avisaram determinadas câmaras e as câmaras nada fizeram. Ainda sobre esta questão das limpezas, não há empresas para cortar mato, e as que há são caríssimas.

E o que pensa das multas?

As multas são uma forma de o Governo ir buscar o dinheiro a quem perdeu tudo nos incêndios. Por amor de Deus, estamos num país civilizado! Além disso, o que importa que os meus matos estejam cortados se os do meu vizinho não estão?

O que está a acontecer na sua zona?

Há freguesias e freguesias. Numas há muita gente que está a conseguir cortar as matas. Noutras o pessoal não chega para tudo. E não há empresas suficientes para limpar os matos. Há muito desemprego, mas não há mão-de-obra para trabalhar nessa área. É óbvio que as multas vão aparecer. Até lhe digo mais: o senhor ministro anda a enganar o primeiro-ministro, diz-lhe que está tudo bem. Há lá sete mil pessoas que não receberam um cêntimo pelos incêndios, fizeram a candidatura, mas eles fecharam a plataforma, não abriram novas candidaturas, e essas pessoas não têm nada. Há pessoas no concelho de Seia que bebem leite e comem erva e não vai lá ninguém. Isto é que é a nossa democracia? O senhor ministro que se demita e que ponha lá pessoal à altura a fazer o trabalho. E eu digo-lhe: não é necessário irmos para uma zona de guerra para vermos a guerra, temo-la cá em Portugal, na nossa região.

Pode contar-nos um pouco a sua história de vida, como era a sua família, que dificuldades passou quando era criança?

Eu sou o terceiro de oito irmãos.. A vida agora também não é fácil, mas antigamente era mais difícil. Lá em cima, no interior, estava-se longe de tudo. Cada irmão tinha de trabalhar para comer. Com cinco anos ei já ia para a fazenda com os meus pais e os meus irmãos mais velhos, fazíamos a sementeira das batatas, do feijão…

O terreno era vosso?

A maior parte era arrendado. Antigamente, havia terrenos para alugar, pagava-se um ou dois alqueires de milho por um hectare. Agora há terrenos e ninguém os quer, nem de graça. Havia um caso mais grave – a água era de partilhas e eu e o meu irmão mais velho tínhamos de ir descalços naquela levada para tapar os buracos por onde a água ia vazando. Saíamos de casa às três e meia ou quatro da manhã para abrirmos o açude e havia lá ratos e toupeiras que às vezes nos saíam debaixo dos pés. Éramos pequeninos e tínhamos medo. A água demorava uma hora e meia ou duas horas a chegar ao nosso terreno. Quando saíamos da escola tínhamos de ir trabalhar novamente. O meu pai vendia nas feiras comidas e bebidas e eu com cinco anos no verão também andava a vender laranjadas e pirolitos. Tinha de se trabalhar para comer. Os estudos fazem falta, é óbvio, mas acho que as pessoas deviam ter um bocadinho mais desta aprendizagem do que é a vida familiar, a vida do campo. E tem de se estudar aquilo que se quer fazer e de acordo com a aptidão de cada um. O que temos no país é muita pessoa formada, mas com pouco trabalho, porque a formação não foi escolhida de acordo com as necessidades do país. Antigamente nós tínhamos de ir fazendo aquilo que havia para fazer.

Além desses trabalhos no campo e a vender laranjadas fez outras coisas?

Também fazia as manhãs no restaurante do meu pai, com seis anos, quase todos os dias. No inverno, com frio, faltava a luz e tínhamos de encher os camiões à manivela. Eram vidas difíceis e continuam a ser.

Chegou a passar fome?

Isso não… e ainda hoje tenho de trabalhar para comer. Na altura não era fácil, com oito irmãos, não havia abundância nas coisas. Tinha de se trabalhar muito… Depois, com 10 anos, fui para serralheiro e comecei também a fazer seguros.

Já tinha a quarta classe? Como era isso?

Tinha, tinha. Naquele tempo, os emigrantes vinham cá fazer aqueles seguros de vida. A comissão era boa e fazia seguros de tudo. Ganhava-se bastante dinheiro. Comecei a trabalhar muito cedo, estabeleci-me com 18 anos, e posso dizer que em 1974 ganhava 500 escudos por dia como serralheiro.

Em 1973 um professor ganhava um conto e qualquer coisa por mês. Com 500 escudos por dia, devia ser um homem rico…

É verdade, mas tínhamos a família para sustentar. Em 1973 eu ganhava três contos e setecentos como serralheiro e depois fui ganhar 500 escudos por dia. Em junho ou julho de 1974 o sindicato foi ter comigo e disse-me: ‘Você tem de receber três mil e tal contos que não recebeu naquele tempo’ e eu fui dos poucos que não quis receber porque a empresa tinha ido à falência. 

Teve de ir estudar mais do que a quarta classe para ganhar esse dinheiro todo?

Tive hipóteses disso. Ainda fiz parte de um curso comercial por correspondência, mas depois a gente habituou-se a trabalhar e como somos oito irmãos a responsabilidade imperava sobre todos. Houve irmãos meus que foram estudar, eu não fui, os mais velhos também não foram. Mais tarde podia tê-lo feito, mas não fiz porque habituei-me a trabalhar de uma forma intensiva e ainda hoje faço isso.

Como construiu o seu pequeno império?

Estabeleci-me como serralheiro em 1974. Eu e o meu irmão fizemos uma pequena empresa familiar, e andámos assim até 1980. Mas em 1975 já vinha para Lisboa trabalhar, fazer obras. Isto é como tudo: terra pequena não faz homem grande, e então nós nunca fomos pessoas de estar na nossa terra só, fomos para todo o país e depois para o estrangeiro. E então em 1975 dediquei-me à metalomecânica, depois em 1980 estabeleci-me sozinho numa empresa de serralharia. A partir daí começámos a fazer outras atividades, desde construção civil, agricultura, vinhos, inspeções de automóveis, turismo…

Pode explicar um pouco mais detalhadamente?

Nessa altura havia um desenvolvimento a nível do interior, todo o interior. E na metalomecânica investimos numa série de atividades, como os alumínios e os pavilhões. Depois foi o setor da construção civil: casas, prédios, etc.. Depois, a agricultura – no interior somos todos agricultores, não é? A seguir, foram as inspeções automóveis.

Na agricultura começaram a produzir o quê? Foi para exportar?

Quando me casei, passado um tempinho, eu e a minha mulher íamos vender à praça, à Tábua. Vendíamos hortaliça, vendíamos fruta, vendíamos um bocadinho de tudo. Isto em 1980, mais ou menos. Tudo o que se produzia, a gente vendia. Quem tem vergonha anda magro, nós nunca tivemos vergonha e eu sou forte. As pessoas às vezes têm medo de sujar as mãos, não há mecânicos, pedreiros, serralheiros, carpinteiros, ainda que sejam profissões mais bem pagas hoje do que qualquer pessoa que tirou um curso.

Tem filhos?

Tenho.

E eles estudaram?

Estudaram. Um trabalha no turismo connosco, outros na agricultura e nas inspeções, também na saúde… temos as coisas divididas.

O seu discurso não é de uma pessoa que tem a quarta classe…

Uma coisa que eu sempre gostei de fazer foi ler alguns documentos, livros e outras coisas e a ler também se aprende. Até o próprio jornal ensina-nos muito. Todos os dias compro um jornal e vejo o que me interessa.

Que tipo de coisas é que lia?

A parte económica sempre. Gostava de ver novas empresas, novas oportunidades.

E como decide ir numa direção e não noutra?

Qualquer negócio que eu tenha feito, nunca o fiz por acaso. Primeiro tenho de saber entrar e sair dele, e depois de arranjar as pessoas próprias. Sei aquilo que quero, mas quando não sei fazê-lo tenho de ter outra pessoa para o fazer. Também temos consciência de que nós não podemos fazer tudo. Já são 43 anos. Por exemplo, na saúde, temos uma unidade de tratamentos continuados que estamos a aprofundar mais porque a terceira idade é o futuro. Não há gente nova, só há gente velha.

Já há quase mil pessoas com mais de 100 anos em Portugal!

[risos] Não sei por que não se promove a natalidade. Há uns tempos fiz um estudo que dizia que iam falecer quase 700 mil pessoas daqui a mais de cinco anos. Estive para fazer uma empresa funerária, mas tive uns contratempos.

Além da saúde e dos centros de inspeção, o que tem mais?

Na área de metalomecânica, temos uma fábrica de lacagem em Gouveia, que trabalha para a construção civil e o setor automóvel. Nunca tivemos nenhuma peça devolvida de nenhuma marca de automóvel, o que é importante.

Como é que entrou no turismo?

Comprei um hotel na Serra da Estrela que era uma albergaria chamada Senhora do Espinheiro, perto do Sabugueiro. Depois comprei mais um restaurante em Celorico da Beira. Alterámos o projeto da albergaria e temos lá uma unidade muito jeitosa, só com 40 quartos, mas tem todas as boas condições e estamos agora a fazer uma piscinazinha. Em Celorico da Beira temos outro hotel, que é o hotel Quinta dos Cedros. E no Algarve, na Praia da Rocha, temos mais um aparthotel chamado Mirante da Rocha. Depois, temos também a construção civil, que nunca parámos, e as inspeções de automóveis. Na altura fui convidado para fazer as inspeções porque ninguém as queria fazer, e como o governo português pagava uma coima por não cumprir essas obrigações, convidaram-me. E eu arrisquei. Depois temos a agricultura, com a fruta, o vinho – que recebeu três prémios a nível mundial -, o azeite e o meu filho está com o negócio dos mirtilos e dos frutos vermelhos.

Quantas pessoas emprega?

600 e qualquer coisa.

É natural que, com todo este sucesso, depois se tenha abalançado para outras áreas. Foi presidente do Tourisense, não foi?

Isso foi quando ainda era novo. Desde 94 que nunca mais me meti em futebóis. Gosto do futebol, ajudo o futebol, mas não…

Ajuda como?

Às vezes com pequenos subsídios, no futebol, no ciclismo…

É verdade que chegou a ponderar concorrer à presidência do Sporting?

Não. Fui convidado duas vezes para ser candidato à presidência do Sporting, é verdade, mas tudo tem a sua época e a sua altura própria… a primeira vez até podia ter ido.

Contra quem?

Contra o Godinho Lopes. Da segunda vez foi numa altura em que me fizeram algumas perseguições, e então, para tratarmos da empresa, não podíamos tratar do clube. Um dia explico com mais calma, porque isso vai mexer com muita gente. Quando as pessoas de departamentos públicos e privados forem responsabilizadas, eu vou achar que o nosso país é uma maravilha. Enquanto não houver responsabilização das pessoas que decidem dentro de alguns departamentos, não…

Tem sofrido perseguição noutras áreas?

Sim, porque infelizmente nem sempre somos respeitados. É um problema do sucesso que se tem.

Na lista que é feita dos homens mais ricos, já aparece com um dos homens mais ricos de Portugal ou não?

Não. Não temos essa vaidade. Temos responsabilidades e quando eu tiver as minhas responsabilidades acabadas, aí sim, tenho lugar lá. Sabe que por vezes podemos ter muito, mas enquanto tivermos responsabilidades com a banca não temos nada. Quando eles querem tiram-nos o tapete. E eu costumo dizer que cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Com a minha pequenez, sou maior que muitos. Sabe porquê? Porque hoje essas grandes empresas que estão na bolsa, se forem reavaliadas, não valem nada, e nós valemos aquilo que valemos, mas com ponderação e cuidado.

Perdeu muito património nos incêndios?

Eu sofri os incêndios no pêlo. Cheguei a casa às sete da tarde. Tinha saído de uma reunião com a minha mulher e liguei a um amigo que morava a uns quilómetros. ‘Estou a ver isso tão negro, o que se passa para aí? Queres que vá aí ter contigo?’. ‘Não vale a pena porque está muito mau’, disse ele. Então não fui. Em meia hora, aquilo galgou 50 quilómetros, uma coisa louca. O incêndio foi uma coisa que não dá para entender. Começou perto da Lousã, foi para Arganil e até chegar ali foi de repente. O incêndio estava a um quilómetro ou dois de minha casa e ouvia estoiros por todo o lado. Pareciam bombas. Mas há uma coisa que acho estranha – é que rebentaram coisas a um quilómetro de minha casa e não havia fumo nenhum. Só estando lá é que se pode imaginar uma coisa destas. E de repente estava tudo a arder. Ficámos isolados e, se fosse um dia de semana, deviam morrer centenas de pessoas, porque as pessoas queriam chegar a casa e não conseguiam passar. Foi tudo tão rápido que qualquer estrada em cinco minutos estava cortada. Cada um de nós defendeu-se por conta própria, não havia bombeiros, não havia luz, não havia nada.

Perdeu alguém próximo?

Não. Eu e a minha mulher andámos os dois sozinhos durante seis horas a defender o terreno e a casa. Queimei a cabeça e ela também.

Jaime Marta Soares acha que por trás dos incêndios houve uma organização terrorista, concorda?

Possivelmente houve. Um incêndio andar tantos quilómetros em pouco tempo é difícil, mesmo com vento. E depois também tivemos um problema, os nossos bombeiros foram para a Lousã e Arganil e quando precisámos deles não estavam lá. Ficámos todos ali à mercê de Deus, custou muito e fomos todos uns heróis. Sabendo que ia haver esta situação dos ventos, do calor, dos incêndios e se o incêndio na Lousã começou no sábado, por que é que os meios não estavam lá? Não tínhamos ninguém. À meia-noite e pouco não havia água na rede, não havia água nas bocas-de-incêndio, já viu?

Como é que se defenderam?

Com ramos que cortei, a bater no fogo. E os outros também se defendiam com um pouco de água, de tecidos, sei lá… de tudo.

Foi por isso que decidiu criar uma associação de apoio às vítimas?

A tragédia foi tão grande que as pessoas perderam tudo. Perderam as cabras, as ovelhas, as galinhas, os coelhos… os meios de subsistência. Acontece que eu conhecia muita gente daquela e também pedimos apoio a pessoas de fora. Esse apoio chegou e nós temos ajudado com um bocadinho de tudo e também nos têm ajudado a nós. Quem nos ajudou em primeiro lugar foram os homens de Évora e Beja. Depois foi um indivíduo anónimo de Salvaterra de Magos, que nos deus 26 toneladas de batata, depois pessoal de Esposende e Barcelos… e andamos a distribuir por ali. O problema é a parte psicológica, que está complicada nalguns casos. Houve pessoas que perderam tudo e ainda hoje não se vislumbra nada de apoios. Nunca esperei que a minha terra viesse a pedir como pediu.

Perdeu a câmara não foi? Já se tinha envolvido na política?

Sabe porque é que eu perdi as eleições? Porque não sei mentir. Disse a verdade das coisas e isso custa a muita gente. Mas nunca fui político. Só me candidatei por causa da pressão que me fizeram. E isso foi feito em dois meses. Mas este trabalho é diferente, é um apoio que a gente faz na área social. Nos incêndios houve uma falha muito grande de prevenção e de organização. A prevenção tem de ser feita com quem conhece o terreno e quem conhece o terreno são as pessoas locais. Nunca devia uma pessoa de Lisboa decidir sobre o distrito da Guarda, de Viseu, de Aveiro. Este governo tem uma grande oportunidade agora de fazer uma grande reorganização florestal nas regiões ardidas. 

Que medidas devem ser tomadas?

Eu não sou, por exemplo, contra os eucaliptos. Eu sou é contra a forma de aplicação dos eucaliptos. Agora é só carvalho… não, há que colocar o eucalipto, mas ter umas barras de carvalho, sobreiro, castanheiro, cerejeira. Se acabamos com o eucalipto, acabamos também com parte do país. A maior parte dos mortos morreram nas estradas porque deixaram as casas, uma coisa que nós não fizemos na nossa terra. Não, defendemos as casas com unhas e dentes. Eu vejo pessoas à frente de departamentos teóricos, mas a prática onde está? A gente tem de saber sujar as mãos. Eu aprendi muito com os estrangeiros, que não têm problema em sujar as mãos. Os nossos técnicos, a maioria, tem medo de sujar as mãos. É importante que haja agora um trabalho intensivo do governo e que os responsáveis falem com o povo. Eu digo isto e é verdade: prefiro falar com um bom agricultor do que com um bom doutor, porque o agricultor sabe fazer as coisas e o doutor pode não ter conhecimento de causa.

Como é que gasta o seu dinheiro? Já percebi que não é um homem vaidoso…

O dinheiro que a gente tem ganho é tudo para investir, praticamente. Gasta-se no trabalho.