Francisco Miranda Rodrigues. “Com o aproximar da época de fogos, vão ser reavivadas memórias mesmo à distância”

O presidente da Ordem dos Psicólogos diz que trabalho noturno e por turnos aumenta em 40% risco de depressão

Não chega fazer leis e anunciar multas: é preciso envolver as pessoas e saber fazê-lo. Francisco Miranda Rodrigues, bastonário dos Psicólogos, lamenta não ter havido resposta do governo a uma proposta de apoio especializado na promoção da resiliência das comunidades contra os incêndios. Com o verão mais perto, alerta que é essencial um apoio continuado às vítimas da tragédia do ano passado. Há um ano à frente da Ordem, Francisco Miranda Rodrigues lamenta o atraso na contratação de psicólogos para o SNS e defende a criação de uma Agenda Nacional de Prevenção e Desenvolvimento das Pessoas, como forma de prevenção de perturbações mentais e via de crescimento para o país.

Disse recentemente que as afirmações de Mário Centeno sobre a existência de má gestão na saúde podiam ser uma autocrítica. Vê razões para isso?

Vi-o com alguma estranheza quando é sabido que, devido às cativações e às normas de funcionamento a que os ministérios estão sujeitos, nas decisões que interfiram com questões financeiras há o envolvimento passo a passo das Finanças. Ou entendemos as declarações de Mário Centeno como falta de solidariedade ou como autocrítica de facto.

Tem trabalhado em desenvolvimento organizacional e liderança. Este posicionamento das Finanças é uma boa estratégia?

Quando cortamos a autonomia às pessoas, é uma forma de se sentirem menos responsabilizadas. Do ponto de vista motivacional não é grande política.

A Ordem denunciou que não abriram os concursos para cerca de 100 psicólogos prometidos para o SNS em 2017 e para este ano. Que relatos lhe chegam do terreno?

Não há psicólogos em todos os centros de saúde, embora possam existir praticamente em todos os agrupamentos. Mas são claramente poucos. Os psicólogos nos centros de saúde dizem-nos que não têm mãos a medir, são sessões atrás de sessões. É preciso não esquecer que a boa prática recomenda que as sessões durem 50 minutos, não é 15.

Há queixas de que isso acontece?

Não, mas se chegar alguma denúncia, a Ordem a atuará. Dizem-nos também que as pessoas chegam quase sempre numa fase já avançada. A acessibilidade é muito difícil. Veja-se por exemplo o que aconteceu no Dão Lafões. Os recursos foram mobilizados, e bem, para dar apoio à população em situação de crise e catástrofe por causa dos incêndios. Mas cinco psicólogos deixaram de estar nos seus centros de saúde. Os encaminhamentos continuaram e já iam em mais de mil pessoas à espera. Houve reforço? Nenhum. 

Mesmo nos incêndios, alguns meses depois de Pedrógão havia relatos de dificuldades para ter algum acompanhamento psicológico de continuidade no SNS.

Na intervenção em crise e catástofre acho que houve uma resposta boa e uma grande mobilização. Penso que na maior parte dos sítios houve capacidade do Estado, até em conjunto com as autarquias e instituições de solidariedade social, de arregimentar os recursos e colocá-los onde eram mais necessários naquele momento. O problema é o que vem a seguir e aí continuamos a dizer o que dizíamos na altura: parece-nos que continuou a haver sobretudo apoio a pessoas que desenvolveram perturbações ou que já eram acompanhadas anteriormente porque tinham alguma perturbação ou risco e tiveram prioridade. O que sabemos é que nestas situações em que há uma exposição a acontecimentos desta natureza há uma percentagem da população que não desenvolve no imediato uma perturbação mas pode acontecer mais tarde e é possível identificar sinais de risco. Estas pessoas deviam ser rastreadas e ser alvo de uma intervenção preventiva.

Está a falar de haver pelo menos uma consulta de psicologia neste período?

Podia até ser uma sessão em que era dada informação, trabalhava-se a literacia psicológica e fornecia elementos para autoajuda guiada. Ou podia ser uma intervenção de grupo. Nada disto aconteceu e a resposta a este nível da prevenção é muito inconsistente. É como se assumíssemos que estas questões não existem nesta fase: só passam a existir quando a pessoa aparece no centro de saúde já com uma depressão.

Tendo em conta a violência do que se passou, haverá situações de sofrimento em que as pessoas ainda não verbalizaram o que sentem?

Até pelo que se sabe de muitos desastres a nível internacional, sabemos que uma grande parte da população desenvolve a prazo perturbações. Podemos dividir as pessoas em três ou quatro categorias, simplificando um pouco. Temos as pessoas que têm uma resposta completamente resiliente e depois há pessoas que no momento reagem de forma adequada mas têm alguns sinais de que algo não está bem, como começar a ter dificuldades a dormir. E há as pessoas que manifestam logo sinais de perturbação.

A chegada do verão e dos fogos pode ser problemática? Em Pedrógão e Castanheira de Pera, quando tornou a haver fogos, as pessoas diziam que até o barulho das sirenes era suficiente para causar alguma ansiedade.

Acho que era algo que mereceria uma especial atenção. Infelizmente com o aproximar de uma nova época de fogos há um conjunto de pessoas que vão continuar a ser expostas, mesmo que à distância e até pela televisão, a um conjunto de estímulos que vão reavivar memórias. Se forem pessoas com um perfil de risco, aumenta a probabilidade de desenvolverem algum desconforto psicológico e pode ser o suficiente para desencadear um processo que leve a uma perturbação. Ou, no caso das pessoas que desenvolveram uma perturbação que entretanto possa estar estabilizada, poder haver uma descompensação.

O que é que se devia fazer?

Em relação às pessoas que estão a ser acompanhadas, é preciso garantir que esse acompanhamento é efetivo e não demasiado espaçado. As outras deveriam procurar acompanhamento. É preciso esclarecer que na maior parte destes casos não terá de haver uma intervenção psicoterapêutica. O problema do follow-up é que sabemos que os recursos que existem em termos de proximidade nos centros de saúde são tão poucos que até pode ser dada uma prioridade numa primeira consulta mas depois para ter uma segunda consulta não é fácil.

Quando se prepara o verão com a limpeza das florestas, esta era uma área que também importava reforçar?

Já devia ter acontecido… chegou a colocar-se a questão de quantos psicólogos mais seriam necessários… Não há o perigo de colocar a mais, são tão poucos que mesmo duplicando a resposta continuaríamos com rácios baixos.

Voltou a falar-se nos últimos dias dos fogos de outubro. Uma das críticas feitas na altura ao governo foi de uma aparente falta de empatia. É algo que seja importante garantir em termos de mensagem pública?

Eu não sei dizer se tem havido empatia ou se as pessoas sentem que os políticos percebem aquilo que se passa nas suas vidas. Mas é importante que as pessoas sintam isso, desde logo porque essa proximidade cria uma muito maior facilidade de mobilização dessas pessoas para as soluções. Sabemos que entretanto foram implementadas algumas medidas e um dos aspetos mais importantes para além da criação de legislação é garantir que há uma adesão das pessoas e um envolvimento para que as políticas publicas sejam eficazes.

Refere-se às regras para a limpeza das florestas?

Sim, é necessário que as pessoas se sintam como sendo parte da solução. Umas das coisas mais badaladas foram as penalizações para quem não cumprisse. Duvido muito que o interesse de quem quer que esteja envolvido neste processo fosse penalizar, mas sim garantir que a ação preventiva acontecesse. O que desconheço, e não é que não tenhamos tentado colocar-nos à disposição do governo para colaborar, é que estratégias têm sido seguidas para criar esse envolvimento da população. Quando se fala de criar a tal resiliência, é preciso ajudar as comunidades a construi-la. E quando se fala em medidas como a simples limpeza e fazer com que se torne um hábito enraizado, é preciso ter presente que isto não se faz só por decreto.

Numa aldeia que visitámos depois dos fogos e que começou logo a fazer o cadastro da floresta, um dos avisos da associação de moradores era para o trabalho de “mediação” necessário junto dos moradores, até mais idosos, para perceberem que o cenário que sempre conheceram ia mudar.

Sim. Há comunidades que, devido à coesão que já têm, conseguem dar alguma resposta antes de haver alguma iniciativa legislativa, mas isso não é regra. Falta incorporar mais vezes os conhecimentos das ciências comportamentais neste tipo de iniciativas públicas. Entregámos uma proposta ao governo ligada especificamente à prevenção dos incêndios sobretudo a alertar para isto: é importante perceber que as pessoas têm determinado tipo de comportamentos não porque lhes dizem que é importante agirem de determinada forma – se assim fosse ninguém fumava. Há estratégias que podem facilitar a transmissão da informação, como ajudar a identificar os líderes comunitários.

Pode dar um exemplo de uma mensagem que lhe pareça errada desse ponto de vista?

A questão é se, para além da mensagem de que é preciso limpar, houve discussão com as populações sobre esta estratégia. Se para além do aviso das coimas, do email das Finanças a avisar – e ainda por cima receber uma informação das Finanças é algo que para as pessoas tem impacto… – foi feito um trabalho a nível local. Um dos problemas que veio à baila foi que não havia recursos em alguns sítios para fazer limpeza. No momento em que se soube que se ia limpar, que trabalho foi feito a nível local para mobilizar recursos na comunidade? Houve o cuidado de ir falar com as pessoas nas aldeias mais distantes onde se calhar não chega o email das Finanças? Isto até pode ter sido feito, mas desconheço.

Que resposta tiveram à proposta?

Não tivemos resposta. Tive uma reunião com o eng. Tiago Oliveira [presidente da Estrutura de Missão para a instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais] e com um representante do ministro adjunto em finais de novembro, apresentámos as nossas respostas e houve bastante acolhimento. Colocámo-nos à disposição para o que fosse necessário e até insistimos bastante, mas até hoje não tivemos resposta. 

Vê isso como um mau sinal?

Vejo como um mau sinal sobretudo porque é uma altura em que o envolvimento de todos seria importante. Não ajuda muito ao envolvimento quando não há sequer resposta. Mas o mais importante de tudo não é isto: se estiver a ser implementado, tudo bem.

Falou-se de os anos da crise terem contribuído para mais casos de depressão e de suicídio. Não será fácil um diagnóstico coletivo, mas que realidade encontram hoje?

Os números dizem-nos que continua a haver um agravamento do problema e temos um consumo de antidepressivos que continua a crescer. Propusemos no ano passado logo no início do mandato a criação de um Programa Nacional de Prevenção da Depressão.

Existe um Plano de Prevenção do Suicídio, que aborda a depressão.

Sim. O que pretendíamos era um conjunto de passos específicos nos cuidados de saúde primários para uma prevenção precoce da depressão e uma referenciação para a solução mais adequada, que não é necessariamente o encaminhamento para os serviços de psiquiatria e saúde mental mas, nos casos mais graves, poderia levar aí. Teríamos em primeiro lugar o médico de família a referenciar para o psicólogo, claro que para isso é preciso que os psicólogos existam. Está a decorrer um programa formativo para psicólogos e o governo sugeriu iniciarmos projetos piloto, que tentámos implementar no ano passado.

Com sucesso?

Nos locais que foram sugeridos não houve possibilidade de avançar. Às vezes, mesmo quando há vontade política, encontramos outro tipo de resistências.

Por exemplo?

Não ser aquela a metodologia que estão habituados a usar, haver muito trabalho. Seriam três projetos piloto no norte do país e nenhum avançou. Avançámos já este ano com reuniões noutros Agrupamentos de Centros de Saúde para desbloquear esta situação, temos um “ok” recente e vamos avançar já com reuniões em três unidades de saúde nos Açores.

Está em revisão o modelo de prestação de cuidados de psicologia no SNS.

Vemos esses serviços a avançar e um interesse generalizado na adoção deste modelo e isso permitirá maior capacidade de colocar em prática alguns programas, mas estes projetos-piloto para prevenção da depressão não abrangem só psicólogos – abrangem todos os profissionais dos cuidados de saúde primários. Tem sido algo muito lento, muitas vezes com reuniões em que as pessoas vão dizendo sim, sim e depois dizem não…

A saúde mental continua a ser o parente pobre dos cuidados?

Continua sem grande mudança. Não houve grandes alterações de recursos nos últimos anos. Houve algum aumento de psiquiatras mas os psiquiatras não são o maior grupo de profissionais nesta área. Isto depois tem reflexo no problema da sobremedicação e os nossos números, quando comparados com a Europa, são assustadores. Não acredito que o médico de família avançasse tantas vezes para medicação se existisse possibilidade de um acompanhamento psicológico ou psicoterapêutico. Está disponível, no privado, mas isso é para quem tem recursos.

Quais são os tempos de espera no SNS?

Como disse, as primeiras consultas de psicologia não têm grande tempo de espera. Mas para uma segunda consulta pode ser seis meses, um ano e em nenhum modelo de intervenção psicológica é razoável esperar tanto tempo. Se não houver respostas alternativas no SNS, dificilmente se poderá reduzir o consumo de medicação, antidepressivos e ansiolíticos. E não é por falta de profissionais. Existem 20 mil psicólogos em Portugal, há uma taxa elevada de desemprego. Temos cerca de 30 cursos em Portugal.

É demasiado?

Se olharmos a uma projeção a dez anos e mantendo a atual absorção do mercado, é de mais. Dito isto, é uma área em que existe uma enorme lacuna em vários serviços. Nas escolas tem havido algum reforço e chegámos aos mil psicólogos, mas não chega aos rácios adequados para ser possível fazer trabalho preventivo. Há um entupimento dos psicólogos escolares com acompanhamentos individuais.

Há uma geração de jovens mais dispersa, mais hiperativa, os pais estão menos em casa. É o gap geracional a falar ou há mesmo um problema?

Alteracões societais existem sempre e os miúdos são sempre diferentes dos miúdos de há 20 ou 30 anos. Mas não é suficiente para justificar aquilo que às vezes parece ser uma epidemia de hiperatividade, o que me parece claramente exagerado e não vai ao encontro da prevalência deste tipo de perturbações. Estamos com certeza a confundir com perturbação aquilo que é uma agitação normal por parte de gerações que hoje estão habituadas a muito mais estímulos, à imagem, aos jogos. Isso em si não é mau, mas em comparação com as outras realidades que encontram, pode ser uma transição grande.

A escola está demasiado aborrecida?

A escola, por muitas transformações que vá havendo, na sua essência continua muito igual ao que era há uns anos na forma como transmite conhecimento. Mas há algumas iniciativas em curso. O Ministério da Educação avançou com a flexibilidade curricular e começa-se a discutir a necessidade de a escola ser mais inclusiva, não no sentido de integrar os grupos com dificuldades, mas de olharmos cada vez mais para as diferenças individuais dos alunos.

Alguns pais estão receosos com os projetos piloto da flexibilidade: quando chegar o fim de ciclo e os exames são iguais para todos, há jovens que podem ser penalizados.

Sim, pode colocar-se o problema de o sistema não estar a evoluir todo à mesma velocidade. Mas sabemos também que hoje, fruto muitas vezes da importância que se dá aos exames, o que acontece muitas vezes é estar-se a trabalhar para os resultados e não para a aprendizagem, o que é pernicioso. Parece-me que ainda estamos a passar ao lado de competências que cá fora são muito valorizadas pelo mercado do trabalho e nos ajudam a sentirmo-nos bem. As chamada soft-skills, o trabalho em equipa e a própria expressão emocional são aspectos cada vez mais valorizados, mais do que apenas a competência técnica.

Além desse trabalho em função dos resultados, o que é que não faz sentido no atual modelo escolar?

O que me faz mais confusão neste momento é que continuamos agarrados a ideias do passado. Continuamos agarrados a um modelo de transmissão de conhecimento igual ao que havia quando hoje o conhecimento está, num curto espaço de tempo, completamente ultrapassado. Seria mais importante aprender a aprender de facto. Resolver problemas e “aprender a aprender” por nós próprios torna-se muito mais relevante do que a quantidade de conhecimentos que possamos adquirir. A escola continua muito organizada em torno de um currículo de conhecimentos a adquirir.

Em vez de termos um programa e um manual de História, está a dizer que bastava dar um computador ao aluno para pesquisar sobre os reis de Portugal?

Acho que pode ter-se manuais mas atividades que promovam a procura de informação e que autonomizem desde cedo os alunos estimularão algo importante para o futuro. Qualquer aluno que adquira informação por si próprio, perante qualquer desafio, estará em melhores condições de o ultrapassar.

O conhecimento em si não é importante?

O conhecimento é sempre importante. Quando digo que é preciso valorizar mais o aprender a aprender, não digo que se corte com o resto, pois o treino das atividades cognitivas, da leitura, do dominar uma lingua, do cálculo e de outras funções lógicas, continua a ser importante. Mas já houve pequenas evoluções. Há alguns anos não era de todo possível usar uma calculadora. Atualmente é permitido. Parece-me é que não é possível avançar apenas com um formato taylorista da escola. Os alunos são todos diferentes, não apenas os que têm dificuldades de aprendizagem e os que não têm. Veja-se desde logo as diferenças etárias.

Não faz sentido dividir por idades?

A diferença etária foi uma forma que se encontrou para a organização da escola. Hoje sabemos que a idade biológica não é um elemento de corte e já existem experiências onde se integram alunos com idades diferentes.

Um miúdo de sete anos que é colocado no 1.º ano não vai sentir que é “burro”?

Depende, se a escola olhar para isso assim, se os professores o verbalizarem assim – “tu como és um bocadinho mais lento vais para aqui” – é verdade que se vai colocar um rótulo. Agora, se não for assim e se esta for uma abordagem normal, talvez seja melhor. O contrário faz mais sentido? Se um miúdo tem uma determinada idade mas não tem ainda as capacidades cognitivas ou até sócio-emocionais para fazer face aos desafios daquele ano, faz sentido forçá-lo a isso?

Seriam chumbos psicológicos?

Sim.

Os pais teriam abertura para isso? Não pode haver aquele sentimento “onde falhei”?

Isso só acontece porque temos uma expectativa associada à idade. Ou envolvemos os pais ou haveria dificuldade em iniciar este processo. Hoje já se discute a entrada com cinco ou seis para o 1º ano e existe uma carga menor sobre isso. E daí a necessidade de mais psicólogos nas escolas, saberiam como envolver os pais e ajudar a gerir salas de aulas com essas diferenças etárias. Essas funções quase de consultoria serão um trabalho diferente para os psicólogos nos próximos anos. Acredito neste trabalho que no fundo é preventivo: se isto fizer com que alguns miúdos fiquem menos desinteressados e depois tenham comportamentos que requerem uma intervenção, é uma forma de prevenção.

Houve recentemente a polémica em torno do programa Supernanny e, para lá da exposição das crianças, abordou-se a dificuldade de algumas famílias em gerir estes problemas. Os psicólogos escolares podiam ajudar?

Podem ser uma solução próxima de todos. Pode não ser necessária terapia familiar mas antes aumentar as competências das famílias.

Os exemplos do programa, de prémios por bom comportamento ao banco do castigo, fazem sentido?

O grande problema é a descontextualização dessas estratégias. A nossa área é muito dada a que alguém arranje uma estratégia e decida “agora vou experimentar isto em casa”. Há coisas que podem fazer sentido recomendadas por um profissional num determinado contexto mas são um perfeito disparate noutro. Não há fórmulas mágicas. É uma área de trabalho em que cada caso é mesmo um caso e é por isso que é necessária uma formação de muitos anos: os psicólogos têm cinco anos de curso mais um ano de prática supervisionada antes de poderem trabalhar de forma autónoma. Muitos depois fazem especializações de quatro ou cinco anos.

Existe ainda uma desvalorização do trabalho do psicólogo?  

Acho que ainda há desvalorização, mas há cada vez mais valorização.

Uma questão que pode ser difícil é como se mede a eficácia. Se um medicamento não baixa o colesterol, não funciona. Como se mede o efeito da intervenção psicológica?

De uma forma análoga. Da mesma forma que são feitos estudos para perceber se um medicamento é eficaz, no caso das intervenções por vezes também se avalia parâmetros biológicos, outras vezes seguimos metodologia experimental. O que nos diferencia de outras soluções que se veem por aí é que toda a intervenção dos psicólogos tem por base evidência científica. A psicologia não é uma arte, é uma ciência. As intervenções foram testadas, foram experimentadas, sabe-se que resultados têm.

Ao mesmo tempo vemos cada vez mais livros de autoajuda, receitas para uma vida assim e assado…

Pois, toda a gente é livre para pegar num conhecimento avulso. É preciso ter muito cuidado com as situações em que as pessoas acham que criaram uma nova terapia. Dizem por exemplo que inventaram a “terapia da rosa” – estou a inventar – que tem a ver com as pétalas que têm a ver com as várias dimensões da vida… isto sem nenhuma base científica. Um cuidado que as pessoas devem ter no recurso aos profissionais desta área é ver se estão inscritos na Ordem. Não há psicólogos não inscritos na Ordem. Há psicólogos e não psicólogos.

Faz-lhe confusão ver os escaparates cheios de livros desta área?

Sim, muitas coisas cheiram a charlatonice.

Ficou-lhe algum na memória?

Sempre que vemos soluções que tentam mascarar-se de psicologia denunciamo-lo ao Ministério Público. E quando vemos situações, que não estando validadas, são usadas no terreno por psicólogos, tratamo-lo internamente.

Uma área com cada vez maior visibilidade é a dos “coaches”. São uma preocupação?

São um problema mais complexo. Uma coisa é alguém ser um coach porque, por exemplo numa atividade de engenharia, há um novo processo de fabrico e aquele superior hierárquico vai ajudar os colegas – é uma espécie de formador “on job”. Outra coisa é quando entramos naquilo que vulgarmente é chamado de “health coach” ou “life coach”. Quando temos alguém que não é psicólogo a exercer essa função, temos um problema. Não há a mínima garantia de que essa pessoa domine os conhecimentos teóricos necessários e que haja consciência dos limites. Até podíamos aceitar que alguém sem formação em psicologia dissesse ”mas eu só intervenho até este ponto e quando vejo que há um problema psicológico, envio para um psicólogo”. Sem conhecimento em psicologia, é impossível saber onde está essa fronteira.

Aparecem nos consultórios pessoas que ficaram mal depois desse tipo de intervenções?

Aparecem. Noutros países houve situações graves, em que as pessoas descompensaram ou desenvolveram uma perturbação depois da intervenção.

A minha ideia de sucesso ou de satisfação com a vida pode não ser de aplicar exatamente a outro, é isso?

Às vezes junta-se aqui uma questão de curiosidade. A psicologia é atrativa, as pessoas gostam de saber como a mente funciona. Às vezes daí passa-se para o “eu acho que tenho jeito para as pessoas”. Mas ser psicólogo não é só uma questão de talento, há um conjunto de conhecimentos que têm de ser adquiridos de base e depois há modelos para intervir.

Recuando aos seus primeiros tempos de psicologia. Que ideias tinha que acabaram por não coincidir com a realidade?

Há aquela ideia de que conseguimos saber como os outros se comportam e prever como se vão comportar, que é uma ideia um pouco romantizada.

Apanha-se muitos baldes de água fria?

Pelo menos ganha-se a consciência de que não é bem uma previsão. Há cenários possíveis, apenas isso. Voltando ao coaching, muitas vezes as pessoas aplicam ferramentas mas sem um conhecimento de base.

O florescimento deste setor em Portugal preocupa-o?

Sim. Até porque há aquela ideia de que ser coach é mais fashion e é visto como sendo uma coisa das pessoas que “não têm qualquer tipo de problema”, enquanto para ir ao psicólogo ainda há estigma. Diria que quem vai ao psicólogo tem muito mais proteção, a do conhecimento e de que esse profissional é escrutinado, responde do ponto de vista ético, deontológico. Não faz o que quer porque há consequências. Nas mais variadas áreas, mudanças na carreira, mudanças na vida, ser pai pela primeira vez… Ir ao psicólogo não tem de ter a ver com uma crise, mas pode ter a ver.

Pode-se pensar que as resistências têm motivações corporativas.

Sim, pode pensar-se isso. Não deixo de representar os elementos de uma classe e de ter obrigação de defender o desenvolvimento da profissão. Mas se há coisa que, de forma muito consistente, tem sido patente desde o início da Ordem dos Psicólogos é que as nossas acões, mesmo na defesa de interesses profissionais, tiveram sempre o chapéu do interesse público.

Têm havido cada vez mais alertas para o burnout. Em Portugal não há números sobre baixas por motivos de saúde mental. Conseguem ter uma percepção de deste problema no país?

É um problema grave. Um estudo sobre “distress” do Instituto Ricardo Jorge apontou para uma prevalência elevada  (foi reportado por 22,5% da população, com maior impacto nas mulheres, grupos mais velhos e desempregados). Sabemos que o distress está relacionado com o burnout, que é o esgotamento.

O distress o que é?

São sinais comuns à depressão e ansiedade mas em que não existe ainda uma perturbação. São sinais de desconforto e sofrimento psicológico. Temos a percepção de que é algo que tem crescido, as exigências são cada vez maiores.

E as expectativas também, não?

Sejam as nossas exigências, sejam as exigências dos outros sobre nós: quando não temos competências para o gerir, torna-se problemático.

Impunha-se alguma intervenção?

Vamos fazer uma proposta legislativa na área da saúde no trabalho que propõe o alargamento das obrigações em matéria de prevenção dos riscos psicossociais, onde se inclui stress, burnout e temas como o trabalho por turnos, que têm sido suscitados pelo Bloco de Esquerda. Passamos a maior parte do nosso tempo ativo a trabalhar. Estas questões devem ser abordadas pelo impacto que têm na saude, até no aparecimento de cancro.

O stress é fator de risco para o cancro?

Não é só o stress. Vários riscos psico-sociais, entre os quais o trabalho noturno e por turnos… Há evidência que causam alteracões de ciclos que também podem levar a. Temos de adotar mecanismos preventivos.

Por exemplo?

Quando falamos de stress, sabemos que uma das coisas que mais causa stress aos trabalhadores é o estilo de liderança nas organizações. Isso é aliás reconhecido num relatório encomendado pelo governo britânico e que aponta para custos de 300 mil milhoes de euros no Reino Unido causados pela exposição a determinados riscos psicossociais e onde, entre as cinco principais medidas a adotar surge a recomendação de reduzir as chamadas lideranças tóxicas. Ou seja o assédio, e não é só o assédio sexual de que se tem falado mas o assédio moral.

Temos muitos chefes tóxicos?

Existem em todo o mundo. São chefias que se apresentam sempre com uma desconfiança enorme sobre se o trabalhador cumpre ou não, não lhe dão autonomia, não fazem qualquer valorização do trabalho e têm antes uma atitude até persecutória, sempre a questionar, em cada comportamento, qual era a intenção… Não respeitam minimamente tempos de descanso, vale tudo a qualquer hora. “Aqui vestimos a camisola, estamos sempre, seja o dia que for”, dizem. Ou é porque a organização “está a crescer e somos maiores”…

Ou é porque está mal?

Sim, o cardápio de lideranças tóxicas é imenso. O que podemos fazer? Além de medidas para acompanhar as pessoas que já têm problemas, formar as pessoas. No trabalho por turnos, se fizermos uma limitação da rotatividade e descansos mais frequentes, estamos a prevenir os riscos. Sabendo que o trabalho noturno e por turnos aumenta em 40% o risco de depressão, temos de compensar os trabalhadores com mais tempo de descanso, dar mais direitos às pessoas. As consequências negativas do stress estao muito dependents da forma como o vemos. Se vivenciamos o stress como positivo, as consequências são mais positivas, vice-versa. Mas uma coisa sabe-se: viver permanentemente em stress tem consequências a prazo. É preciso haver um equilíbrio e temos de obrigar as empresas a ir por aí.

Não chega sensibilizar?

Um estudo recente feito a nível europeu mostra que não: mais de 90% dos inquiridos reconhece que stress e burnout são um problema para a competitividade das empresas mas mais de 90% diz também que só toma medidas no âmbito da prevenção e segurança no trabalho quando obrigados por lei. Tentar sensibilizar, não chega. França, Bélgica e Alemanha são países que têm avançado. É um movimento que chegará a todos: há uns anos ainda era estranho ter de proteger os trabalhadores de danos físicos. Hoje há que avançar para outras dimensões.

Dizer que não se vai trabalhar porque não se está bem emocionalmente não tem ainda a mesma compreensão. É um indicador?

Sim, é visto como uma fraqueza. O estigma associado à doença mental é grande, portanto assumir um desconforto não é algo socialmente aceite.

Escreveu uma carta aberta no final do ano ao Presidente da República a alertar para vários dos temas de que falámos e da necessidade de reforço da resposta. Teve resposta de Marcelo?

Sim, mostrou-se solidário com as preocupações e disponível para se juntar ao esforço de sensibilização para se criar uma Agenda Nacional de Prevenção e Desenvolvimento das Pessoas.

Marcelo tem sido o presidente dos afetos. Nesta área, é suficiente?

Acho que precisamos sobretudo de ações. Do ponto de vista do discurso, há que dizer que este governo tem mostrado muita sensibilidade para muitos problemas, precisamos é de mais ação. No caso da agenda, se pensarmos que somos um país pequeno e o maior recurso que temos são talvez as pessoas, se tivermos uma agenda multisetorial de promoção e desenvolvimento de competências, estaremos a reduzir desperdício em termos de capital humano e a prevenir problemas a longo prazo.