‘O Brasil ainda não acordou para a importância da economia do mar’

Fernando Henrique Cardoso admite que ainda falta uma visão estratégica e integrada sobre a importância do mar e seus recursos naturais para o desenvolvimento sustentável do Brasil.

A Fundação foi uma das primeiras entidades brasileiras a debater o tema da economia do mar. A que se deveu este ‘despertar’ de consciência? 

A sociedade brasileira ainda não acordou para a importância desse tema, mas na academia e no Estado, temos uma certa tradição de pesquisa cientifica e políticas de governo sobre o mar, seus recursos naturais e sua importância para o país. Basta lembrar que desde meados dos anos 70, existe o Programa Nacional para os Recursos do Mar, coordenado por um Conselho Interministerial liderado pela Marinha brasileira. Na área académica, o Instituto Paulista de Oceanografia, o primeiro do país, foi criado em 1946 e seis anos depois, incorporado à Universidade de São Paulo. A partir de 1973, passou a oferecer cursos de mestrado e doutorado. Em colaboração com a Marinha, participou desde o início, em 1982/1983, do Programa do Brasil na Antártida. Hoje o país conta com cerca de 50 cursos de graduação em ciências do mar (oceanografia, ciências biológicas marinhas, aquicultura, etc.). A Fundação foi criada por pessoas com formação académica e experiência no Governo, cientes da importância do mar para a economia, o meio ambiente e a segurança do Brasil. Eu próprio participei de momentos importantes da ação político diplomática do Brasil em relação a temas marítimos. Era senador quando o Congresso brasileiro aprovou a adesão do Brasil à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar, em 1987. Como ministro das Relações Exteriores, em 1992 e 1993, acompanhei as negociações internacionais sobre o acordo de implementação da Convenção. E, já como Presidente, coube a mim em 1995 declarar formalmente a entrada em vigor da CNUDM, no Brasil. 

Que importância tem a economia do mar para o Brasil? 

Maior do que jamais foi no passado e menor do que será no futuro. Estamos entre os dez países com maior território marítimo. Somadas as áreas do mar territorial e da zona económica exclusiva, o Brasil tem sob sua soberania ou jurisdição aproximadamente 3,5 milhões de Km2, uma área do tamanho da Amazónia. Por essa razão, deu-se a essa área o nome de ‘Amazónia Azul’. Além disso, o Brasil pleiteia junto à Comissão de Reconhecimento de Limites das Plataformas Continentais das Nações Unidas o direito de ter jurisdição sobre uma área adicional de 900 mil Km2. Trata-se de um pleito que mobiliza o Governo e a comunidade científica brasileira há duas décadas e que agora se encontra em estágio final de apreciação pelas Nações Unidas. Ter soberania ou jurisdição sob tão vasto território marinho, incluindo o seu subsolo, é uma oportunidade para o desenvolvimento do país e, ao mesmo tempo, uma imensa responsabilidade porque os oceanos são um património da humanidade. Assim como o desenvolvimento da Amazónia verde, o da Amazónia azul precisa se dar em bases ambientalmente sustentáveis. O Brasil tem compromissos internacionais assumidos a esse respeito. É signatário da Convenção sobre Biodiversidade Biológica e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, entre os quais está o da conservação dos oceanos e do uso sustentável dos recursos do mar. 
 
Quais os desafios que esta atividade enfrenta no Brasil? 

A exploração sustentável dos recursos naturais presentes no solo e no subsolo do mar requer investimentos de longo prazo em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico. O Brasil desenvolveu competência para avançar nessa direção. Temos a Petrobras, líder na prospeção e exploração de petróleo e gás em águas profundas, com um incomparável conhecimento do solo e do subsolo marinho do Brasil. Temos a marinha brasileira, que conduz há mais de vinte anos o programa de levantamento dos recursos naturais da plataforma continental brasileira. Temos uma comunidade científica dedicada ao tema. Temos experiência de cooperação entre esses três atores-chave para a exploração sustentável dos recursos naturais do mar. E temos, não menos importante, uma interlocução mais aberta entre agentes estatais e movimentos sociais ambientalistas, um sinal de amadurecimento democrático de parte a parte. O desafio é mobilizar maiores recursos financeiros para fazer avançar o conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológicos voltados à exploração sustentável dos recursos do mar, dentro de um contexto de forte restrição fiscal. 

É um tema que os vários responsáveis brasileiros têm sensibilidade? 

É um tema que sensibiliza setores do Governo e da universidade, mas ainda não é um tema nacional. Falta uma visão estratégica e integrada sobre a importância do mar e seus recursos naturais para o desenvolvimento sustentável do Brasil. Prevalece uma visão restrita ao setor de petróleo e gás. Ele é sem dúvida uma das partes mais dinâmicas da indústria do país. Mas o Brasil precisa alargar a sua visão sobre os recursos do mar, até porque os combustíveis fósseis terão uma participação declinante na matriz energética global. Hoje ainda vivemos os reflexos de uma grave crise económica e política que atingiu o país nos últimos quatro anos. Acredito que, no próximo mandato presidencial, haverá condições mais propícias para colocar em pauta questões que digam respeito ao desenvolvimento de longo prazo do país. 

A economia brasileira poderia registar um maior crescimento se houvesse uma maior aposta neste setor?

No curto prazo, esse impulso virá do setor de petróleo e gás, que vem se recuperando graças a medidas corretas tomadas pelo atual Governo. A Petrobras está se reestruturando para concentrar seus esforços na exploração e produção de petróleo e gás. Com a retomada dos leilões e melhores e mais seguras regras do jogo, o investimento direto estrangeiro está novamente em alta, sobretudo nos campos do pré-sal, que se vêm revelando mais produtivos do que se imaginava ao início. No médio prazo, o desenvolvimento da pesca pode-se mostrar importante. Um relatório da FAO, Estado Mundial da Pesca e da Aquicultura, publicado m 2016, projeta um crescimento de mais de 100% para a produção pesqueira do Brasil até 2025. No mesmo período, o estudo prevê um crescimento mundial da ordem de 17%. A aquicultura brasileira tem condições propícias para seguir se desenvolvendo. Também no médio prazo o turismo marítimo pode impulsionar a economia brasileira. Grande parte da nossa costa de 8 mil km se destaca por belas praias e cidades com boa infraestrutura hoteleira. Quase 30% da população brasileira vive no litoral e aproximadamente 60% dela em cidades com distâncias não superiores a 60km da costa. O turismo hoje gera mais empregos do que a pesca. Esta é cada vez mais intensiva em tecnologia. Já o turismo é intensivo em recursos humanos e isso felizmente não será alterado por maior que sejam as transformações tecnológicas. 

Em Portugal, um dos entraves ao desenvolvimento desta atividade é a falta de qualificação da mão-de-obra e acesso ao financiamento. Acontece o mesmo no Brasil? 

O financiamento sem dúvida é um entrave, pois o custo de capital no Brasil é alto, em especial para pequenas e médias empresas. A boa notícia é que os juros básicos da economia estão em seu patamar mais baixo em muitas décadas (6,5% por ano). Se a convergência dos juros brasileiros para padrões internacionais persistir, o que depende de reformas fiscais, o custo de capital no Brasil irá se reduzir significativamente ao longo dos próximos anos, beneficiando todas as atividades económicas, inclusive aquelas ligadas ao mar. Para o desenvolvimento dos setores do turismo e da pesca, onde há presença de empresas menores, isso será fundamental. Qualificação de mão-de-obra é um desafio em qualquer lugar do mundo. No Brasil não é diferente. Formação de recursos humanos capacitados requer tempo, em especial os de maior qualificação técnica. Não se trata apenas de adequar a oferta à demanda de trabalho no presente. É preciso alguma visão sobre o futuro. Onde queremos ter excelência e ser competidores globais? Essa é uma pergunta fundamental para qualquer país. Para um país grande, heterogéneo e diversificado regional e economicamente como o Brasil, não é simples respondê-la. Nesse sentido, países de menor tamanho, como Portugal, levam vantagem. 

Considera que o mar poderá unir mais os países da CPLP? 

O mar é parte essencial da história dos países que formam a CPLP. O espaço atlântico nos é comum, com exceção de Moçambique e de Timor Leste. Isso tem consequências práticas. Do ângulo das oportunidades, o Brasil pode contribuir significativamente com os esforços dos países da CPLP na costa ocidental da África para o conhecimento de suas plataformas continentais. Do ângulo dos desafios, há questões de segurança marítima, no combate ao tráfico de drogas e à pirataria, que requerem cooperação cada vez mais estreita entre o Brasil, Portugal e os demais países atlânticos da CPLP. 

E em relação a Portugal como é que se pode estreitar relações entre os dois países através do mar? 

Creio que já estão se estreitando. Vejo com muito bons olhos a cooperação entre os dois países na Estação Internacional para Estudos do Clima e dos Oceanos que se instalará nos Açores. E os esforços conjuntos das Marinhas dos dois países para melhorar a segurança da navegação no Atlântico em geral e no Golfo da Guiné em particular.

A Fundação Henrique Cardoso recebeu agora o prémio Navigare Mare 2018. Como vê esta distinção?

É um estímulo para que a fundação continue a se dedicar a temas que, embora muito importantes para o desenvolvimento de longo prazo do Brasil, nem sempre estão no centro das preocupações da sociedade e do mundo político. 

Por falar em política, como vê a atual situação no Brasil?

O Brasil atravessou uma tempestade perfeita nos últimos quatro anos: uma das mais prolongadas e intensas recessões económicas de sua história e, simultaneamente, uma crise política que atingiu todos os partidos e grande parte das lideranças políticas do país. Sobrevivemos, a democracia não se rompeu. Mas a confiança no país e nas instituições ficou abalada. O desafio agora é restabelecer essa confiança. Salvo um acidente de percurso, acredito que retomaremos o rumo no próximo mandato presidencial.