Chegou a Portugal nas vésperas do 25 de Abril, mas num piscar de olhos foi apanhado pelo comboio da revolução. Acordado pela vizinha, que lhe disse para não ir trabalhar por causa do que se estava a passar nas ruas, Phil Mailer, ativista libertário irlandês, não resistiu a sair pela porta de casa para ver as pessoas a “subir e a descer a Avenida da Liberdade consecutivamente só porque podiam”, enquanto ganhavam “cada vez mais confiança em si próprias” – algo “fantástico” depois de décadas de ditadura fascista. Um regime que mesmo de joelhos, lembra, ainda deixava as pessoas com “medo” e “receio do que pudesse acontecer com a polícia” se as forças revoltosas não triunfassem.
Phil Mailer, que vive entre a Irlanda e Portugal, conversou com o i a propósito da reedição do seu livro “Portugal – A Revolução Impossível?”. O regime, explica, mantinha-se vivo apenas pela via da “repressão, basicamente força bruta”.
E o 25 de Abril ainda teve um episódio desses. “A única violência nesse dia foi em frente ao quartel da PIDE”, lembra, atribuindo as responsabilidades às forças da repressão – o dia que seria apenas o primeiro de uma “semana de festa que culminou no 1.o de maio”, com uma “enorme manifestação em que toda a gente de Lisboa estava na rua”. Nas ruas, os “carros apitavam, as pessoas cantavam e riam” e “não havia mais espaço onde se estar”, recorda Mailer mais de 40 anos depois.
Foi o início de um processo revolucionário que o iria “fascinar” para o resto da vida. Entre o medo e o receio, decidiu permanecer no país e escrever um diário por ser o “início de uma revolução” que prometia ser “fascinante” e que abalou os alicerces da sociedade portuguesa. É esse livro que agora volta a dar à estampa pela mão da Antígona – Editores Refractários.
O motor da História
Nos dois anos seguintes, até ao 25 de Novembro, três tendências iriam confrontar-se na sociedade, fosse nas Forças Armadas, nas fábricas, no campo ou nas ruas. Para Mailer, existiam as fações que queriam o “capitalismo de Estado, com o PCP e outros partidos marxistas-leninistas” a quererem “nacionalizar tudo”; os que advogavam a construção de uma “democracia liberal, com o PS e algumas partes do MFA [Movimento das Forças Armadas]; e quem queria o “poder popular, que vinha da base”, para aprofundar a democracia por baixo. O irlandês não tem dúvidas quando considera que a “última era, de longe, a tendência mais interessante”, pois com o vácuo de poder – com os patrões e latifundiários a abandonarem o país com medo de eventuais represálias –, milhares de trabalhadores ocuparam fábricas e terrenos agrícolas sob os lemas “se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence” e “a terra a quem a trabalha”. Esses dois anos de revolução, considera, foram a “experiência mais rica em termos de poder da classe trabalhadora em toda a Europa desde a Guerra Civil de Espanha”.
Com as ocupações vieram os plenários em “quase todas as fábricas”, mas também os problemas, como “encontrar um sítio para se reunirem ou como lidavam com as várias tendências políticas” que se juntavam. Mailer recorda que, nos plenários, os “insultos entre os vários grupos [revolucionários] não tinham nada a ver com a verdadeira gestão da empresa”, dificultando a luta dos trabalhadores. Além de outros fatores que contribuíram para o 25 de Novembro, Mailer defende a tese de que a maioria dos “revolucionários eram parte do problema e não da solução”, pois, alega, “achavam-se a vanguarda”. Sempre que uma comissão fazia algo, os “grupos pequenos chegavam e tentavam geri-la, provavelmente dos lados”, lembra o autor. “Não foram eleitos e escolheram-se para serem os líderes das comissões de trabalhadores”, critica.
No seu livro não faltam críticas às ações do MRPP, UDP, PCP, MES, LCI e outros grupos mais pequenos, sem, no entanto, entrar pelo sectarismo ideológico. Os revolucionários ajudaram a travar a revolução, defende.
Entre 1974 e 1976, a “classe trabalhadora foi o motor da revolução e da história portuguesa”, considera. “Entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, toda a discussão andava à volta do que os trabalhadores deviam e podiam fazer”, relembra. Para uns, o debate era sobre como podiam “apoiar a classe trabalhadora”, enquanto, para outros, “era como travá–la”.
Entretanto, o risco de guerra civil aumentava, com “a extrema-direita a organizar-se silenciosamente” e os ânimos a aquecerem – ao mesmo tempo que a disciplina nas Forças Armadas começava a colapsar e o vi Governo Provisório perdia o controlo da situação. “Quando, em 1975, os fascistas começaram a queimar as sedes do PCP, a situação tornou-se muito séria”, diz Mailer. “Foi o começo do fim.”
A possibilidade de “separação – não direi guerra civil – do país entre as forças de esquerda e quem não as aceitava” tornou-se cada vez mais real. Depois, veio o 25 de Novembro, “uma guerra civil” e a “culminação da luta de classes”, como lhe chama, mas “sem os tiros”. Porque não reagiu a classe trabalhadora ao 25 de Novembro? Porque “já estava exausta”, explica, por ter sido “chamada para tantas manifestações” e por ter deixado de “acreditar na propaganda dos partidos, que tinham tomado a verdadeira luta”.
Revolução impossível?
Mais de 40 anos depois do dia em que o “povo tomou as ruas”, a revolução era mesmo impossível? “Sim, era impossível”, responde Mailer, sem deixar de relembrar que continua a acreditar na classe trabalhadora. “Portugal não podia existir por mais de 18 meses como uma ilha no meio do mar do capitalismo” europeu.
A existência da entente entre os EUA e a URSS e a intromissão dos norte-americanos, que nunca “permitiriam a criação de uma Cuba na Europa”, são outros elementos. Ainda assim, e apesar das inúmeras dificuldades para uma revolução bem-sucedida, Mailer acredita que “caso Franco [Francisco Franco, ditador espanhol, 1939-1975] tivesse morrido mais cedo, antes do 25 de Novembro” e se tivesse existido um movimento em Espanha, “algo diferente poderia ter acontecido”, porventura uma “revolução ibérica”. Daí poderiam ser dois passos “até ao resto da Europa”, se o espírito do Maio de 68 continuasse vivo.
“A revolução é uma surpresa. Não sabemos como e quando surge”, garante. “O que podemos fazer é aprender com as experiências e tentar imaginá-las na próxima” – uma aprendizagem que poderá não ser assim tão fácil, principalmente porque “sempre que algum evento se torna histórico, há a tendência de o reestruturar tendo em mente um projeto atual.”
No caso do 25 de Abril, os vencedores apresentam-no como uma “transição para se alcançar a verdadeira democracia, a parlamentar”, quando foi uma “revolução e rutura” com todo um sistema.
E Mailer não duvida de que, se as “pessoas soubessem os pormenores”, ele seria bastante inspirador”.
Saltando do passado para o presente, Mailer refere que as conquistas de Abril “ainda se mantêm, apesar das inúmeras tentativas para as degradar”, concluindo, porém, que “as conquistas não são adquiridas, temos de continuar a lutar por elas”.