Ed Tate. “Cada dia no laboratório é uma viagem para o desconhecido”

Estavam a tentar travar a malária e descobriram uma potencial cura para as constipações. Prémio de consolação? Muito pelo contrário, diz Ed Tate

A notícia fez correr tinta esta semana, por vezes com um tom um pouco irónico: “A sério, finalmente pode haver um medicamento para combater a constipação normal”, escreveu o site Futurism. A descoberta, anunciada pelo Imperial College London, uma das faculdades mais reputadas do Reino Unido, assenta numa molécula que parece impedir os vírus que causam as chamadas constipações comuns – as mais comuns, portanto – de invadir as células humanas. Ed Tate liderou o trabalho publicado na revista científica “Nature Chemistry” e não esconde o entusiasmo, mesmo quando o objetivo inicial da equipa era ajudar a travar a malária. O investigador respondeu por email às perguntas do i e fala dos resultados e de como poderão fazer a diferença, sobretudo para quem mais sofre de uma doença que nem sempre é assim tão benévola.

Estavam a tentar debelar a malária e acabaram a descobrir uma forma de travar as constipações comuns causadas por rinovírus. Isso diz alguma coisa sobre a forma como se faz ciência?

Acho que mostra como, apesar de os cientistas terem de ser rigorosos e lógicos no seu trabalho de investigação, também são pessoas altamente criativas e estão sempre à espreita do inesperado. Cada dia no laboratório é uma viagem para o desconhecido e acho que os avanços mais entusiasmantes surgem quando cientistas de áreas diferentes, por exemplo química e biologia, se juntam e percebem que podem resolver problemas que, sozinhos, não conseguiriam. Foi o caso deste nosso projeto em torno da constipação comum, em que um encontro casual entre mim e o prof. Roberto Solari, um biólogo do Imperial, levou a uma colaboração verdadeiramente gratificante.

Se vos dessem um Nobel por este trabalho ficariam felizes ou travar a malária seria um sucesso maior? Estamos habituados a ver as constipações comuns como doenças benévolas…

Na realidade há vários medicamentos bastante bons contra a malária a caminho do mercado (na pipeline) e já foi até atribuído um Nobel nessa área [em 2015, o Nobel da Medicina distinguiu Youyou Tu pela descoberta de uma nova terapêutica contra a malária]. Tirando uma vacina, penso que os passos que faltam serão incrementais, ainda que importantes. Para a constipação comum, pelo contrário, não existe nenhum medicamento que lide com os vírus propriamente ditos, apenas com os sintomas. E isto é um problema enorme para doentes com asma severa, doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) ou fibrose quística.

Qual foi o ponto de ligação entre a malária e a constipação que tornou esta descoberta possível?

Estávamos à procura (e encontrámos!) de uma molécula contra o mesmo alvo nos parasitas da malária, a proteína N- -myristoyltransferase (NMT), que se revelou um agente antimalárico eficaz. Ao fazer isso descobrimos moléculas que poderiam ter como alvo a NMT humana, que os vírus “sequestram” para construir uma espécie de cápsula que os protege e permite a infeção. Começámos à procura de aplicações e os rinovírus foram uma delas. Quero ainda clarificar que não estamos a falar da gripe, mas das constipações comuns: os compostos que estamos a desenvolver provavelmente não teriam impacto no vírus da gripe.

O que faz exatamente a molécula que descobriram e que interfere com as constipações?

Impede a NMT do hospedeiro, neste caso do ser humano, de funcionar. Basicamente trata-se de uma enzima que adiciona uma gordura às proteínas que temos nas nossas células e que os vírus sequestram para montar a sua cápside, um invólucro proteico que protege e leva o material genético dos vírus para as células. Como qualquer vírus, os vírus que causam as constipações comuns dependem das células do hospedeiro para se replicarem; por isso, basicamente, a nossa molécula faz com que as células humanas deixem de ser um ambiente onde é permitido os vírus fazerem as suas cópias. 

Esta mesma ideia funcionaria para outros vírus, por exemplo para o VIH?

No artigo que publicámos fazemos essa demonstração para outros vírus geneticamente parecidos com o rinovírus, como o vírus da poliomielite ou o vírus da febre aftosa. O VIH também depende da NMT do hospedeiro para a construção da sua cápside, apesar de, fora isso, não ter nada a ver com os rinovírus. Em trabalho que ainda não publicámos mostramos que, provavelmente, as nossas moléculas seriam agentes anti-VIH extremamente eficazes.

Por agora, no caso das constipações, imaginam que esta molécula venha a ser usada na forma de vacina e permita erradicar as constipações ou simplesmente permitiria tratar as pessoas mal surgem os sintomas, diminuindo as cadeias de contágio? 

Não podemos erradicar estes vírus com um medicamento a menos que se tratasse toda a população durante um longo período, o que não seria ético. Seria mais a segunda hipótese, um medicamento deste género impediria o vírus de se instalar e o resultado seria reduzir a transmissão.

Se tivermos menos constipações, o nosso sistema imunitário não ficará menos habituado a estes vírus, aumentando o risco de termos a infeção com maiores complicações?

É um bom ponto. Penso que este medicamento serviria apenas para tratar pessoas com doença pulmonar obstrutiva crónica e doentes com asma, que poderiam usar uma fórmula inalável. São as pessoas que mais beneficiariam e com as quais haveria maior impacto em termos de redução da doença e dos custos relacionados com cuidados de saúde.

Quando é que a molécula poderá chegar à clínica?

Se hoje recebêssemos o investimento necessário, provavelmente poderíamos começar os ensaios clínicos dentro de três anos e ter um medicamento dentro de oito anos. Mas, como em qualquer processo de desenvolvimento de um medicamento, a probabilidade de falharmos continua a ser significativa. Precisamos de fazer estudos toxicológicos rigorosos para demonstrar que a molécula seria segura o suficiente para continuarmos.

Todos os invernos aparecem novos medicamentos para os sintomas das constipações, da tosse à congestão nasal. Depois de sair o artigo na “Nature” receberam muitos contactos de farmacêuticas? A ideia é vender?

Sim, recebemos. Neste momento estamos a analisar se fazemos uma parceria com uma empresa biotecnológica ou se fazemos a nossa própria spin-out [da universidade], mas penso que ainda vamos levar isto um pouco para a frente antes de pensar em vender.

As farmacêuticas estariam interessadas em curar a constipação comum? De acordo com as últimas projeções de mercado, espera-se que os medicamentos para os sintomas de constipação e tosse rendam 7 mil milhões de euros este ano e que continuem a crescer 2,6% ao ano…

Sim, mas, como já disse, não estamos a falar de um medicamento de venda livre. Atualmente não existe um teste de diagnóstico comercial para os rinovírus, por isso não temos a certeza se alguém tem mesmo uma infeção com estes vírus ou algo com sintomas parecidos. Não seria ético expor alguém a um medicamento de que não beneficiaria. Os destinatários seriam doentes com asma e DPOC, cujos gastos com cuidados de saúde estão calculados em 30 mil milhões de dólares. O valor de mercado para esta população específica seria de mil milhões de dólares.

Um dos investigadores da sua equipa inventou o Viagra para a Pfizer. Imaginam esta molécula a ter um impacto semelhante?

Andy Bell conduziu a parte de química deste trabalho no laboratório. Penso que as implicações em termos de cuidados de saúde do nosso medicamento seriam maiores, mesmo que os impactos culturais sejam menores.

O que se segue em termos de investigação?

Além de tentarmos comercializar esta solução no caso dos rinovírus, estamos interessados noutras indicações para a NMT, talvez até no cancro.

Algumas pessoas sofrem mais do que outras com as constipações. É o seu caso?

Por acaso, não, costumo escapar. Mas para quem tem menos sorte, o segredo é simples: comer bem, fazer exercício regularmente e dormir o suficiente para manter o sistema imunitário saudável.