Roger Scruton. O filósofo de cabeceira da Nova Direita

Histeria, ignorância e muita húbris: um prato forte para quem chega à filosofia política cheio de suposições mas sem dentes. Para ir mais longe, o enfant terrible da Nova Direita precisava era de ter lido realmente os seus pretensos alvos

 

Prolífico autor inglês, com perto de 50 títulos publicados, entre ensaio, ficção e teatro, Roger Scruton é considerado como o natural herdeiro de Edmund Burke e um dos nomes cimeiros do conservadorismo contemporâneo. Tendo sido originalmente publicado em 2015, com um título que devia colocar logo de sobreaviso, estas 400 páginas que amontoam citação atrás de citação – quase sempre com o mesmo veredicto: ilegível – são consideradas pelo autor como uma provocação. Se esta estratégia, usada e abusada pela direita indígena, é por demais conhecida, Scruton, que passa por ser um académico com pergaminhos – é Visiting Professor da Universidade de Oxford -, merece que se coloque à prova a provocação para ver se há nesta alguma novidade. Se, para começar, uma parte substancial do livro (o segundo e o terceiro capítulo, uma grande parte do sétimo) diz muito pouco ao leitor português, ao discutir o contexto intelectual inglês e norte-americano, já os restantes destes “pensadores da Nova Esquerda” são já suficientemente universais para que o mínimo de interesse se insinue. 

No entanto, os problemas começam logo aí. Olhando para os diversos autores discutidos, quem não perceba nada do assunto fica a pensar que, à excepção de três deles ainda vivos (Habermas, Badiou e Zizek), a esquerda europeia não produziu nada de relevante nos últimos 30 anos. Seria de esperar que um eminente scholar de uma prestigiosa universidade inglesa, que passa o tempo a dar lições quanto à verdade e ao rigor, fizesse aquilo que um qualquer aluno de licenciatura deve conseguir fazer, mas que ele, pelo que parece, não quis ou não consegue: um levantamento dos nomes representativos do pensamento de esquerda contemporâneo, que não aqueles que aparecem nos documentários da televisão. Mas como o rigor deve ser, também ele, uma provocação por parte de Scruton, somos obrigados a penar por páginas intermináveis sobre Althusser, o pai do marxismo estruturalista cuja influência, no pensamento contemporâneo, Scruton não explica, Lacan, que parece caído do céu num livro sobre pensadores de esquerda, sem qualquer ligação evidente aos restantes, a não ser que apareça pela repetição acrítica do famoso “pensamento 68” de Luc Ferry e Alain Renault. Ou mesmo Sartre, cujos contributos para a teoria política da esquerda contemporânea ficam, também, por provar. Também deve ser por provocação – um intelectual da craveira de Scruton, obviamente, não pode ser tão ignorante – que Jacques Derrida, com um livro seminal sobre Marx (Spectres de Marx), que deu azo a uma já grande literatura secundária, não compareça, que Giorgio Agamben, um dos membros mais proeminentes do pensamento de esquerda italiana, não seja sequer citado, que o tema da biopolítica seja ignorado, que Hardt e Negri, com um livro marcante para o pensamento de esquerda contemporânea, não sejam discutidos, que o feminismo, que nos deu Butler e Braidotti, não seja aflorado ou que Rancière, um dos nomes incontornáveis da actualidade, desapareça sem deixar rasto. Mais grave ainda, tendo em conta que se trata de um autor anglo-saxónico, é a ausência de qualquer referência a John Rawls, que não é, certamente, um perigoso esquerdista, mas que tem sido a inspiração de grande parte da social-democracia, tanto na Europa como no mundo anglo-saxónico.

Há, no entanto, e para se ser justo, uma tentativa de explicação para todos estes esquecimentos. Estas 400 páginas penosas foram escritas na década de 80 do século passado e, como se lê no prefácio, Scruton limitou-se a retrabalhar textos originais e a incluir uns quantos nomes (Lacan, Deleuze, Said, Badiou e Zizek) que julga representativos. Esta desculpa, no entanto, é fraca e a pressa nunca foi amiga de um trabalho minimamente sério. Então, das duas, uma. Ou Scruton não editava este livro ou, querendo editá-lo, teria de ter feito o mínimo trabalho de investigação e pesquisa. Porque não se percebe, de facto, que Nova Esquerda é essa, se são ignorados grande parte dos pensadores contemporâneos conotados com a mesma. 

Mas passemos por cima destes pequenos erros que não seriam desculpáveis a um aluno de filosofia. E ignoremos, também, as afirmações ou as teses delirantes. Quando, por exemplo, tenta colar Foucault a uma compreensão marxista, teleológica, da história ou quando afirma que a teoria da episteme, de Les Mots et Les Choses, é “uma reposição da teoria da ideologia de Marx”, provando que não percebeu nada de Foucault (é melhor ignorar as insinuações relativas à doença e à morte de Foucault, que não deviam ter lugar numa obra que se quer minimamente séria e que dizem bastante de figuras como Scruton); ou quando insinua, pasme-se, que a culpa de termos hoje Viktor Orban é de Lukács (que morre em 1971 e que, aposto, 90% dos Húngaros não faz a mínima ideia quem seja), que Sartre é culpado pelos crimes de Pol Pot – pela mesma ordem de ideias, Scruton é culpado pelos crimes homofóbicos, pelos crimes raciais ou pela crise ambiental -, que Adorno era um adepto furioso da União Soviética e do “jargão da autenticidade” (Adorno dizia o contrário, mas quem é ele para contrariar Scruton?) ou que Gramsci, na realidade, era um pensador fascista (os fascistas, pelo que parece, não concordaram com Scruton e, vai daí, prenderam Gramsci). Nem o Professor Habermas, como lhe chamava, ironicamente, Lyotard, escapa aos delírios de Scruton. E descobrimos, então, que o prestigioso pensador da social-democracia europeia, defensor da tradição iluminista contra os perigosos esquerdistas, herdeiro de Kant, é, na realidade, um acérrimo defensor de um “programa revolucionário” e, além disso, um adepto da “tagarelice como o verdadeiro objectivo da política” – tudo leva a crer, portanto, que a tagarelice é revolucionária e que o projecto absolutista e totalitário da Nova Esquerda é instituir o Reino da tagarelice.

Se ignorarmos, portanto, os delírios, as incorrecções, os momentos em que treslê os autores convocados e a repetição até à náusea de um dispositivo antigo que já nem os mais radicais dentro da tradição analítica defendem (não percebi, logo, ninguém percebe, logo, não tem sentido), se ignorarmos, portanto, grande parte destas 400 páginas, o que é que sobra? Um bom retrato de coisa alguma, umas quantas teorias da conspiração que de novo nada têm, uns saltos de pensamento injustificados, e um conjunto de ideias que são património da direita desde, pelo menos, Raymond Aron. Tomemos alguns exemplos. 

Já se viu que quem procure compreender alguma coisa sobre a Nova Esquerda não encontrará aqui nada, que a Nova Esquerda, para Scruton e amigos, é, na realidade, o papão soviético, convocado até à náusea para gáudio dos colunistas do Observador que gritam “é isso!” de cada vez que Scruton “demonstra” que em todos estes pensadores se esconde um estalinista em potência. Depois, há, pasme-se, um gesto típico daquilo que a direita tanto gosta de acusar a esquerda: o politicamente correcto (seja lá o que isso for: que o discurso académico seja contaminado por obscuras palavras de ordem jornalística é um mau indício). Vamos então partir do pressuposto de que Scruton está correcto e que Adorno, Lúkacs, Habermas, Foucault, e todos estes pensadores são estalinistas em potência, prontos a enviar-nos a todos para um campo de concentração na Sibéria. O que nos diz Scruton e os histéricos que o acompanham? Depois de uma contagem de cadáveres – de que tanto gostam e com o qual se divertem – clamam: “não ler!”, “evitar!”, “cuidado!”. Depois destas 400 páginas, descobrimos o seguinte: quem tiver o azar de ler algum desses autores, quem conseguir compreender de forma mais ou menos interessante o que eles dizem (mas, claro, ninguém o consegue, pelo que ou aderimos fervorosamente ou rejeitamos fervorosamente), fica logo sob o efeito da magia negra do estalinismo e está pronto para enviar João Miguel Tavares ou Rui Ramos para o Gulag. A ideia de que os departamentos de Humanidades espalhados pela Europa estão pejados de estalinistas sanguinários, uma espécie de guarda pretoriana de Deleuze e companhia, é, no mínimo, contra-intuitiva, senão mesmo disparatada. Mas para um histérico moralista, que grita por Estaline de cada vez que encontra um pedaço de prosa que não compreende, isso, presumo, pouco conta. O melhor, portanto, diz-nos o histérico, é não ler, colocar todos estes esquerdistas perigosos (Habermas incluído) numa sala protegida por seguranças e câmaras de vigilância, e obrigar a um exército de leituras (com Scruton e os colunistas do Observador à cabeça) antes de alguém se aventurar pelos meandros mágicos e perniciosos do marxismo.

É possível levar isto a sério? É possível levar a sério alguém que está constantemente a falar em Utopia para com isso descrever a esquerda, quando grande parte destes pensadores rejeita de forma clara qualquer forma de pensamento utópico? É possível levar a sério alguém que se limita a repetir acriticamente o argumento de Aron de que o marxismo é um fenómeno substitutivo da religião – mas depois afirma que a Nova Esquerda é relativista e quem lê fica perdido entre uma visão absoluta e totalitária do real, que parece devedora de Carl Schmitt, o pensador fascista, e o relativismo moral e epistemológico de, pasme-se, fervorosos religiosos que dividem a sociedade no par amigo/inimigo. Scruton não vê problema algum nisto e acha que tudo isto faz sentido. 

Depois disto tudo, claro, há a arenga do costume, que a direita repete até à exaustão em circuito fechado: que a esquerda repudia a civilização ocidental, querendo com isso mandar a tradição marxista, num gesto típico do politicamente correcto, para o caixote do lixo do Ocidente, provando que não leu Zizek e que esqueceu que a dimensão revolucionária e crítica do pensamento estão já inscritos no Iluminismo; que a esquerda é irracional; e, por último, os dois maiores mitos que a direita tenta forçar: que o mundo cultural é controlado por perigosos esquerdistas e que o nazismo e o comunismo são equivalentes (secundados neste por José Rodrigues dos Santos, um reconhecido pensador e historiador). Umas breves palavras sobre estes dois. 

Depois de insinuar que o comunismo é pior que o fascismo (este, pelo menos, chegou ao poder através de eleições livres, parece dizer), Scruton baseia a equivalência em dois factos que, diga-se, nada têm de novo: o facto de ambos serem movimentos populares e de massas e o facto de ambos considerarem “a lei opcional e as obrigações constitucionais irrelevantes”. Se o primeiro é trivial até certo ponto – os objectivos dos movimentos eram opostos, mas isso importa pouco a Scruton – já o segundo incorre no erro um pouco ingénuo de achar que duas coisas são iguais (fascismo e comunismo) apenas porque negam uma terceira (democracia “burguesa”) e tem como consequência transformar Carl Schmitt num pensador… marxista. 

O primeiro destes mitos que a direita repete até à exaustão é ainda mais absurdo se aplicado a Portugal. O campo editorial, por exemplo, é controlado por duas grandes empresas. A não ser que se pressuponha que estas são secretamente comandadas por um grupo de trotskista, maoistas ou comunistas, não se vê em que medida é que ele possa fazer parte desta conspiração que Scruton vê em toda a parte – cita pelo menos duas vezes uma fala de Mefistófeles, do Fausto, de Goethe, para caracterizar a esquerda, para vermos o grau de paranóia apenas freudianamente explicável. Se a isto juntarmos o facto de ter sido publicado por uma editora em que um dos seus nomes maiores foi membro de um conhecido governo de direita em Portugal, podemo-nos divertir um pouco e entrar na lógica paranóica de Scruton, perguntando: editaria Francisco José Viegas Badiou? Ou iria censurar este perigoso esquerdista?