Depois de sucessivos alertas, a Ordem dos Farmacêuticos avisou esta semana que a entrada em vigor das 35 horas para todos os funcionários a 1 de julho pode criar uma rutura como não há memória no SNS. Há razões para preocupação?
A redução das 40 para 35 horas de trabalho semanal representa uma redução de disponibilidade de recursos humanos na ordem dos 12,5%. Ou seja, uma perda superior a um trabalhador em cada 10. Importa destacar que, em 2016, ocorreu já uma redução do horário de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, não tendo sido até ao momento reposto o número de colaboradores equivalentes a esta medida. Ao ser reduzido o horário de trabalho também para os trabalhadores com contrato individual de trabalho, efetivamente teremos um problema difícil de contornar. Daí, no início do mês, termos enviado ofícios de alerta aos ministros das Finanças e da Saúde, grupos parlamentares e comissão parlamentar de saúde.
Mas o risco de rutura é real?
Não me parece que possamos falar de uma rutura generalizada dos serviços: a resposta imediata dos hospitais passará pelo recurso a horas extraordinárias e a um ajustamento em baixa da oferta de serviços. Se nada for feito, o impacto será gradual e assimétrico na rede do SNS. Existem hospitais com níveis de carência diferentes e o efeito será gradual e não imediato.
O ministro da Saúde garantiu esta semana que, para já, serão contratados pelo menos 2000 enfermeiros e assistentes. Há quem fale de um processo planeado em cima do joelho. Foi mal acautelado?
A raiz do problema não está na questão das 35/40 horas. A questão passa pelo ciclo de planeamento e gestão do Serviço Nacional de Saúde. Inicia-se com a identificação das necessidades da população, seguida pela determinação da atividade e os recursos envolvidos para responder a essas necessidades. Naturalmente, existirá sempre uma restrição orçamental que deverá obrigar à definição de escolhas. Ao nível local, cada hospital deve saber que para a atividade esperada pode contar com um determinado número de recursos, pelos quais deve ser responsabilizado.
É isso que não acontece?
Este processo está completamente adulterado pela intervenção centralista das finanças. Nenhum hospital do SNS sabe ao certo qual o orçamento ou quais os recursos humanos com que pode contar ao longo do ano. Por exemplo, as autorizações para a contratação de colaboradores são feitas caso a caso pelo Ministério das Finanças. Não é sequer conhecido o racional para as autorizações. Num serviço público de elevada complexidade em que não existe um planeamento e gestão adequadas, a questão das 35/40h vem agravar o problema. Nenhum hospital previu que esta medida entrasse em vigor, nem na sua atividade, no seu mapa de pessoal ou no seu orçamento.
Segundo o Relatório da Primavera, só o regresso às 35 horas dos enfermeiros com contratos de funções públicas terá absorvido 3000 contratações que aconteceram nos últimos dois anos. É mesmo realista pensar que mais 2000 funcionários a 1 de julho são suficientes?
O número avançado é manifestamente insuficiente, mas é um dado positivo. Estou em crer que existirá o bom senso para aumentar este número de contratações até ao final do ano.
O mesmo relatório fala de um setor hospitalar à beira de um ataque de nervos. Reviu-se na expressão?
Tive a oportunidade de afirmar que o relatório em grande medida expressa o sentimento do setor. A estratégia orçamental conduzida pelo Ministério das Finanças passa pela restrição da tesouraria e adiamento administrativo da despesa. Os hospitais vivem com um sub-orçamento e uma lei de compromissos e pagamentos em atraso tecnicamente impossível de cumprir. A incapacidade das equipas de gestão conseguirem realizar tarefas básicas e resolver problemas simples conduz a um sentimento elevado de frustração que se transmite a todos os níveis de organização. A irracionalidade do enquadramento gestionário conduz ao elevado grau de desperdício de recursos, frustração dos profissionais e incapacidade de resposta às necessidades dos doentes. Os profissionais de saúde têm sido heroicos face a toda esta adversidade.
Têm defendido uma profissionalização da gestão e o relatório alerta que existe ainda um forte pendor de confiança política nas nomeações. É justa a ideia de que o SNS continua a ser gerido por boys?
Atualmente, existe um alargado consenso internacional sobre a necessidade de se possuir conhecimentos e competências específicas para o exercício de funções de gestão no setor da saúde. É aliás um dos temas principais do próximo Congresso Europeu de Gestores Hospitalares (27.º) a realizar no Estoril em setembro deste ano.
Portugal tem uma longa tradição nesta matéria. No final dos anos 60 ficou prevista legalmente a necessidade de profissionalização da administração hospitalar. Em 1970 inicia-se o curso de administração hospitalar, tendo culminado na aprovação de uma carreira em 1980. Estas pessoas preparam e desenvolveram o SNS. Contudo, hoje esta carreira merece atualização, encontrando-se congelada desde 2001 com impacto sobre a qualidade da gestão intermédia e de topo das organizações de saúde. É justo reconhecer, porém, que tem sido feita uma evolução no modelo de seleção dos elementos dos conselhos de administração.
Com a intervenção da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) no processo de escolha?
Sim. Veio reduzir a possibilidade de nomear indivíduos sem qualquer preparação ou sensibilidade para um setor tão complexo. Mesmo o atual Governo tem feito um esforço para nomear profissionais com formação e experiência. Temos vindo a reforçar a necessidade de tornar públicos os requisitos mínimos para o exercício de funções ao nível dos conselhos de administração, por exemplo, anos de experiência profissional e formação. Por outro lado, é necessário avaliar de forma transparente o desempenho dos conselhos de administração, afastando ou premiando os gestores de acordo com os resultados alcançados.
Anunciaram que iam pedir uma reunião urgente com os ministérios da Saúde e Finanças porque o Tribunal de Contas tem estado a rejeitar vistos para compras até de medicamentos. A quebra de autonomia atingiu uma linha vermelha?
A nossa obrigação é identificar problemas e propor soluções. Sob nossa insistência, o Ministério das Finanças foi já afastado da autorização de contratos plurianuais uma vez que não acrescentava nada ao processo e apenas atrasava os processos de contratação pública em meses. No caso dos vistos, o Orçamento de Estado prevê um défice do SNS superior a 260 milhões de euros: este facto por si inviabiliza tecnicamente o cumprimento da Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso (LCPA). O Tribunal de Contas cumpre a lei, tendo rejeitado visto a mais de uma dezena de contratos por falta de fundos disponíveis. Apesar do problema não estar solucionado, a Direção Geral do Orçamento veio apresentar uma solução temporária disponibilizando cerca de seis milhões de euros para utilização nestes processos.
Chega?
Este problema apenas de resolve com orçamentos adequados ou pela alteração da Lei. Vamos apresentar uma proposta de alteração à LCPA durante o mês de setembro.
Marques Mendes lembrava há pouco tempo, a propósito do pacto para a saúde, que tudo o que é importante e estratégico ou se faz nos dois primeiros anos do Governo ou nunca mais se faz. Chegados praticamente à reta final da legislatura, há o mesmo sentimento entre os gestores?
O setor vive um enorme desequilíbrio que remonta ao início da crise financeira. Vive-se com um problema grave de equipamentos e um elevado desânimo dos recursos humanos. Esta legislatura apostou na recuperação dos direitos dos trabalhares perdidos durante o período de ajustamento económico e financeiro. No entanto, este movimento não foi acompanhado com um aumento do investimento no SNS. Em 2018 o SNS teve o orçamento mais baixo em percentagem de PIB desde há mais de 10 anos. Ou seja, o setor tem mais custos e menos receita para mais necessidades da população. Uma equação de resultado previsível. O SNS é um instrumento para a melhoria dos indicadores de saúde dos portugueses, e por sua vez no desenvolvimento económico de Portugal. Devo, ainda assim, manifestar uma total concordância na aposta seguida por este Governo nas matérias de promoção de estilos de vida saudáveis, incluindo as propostas de taxação de produtos com elevado teor de açúcar e sal.
Se tivesse de apontar uma ou duas medidas imprescindíveis para garantir a sustentabilidade do SNS e a correção de desigualdades no acesso à saúde, quais seriam?
Sugiro duas medidas concretas com elevado impacto no acesso a cuidados de saúde. A primeira seria majorar a comparticipação de medicamentos para os 20% da população com rendimentos mais baixos. Atualmente, um dos fatores causadores de maiores iniquidades no acesso a cuidados de saúde está no acesso a medicamentos dispensados em farmácias comunitárias. Cerca de um terço dos 20% da população com menor rendimento enfrenta despesas catastróficas em saúde. Não é possível aceitar que se continuem a fazer escolhas entre medicamentos e outros bens essenciais.
E a segunda medida?
Seria o desenvolvimento de respostas integradas centradas no cidadão sénior. O programa de cirurgia de ambulatório foi sem dúvida um dos maiores sucessos recentes do SNS. É necessário desenvolver um programa de resposta à população com mais de 65 anos que integre hospitais, centros de saúde, cuidados continuados e segurança social. Recentemente tivemos uma conferência em que foi possível conhecer como a Escócia respondeu a esta problemática. Juntamente com outros países europeus poderá ser um bom exemplo a adaptar cá.
Seria fácil financiar essas medidas?
Ambas podem ser financiadas no imediato pela redução dos benefícios à coleta das despesas em saúde em sede de IRS.