A Volta começou de cacilheiro

No dia 26 de abril de 1927, os ciclistas alinharam-se no Marquês: os fortes vestiam de negro, os fracos de verde, os militares de vermelho… 

Abril de 1927 – dia 26, terça-feira. A primeira edição da Volta a Portugal estava na estrada. Na estrada e no rio, mas já lá vamos. «Prova desportiva de violência», destacava a imprensa, alguma dela invejosa. Invejosa porque a ideia saíra do bestunto de Raul Oliveira, do jornal Os Sports, e era o seu periódico a organizar a prova a meias com o Diário de Notícias. De tal forma invejosos, acrescente-se, que no mês seguinte O Sporting, sedeado no Porto, avançou para a estrada com outra Volta, embora mais modesta.

A brincadeira ficou tão cara aos organizadores que só voltou a haver nova edição em 1931 por falta de verbas disponíveis.

A primeira etapa começou em festa. No Marquês de Pombal, os concorrentes alinhavam por cores correspondentes à sua categoria: de preto, os mais fortes; de verde, os mais fracos; de vermelho, os militares, fossem eles fracos ou fortes. A caravana percorreu a Baixa por entre o entusiasmo popular e foi em ritmo de passeio até ao Cais do Sodré. Atravessou o Tejo num vapor da Parçaria, como chamava o povo aos então cacilheiros da Parceria dos Vapores Lisbonenses, e iniciou a primeira etapa em Cacilhas para a terminar em Setúbal.

Uma festa!

22 dias de competição à volta do país: Lisboa-Setúbal; Setúbal-Sines; Sines-Odemira; Odemira-Portimão; Portimão-Faro; Faro-Beja; Beja-Évora; Évora-Portalegre; Portalegre-Castelo Branco; Castelo Branco-Guarda; Guarda-Torre de Moncorvo; Torre de Moncorvo-Bragança; Bragança-Vidago; Vidago-Braga; Braga-Porto; Porto-Coimbra; Coimbra-Caldas; Caldas-Lisboa.

Volta mais volta era difícil.

Dois dias de descanso: em Vidago e nas Caldas da Rainha.

1.958,5 quilómetros a percorrer.

Era obra!

Primeiro de amarelo

Quirino de Oliveira era atleta do Clube Atlético de Campo de Ourique. Foi ele o vencedor da primeira etapa e, portanto, o primeiro camisola amarela da história da Volta a Portugal. O seu combate ombro a ombro com António Augusto de Carvalho, do Carcavelos, e vencedor da prova, ficou por muitos anos no imaginário de todos os que seguiram a Volta com entusiasmo e pertinácia. Diga-se, pelo caminho, que a competição só teve três camisolas amarelas: Quirino, Carvalho e Nunes Abreu, do Leixões, na etapa 15.ª, entre Braga e Porto.

Quirino de Oliveira ver-se-ia atraiçoado pela estrada a caminho de Moncorvo: depois de seis etapas envergando a amarela, uma queda dolorosa fê-lo ser ultrapassado por António Augusto de Carvalho. De forma decisiva. Acabaria em terceiro.

O vencedor da primeira Volta a Portugal gastou 79 horas e 8 minutos para cumprir o percurso.

Só três ciclistas ficaram a menos de uma hora do primeiro: Nunes de Abreu (a 9 minutos e 31 segundos); Quirino de Oliveira (a 19 minutos e 6 segundos); e Santos de Almeida, do Benfica (a 34 minutos e 18 segundos). O quinto classificado, Aníbal Firmino, do Carcavelos, terminou a anos-luz – uma hora, 25 minutos e 58 segundos.

Dos 38 ciclistas que se tinham enfileirado no Marquês de Pombal, naquele dia 26 de abril, 26 chegaram a Lisboa depois de percorrerem o país de lés-a-lés. Apenas 12 desistiram, o que, para as dificuldades da época, se pode considerar mais do que razoável. O Carcavelos ganhou por equipas e o Sporting ficou em segundo. António Marques, do Carcavelos, foi o melhor dos fracos; o telegrafista João Francisco foi o primeiro dos militares.

«À partida das Caldas, a conquista do primeiro lugar estava verdadeiramente circunscrita a três corredores: Augusto Carvalho, Nunes de Abreu e Quirino», desfiava um dos jornais lisboetas no dia 16 de maio. E continuava, esclarecendo uma regra muito particular: «Os cerca de 2000 quilómetros do circuito foram divididos em 18 etapas – a última das quais Caldas-Lisboa. Até à 17ª, os corredores, de etapa para etapa, partiram ‘em linha’, tomando-se a cada um o tempo gasto. Na 18.ª, porém, partiram distanciados uns dos outros de harmonia com os tempos obtidos nas etapas anteriores».

Não deixaria de provocar confusão.

Entre as Caldas da Rainha e Lisboa estabeleceu-se um percurso que cumprisse exatamente 100 quilómetros. Santos Almeida seria o vencedor com um tempo histórico . partiu às 12 horas, 11 minutos e 44 segundos e chegou às 15 horas e 44 minutos. Tempo gasto: 3 horas, 32 minutos e 16 segundos, menos 7 minutos e 23 segundos do que o grande vencedor Augusto Carvalho.

Batera o recorde nacional dos 100 quilómetros.

«Lançou-se a semente à terra. Dentro de poucos anos a Volta a Portugal pode tornar-se uma prova modelar, como a Volta à França», orgulhava-se Raul Oliveira que tinha feito parte da comitiva do Tour de 1919 e, desde então, não desistiria sem ver algo de parecido acontecer em Portugal.

Os ciclistas só voltariam às estradas nacionais em 1931, como já vimos. Surgiria aí a rivalidade mais famoso de toda a história velocipédica portuguesa, a que opôs José Maria Nicolau, do Benfica, a Alfredo Trindade, do Sporting. E que fez com que o povo se apaixonasse definitivamente pela Volta a Portugal.