Dois irmãos salvaram o convento de Monchique do fogo

Esta é uma história de coragem e resiliência. Dois irmãos vivem há quase 40 anos num convento em ruínas, em Monchique. Sozinhos, enfrentaram o lume e salvaram o monumento. 

António anda confuso e intrigado por estes dias: quando as chamas chegaram ao Convento de Nossa Senhora do Desterro, numa das encostas de Monchique, levaram tudo o que puderam à frente. Mas um casaco vermelho que estava pendurado numa corda à entrada do edifício do século XVII resistiu intacto, enquanto tudo o resto ardeu. Agora, António anda entretido a magicar que pode ter havido qualquer coisa de muito transcendental por detrás do «milagre». Só ainda não conseguiu descortinar o quê e o porquê. «É que aqui dentro aconteceram sempre coisas muito misteriosas», garante. 

Deve saber do que fala: António e o irmão, Vidaúl, vivem no convento, completamente em ruínas, há quase 40 anos. E se não fosse terem feito do monumento casa, o lugar teria sido completamente engolido pelas chamas ao início da noite de segunda-feira, quando o lume voltou a embicar com a vila e, pela segunda vez, entrou Monchique adentro. 

Vidaúl estava sozinho, já quase adormecido, quando deu conta das chamas a estalar, em fúria, mais acima, na encosta. Levantou-se à pressa e encheu uma máquina de sulfatar com a água de uma nascente. Começou a molhar as imponentes paredes de pedra do convento e António chegou entretanto, esbaforido. Minutos depois, quando o lume se lhes apresentou à porta, fizeram-lhe peito, munidos de enxadas e pás, numa luta que prometia ser desigual: dois homens sozinhos no meio da noite, frente-a-frente com uma muralha de labaredas com metros de altura. Mas os irmãos ganharam: o fogo queimou tudo, mas não se atreveu a entrar no mosteiro. Mesmo assim, no dia a seguir os jornais e as televisões anunciavam, com pesar, que nada tinha sobrado do Convento de Nossa Senhora do Desterro. As fake news tiveram razão de ser: o lume desceu a encosta com tamanha vontade que não era possível que o monumento tivesse escapado.  

António recusa o rótulo de herói. «Sou só um pobre diabo que aqui ando, sempre fui. Tenho uma vida de merda», atira, num tom tão direto que desarma. Na década de 1970, os pais cultivavam as terras de uma família rica, no meio da Serra de Monchique. Mas revoltaram-se contra os patrões, que insistiam em lhes levar dois terços de tudo o que cultivavam. Um dia fartaram-se do regime de quase escravatura, arrumaram as malas e foram-se embora. Sem sítio para viver e com três filhos pequenos nos braços, ouviram dizer que havia gente pobre a viver num convento abandonado ao cimo de Monchique. Foi para lá que se dirigiram, a pé, por entre silvados e sobreiros. E foi aí que puderam abrigar-se das intempéries do Inverno e do calor duro do verão algarvio. Começaram por ocupar um pequeno quarto, porém, com o tempo, os restantes ocupas foram compondo a vida e saindo dali a conta-gotas. 

Só que a vida de Solange e Fernando nunca se compôs. Nasceram pobres, pobres continuaram e foram ficando nas ruínas até morrerem. Antes, ainda assinaram um contrato com os donos do mosteiro, que concordaram que ali ficassem, a troco de uma renda. Para poder pagar, Fernando cavou de sol a sol anos a fio. E assim nunca faltou comida à família. «O meu pai dizia muitas vezes: podíamos não ter dinheiro, mas havíamos de ter fartura da terra».

António, Vidaúl e uma irmã cresceram saudáveis. O primeiro casou, muito novo, com Graça, a filha de um vizinho. Ainda vivem juntos e juntos tiveram dois filhos: Marco e João, agora na casa dos 20 anos e que também cresceram no convento. Vidaúl também casou, mas não teve filhos e acabou por se separar. Agora está solteiro. Em tempos, deixou o convento e foi morar para outro lado, mas há quatro anos regressou. E ultimamente tem estado mais sozinho: há uns meses, o irmão e a mulher arranjaram finalmente uma casa na vila, ainda que António continue a passar praticamente todo o tempo no monumento abandonado. Diz que gosta de «ouvir o canto dos pássaros» e de ver os «bichos a passearem-se dentro» do convento, quase completamente tomado pelas ervas. «Eu estou bem é na natureza. Dizem que o maluco sou eu, mas não sei onde é que anda o juízo das pessoas… abandonarem os campos… é da terra que nasce a vida toda», diz. 

A referência ao «maluco» tem uma explicação. Há uns anos, por causa de uma «intriga» montada por «gente» de Monchique, António perdeu a cabeça. Alguém lhe insinuou que a mulher teria outro homem. Desnorteado, meio com os copos e «por amor louco», pegou num molho de notas e saiu do convento, ligeiro. Já na vila, ofereceu dinheiro a quase toda a gente que encontrou à frente, em troca de informações sobre o suposto affair – que nunca existiu. Acabou por ser levado pela GNR e pelos bombeiros e foi internado na Psiquiatria. E medicado. Nessa altura, era funcionário da câmara. Mas, quando voltou do internamento, deixou de ser capaz de trabalhar. «Aqueles remédios que me deram, deram-me cabo da cabeça e do corpo. Não me conseguia mexer ou pensar. Tive de os deixar de tomar, mas nunca mais voltei a ser o homem que era». 

O irmão, Vidául, também não trabalha e vai vivendo das gorjetas dos muitos turistas que praticamente todos os dias sobem à serra, curiosos e a pé, para visitarem o convento em ruínas, que se avista, imponente, do centro de Monchique. Trata-os com simpatia, pergunta-lhes de onde vêm e faz-lhes uma visita guiada com direito a explicações históricas. As mesmas que nos dá, num jeito um tanto ou quanto enigmático: «A lenda diz assim… o convento foi mandado construir por dois navegadores que se viram muito aflitos no mar. No meio de uma grande tempestade, prometeram que se chegassem a salvo a terra construiriam uma igreja no primeiro sítio conseguissem avistar do mar».

A verdade é que o Convento de Nossa Senhora do Desterro foi fundado, em 1631, por Pêro da Silva, que viria a ser Governador da Índia portuguesa e que daí trouxe uma pequena imagem de Nossa Senhora em marfim. Porém, os dois irmãos preferem a versão da lenda. E António, que é dado a metafísicas, acredita mesmo que as paredes do monumento nunca foram abaixo nem serão derrubadas ou destruídas por causa da promessa, que já tem quase 400 anos, dos dois navegadores. 

 Talvez também por artes mágicas, e não há muito tempo, a vida de António e de Vidaúl ganhou um empurrão dos bons: mudaram de senhorio. Agora é à câmara que os irmãos reportam e a autarquia decidiu deixar de lhes cobrar renda pela ocupação do convento. Nenhum dos dois sabe ao certo a razão da mudança. Tal como desconhecem por que razão o monumento, cujas paredes ameaçam ruir, não é recuperado. Mas, na vila de Monchique, os moradores adiantam todos a mesma explicação: o edifício tem «muitos donos», privados, que não conseguem chegar a um consenso com a câmara para que as obras avancem. E é assim que um edifício do século XVII, construído em estilo manuelino, está há décadas num estado de agonia lenta e à mercê do mato. 

Também António gostava que, «um dia», o convento se reerguesse das silvas. E até escreveu um cartaz que pendurou na fachada e que diz: «Dá-me a mão. Estou a cair». A frase parece simples, mas tem três camadas de leitura. Fala do estado de ruína do monumento. Fala da mãe, Solange, que morreu há pouco tempo e que, velhinha, lhe pedia que lhe desse a mão para não tropeçar. E é também uma mensagem de amor universal e à natureza. «Já pensou como seria se todos déssemos a mão uns aos outros e à natureza que nos criou?», pergunta António, antes de deixar um apelo. Conta que não se sente bem, «da cabeça e do corpo» e que precisa de ir ao médico. Mas tem medo que o voltem a internar se for ao hospital. «A única coisa que eu gostava era que me ajudassem e me levassem a um bom médico de cabeça, que seja especialista», pede.