Em defesa do Serviço Nacional de Saúde

Aceitemos este desafio como um serviço cívico a cumprir. O dr. António Arnaut, por muitos designado como o ‘pai do SNS’, é isso que espera de nós 

Falar do Serviço Nacional de Saúde é sempre um tema apetecível para qualquer jornal, colóquio ou debate televisivo. Não sei já quantos encontros e reuniões se organizaram para o abordar. Eu também já falei dele neste espaço, deixando no ar a interrogação – por muitos colocada -sobre se se justificará ou não a sua continuidade.

Quando se discute a necessidade de reestruturação do SNS, parece não haver ninguém que não esteja de acordo. Todos defendem uma reorganização completa da sua estrutura e do seu funcionamento. É consensual. Porém, pouco (para não dizer mesmo nada) se tem feito de grande visibilidade – e os problemas daí decorrentes vão-se arrastando no tempo. As soluções de fundo adiam-se sempre, à espera do momento ‘ideal’ que nunca chega a acontecer.

 

Não é fácil tomar medidas que tragam uma vida nova ao SNS, e desenganem-se aqueles que julgam ter a solução perfeita nas suas mãos. O problema é complexo, e a prova disso é que já passaram mais de trinta anos e as verdadeiras reformas estão quase todas por fazer. 

Vai-se ‘empurrando com a barriga’ com tímidas medidas pontuais e sem grande importância prática, à espera que o tempo passe – e acaba-se por voltar à velha teoria bem conhecida de todos nós: «Quem vier atrás que feche a porta».

Em minha opinião – já aqui o referi e não tenho problema algum em voltar a afirmá-lo -, o SNS deve continuar; mas para que tal aconteça é preciso haver uma completa reestruturação. 

 

Com a minha dupla experiência clínica e de gestão, vejo o serviço público de saúde assente em três pilares: na legislação, nos trabalhadores e nos utentes, que vão usufruir de todas as regalias que ele lhes concede. Como se diz em linguagem médica, a abordagem terá de ser multidisciplinar, querendo isto dizer que é preciso atuar em todas as áreas indicadas e conseguir uma união de todas as partes envolvidas. Comecemos pela legislação. É preciso criar uma legislação adequada ao momento presente, sem medo de ir contra interesses instalados ou direitos adquiridos. O que está em causa é dar as melhores condições de saúde à população, sabendo-se que isso pode custar votos…

Por exemplo, na Medicina Familiar, qual a razão para continuar a haver clínicos com listas de utentes exageradamente aumentadas? Isso significa fechar os olhos ao trabalho dos médicos de família – que, pelo excesso de utentes, são obrigados a dar uma resposta diferente relativamente à sua missão. É isso que se pretende? É esse o exemplo que se quer passar aos mais novos? E vamos continuar a conviver com o eterno problema dos portugueses sem médico de família? Conformamo-nos com a ideia de haver ‘portugueses de primeira’, inscritos em Unidade de Saúde Familiar (USF), com o seu médico assistente, e ‘portugueses de segunda’, relegados para Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), sem direito a ele?

 

Quanto ao segundo ponto – os trabalhadores -, é caso para perguntar: quando é que hospitais e centros de saúde deixam de se comportar como adversários e passam a falar todos a mesma linguagem, numa complementaridade de funções? É que, enquanto se mantiver o ‘jogo do empurra’, com os utentes a serem mandados de um lado para o outro, por ninguém querer assumir responsabilidades, não se vai a lado nenhum!

Por último, os utentes vão ter de perceber que não têm só direitos e que as unidades de saúde onde recorrem não são propriamente self-services onde podem ir abastecer-se quando e como melhor entenderem. Vão ter, pois, de cumprir regras, aceitar deveres e confiar nos seus médicos, que estão ali para os servir.

 Têm de acabar com os ‘pedidos’ provenientes do que ouviram e viram na televisão, nas internets e nos conselhos dos amigos. Não é por acaso que se diz que Portugal é ‘o país do medicamento’ – e um dos que mais dinheiro gasta em meios complementares de diagnóstico… Justificar-se-á?

 

É necessária uma mudança de mentalidades – difícil, sem dúvida, mas fundamental. E a comunicação social poderá ter um papel essencial no esclarecimento da população.

Se estas condições estiverem reunidas e entrarmos todos para o barco remando para o mesmo lado, acredito na mudança. Pode não ser já na minha geração, mas o importante é que se faça! Todos nós o merecemos! 

Aceitemos este desafio e façamos dele um serviço cívico a cumprir. O dr. António Arnaut de saudosa memória, por muitos designado como o ‘pai do Serviço Nacional de Saúde’, é isso que espera de nós.