Portugal, Espanha e a linha que nos une

Pensamos nela como um conceito etéreo, indistinto, mas é física, está lá – a linha de fronteira que separa Portugal e Espanha, pela qual tanto sangue foi derramado, já não faz sofrer ninguém. Hoje é até um traço de união: a opinião é dos militares portugueses que, todos os anos, juntamente com camaradas espanhóis, vão…

Longe vão os tempos em que a fronteira era sinónimo de «alvoroço» para os povos da raia e Governos de Portugal e Espanha. Os trabalhos de manutenção da linha que separa os dois países estão, desde o início, a cargo dos militares. E se hoje a tecnologia da georreferenciação não deixa qualquer margem para dúvidas, durante muito tempo manter os marcos de fronteira foi um trabalho moroso, feito com recurso a descrições que hoje lemos como pitorescas – lá iremos.

Antes, vale a pena percorrer os séculos de história dos limites feitos por homens. Neste caminho, não há melhores guias do que os militares que continuam, todos os anos, a sair do Centro de Informação Geoespacial do Exército (CIGeoE) para zelar pelos marcos que nos relembram de que lado estamos. Um trabalho que não foi descurado numa Europa onde os controlos fronteiriços deixaram de ter a presença de outrora. «Com esta questão do espaço Schengen há alguma tendência para se pensar numa diminuição das fronteiras. Essa diluição não existe, como é obvio, pelo menos aqui a nossa continua bem conservada e bem tratada», lembra logo em início de conversa o tenente-coronel Rui Teodoro, o oficial responsável por coordenar estes trabalhos.

 

Breve história da fronteira

Portugal é um dos países com as fronteiras mais antigas do mundo e a linha que divide o país e Espanha é a mais antiga da Europa, mas também aqui a história se conta a várias velocidades – e não começa com o Tratado de Alcanizes. Primeiro, chegou, em 1179, a Bula Papal Manifestis probatum do Papa Alexandre III, que reconhecia os esforços independentistas de D. Afonso Henriques, autoproclamado rei de Portugal após a Batalha de Ourique, em 1139. Definir o território passou a ser então o objetivo dos monarcas que lhe sucederam.

«A primeira referência que existe é a do Tratado de Badajoz, que foi assinado em 1267 entre Portugal e o reino de Leão e Castela, mas que apenas contemplava a delimitação territorial na região do Algarve», continua Rui Teodoro. Mas foi efetivamente o Tratado de Alcanizes, de 1297, que veio fixar (pelo menos, nos seus traços gerais) o mapa que hoje conhecemos. «O tratado de Alcanizes é que é o primeiro tratado que estabelece um limite territorial integral, para todo o país digamos assim».

A fronteira foi sendo marcada nesses anos principalmente com recurso a marcos naturais, como grandes rochas graníticas, no caso do norte do país. E até meados do século XIX foi-se vivendo assim. Em 1864 – mais de duzentos anos depois de a dinastia Filipina ter mantido os dois países unidos (1580-1640), umas décadas após as invasões francesas (1807-1814) e após a guerra civil decorrente da disputa entre D. Pedro e D. Miguel – iniciou-se um período de maior estabilidade e Portugal e Espanha assinaram por fim um tratado ‘mais à séria’, isto é, com regras específicas quer para a colocação dos marcos de fronteira quer para os trabalhos de manutenção necessários ao mesmo. E previram desde logo o passo número um desta questão diplomática: não se toca na fronteira sem estarem presentes membros dos dois países – um mandamento que permanece até hoje.

 O acordo – o chamado Tratado de Limites entre Portugal e Espanha – veio dar corpo a um processo iniciado em 1850, em que as autoridades dos dois países começaram por identificar «as situações onde existia litígio entre as populações para posterior resolução» e definir com rigor quais seriam os limites de cada um. Tarefa que terá obrigado a mais esforços nas zonas da raia – em Chaves, de tão entrelaçados entre si, os povos receberam a alcunha de «promíscuos». «Historicamente não tenho dados sobre quezílias. A única situação que penso que eventualmente possa ter gerado não digo problemas mas dúvidas poderá ter sido na região do Couto Misto, uma região de Portugal e da Galiza com umas características muito especiais em termos sociais e em termos de organização política. Se passarmos naquelas aldeias, em Cambedo ou o Soutelinho da Raia, ainda conseguimos ver provas da existência do Couto Misto: ainda estão lá os P e os E junto às portas significando que as pessoas optavam pela legislação portuguesa ou espanhola de acordo com aquilo que era a sua conveniência».

Acertos feitos, o acordo – que está hoje guardado no Ministério dos Negócios Estrangeiros – foi assinado no Palácio da Ajuda a 29 de setembro de 1864 e ratificado em 1866. «Esse tratado de limites apenas delimita entre o Minho e a confluência do rio Caia com o rio Guadiana na região de Elvas, Campo Maior, Badajoz», continua Rui Teodoro. E daí para baixo? «Digamos que isto foi em duas fases. A primeira foi esta, e depois só em 1927 é que se completou, através da assinatura de outro acordo, o troço da fronteira compreendido entre a foz do rio Cuncos e a foz do Guadiana em Vila Real de Santo António», explica o tenente-coronel. Atualmente, «são estes dois tratados que regem e que orientam todos os trabalhos que são executados no âmbito da fronteira».

No total, a fronteira terrestre contabiliza cerca de 466 quilómetros e a fluvial 784.

 

Um tratado descritivo

Foram estes acordos, começando pelo de 1864, que nortearam a colocação dos marcos de fronteira. Há marcos principais, auxiliares e de referência – nessa primeira fase, foram colocados os principais, construídos em mármore ou granito e que medem 1,20 de altura. Uma tarefa difícil, principalmente nos primeiros tempos. «Não nos podemos esquecer que em 1864 ou 1900, quando se fizeram estes trabalhos, não existiam veículos pesados ou comboios para fazer deslocar marcos de granito de Chaves para Barrancos, então usava-se o que havia», realça o militar, recordando também as indicações muitas vezes descritivas. «No tratado está exatamente descrito como é que nós podemos ir de um marco para o seguinte, ou seja do marco A para o marco B. Também neste caso houve aqui dois passos: numa primeira fase a localização dos marcos era apenas descritiva, e há descrições deliciosas. Por exemplo: ‘segue pelo barranco dos velhos, quando encontrares a confluência da linha de água, é aí’. Depois começaram a fazer-se medições angulares – numa segunda fase já se falava em azimutes».

Os marcos principais foram instalados até 1906, ano em que foi assinada a Ata Geral de Delimitação entre Portugal e Espanha, um documento que ditou que os ditos fossem entregues aos municípios. «O Ministério dos Negócios Estrangeiros, através da Comissão Internacional de Limites e Bacias Hidrográficas, recebe dos municípios todos os anos atas assinadas pelos presidentes das câmaras ou por delegação deles nalgum vereador de Portugal e pelos ayuntamientos de Espanha onde são descritas as condições em que os marcos se encontram. Todos os anos (os marcos principais) são verificados e está descrito na ata que tem que ser em agosto». descreve. «Há dois tipos de marcos principais: os naturais, que vêm desde o tratado de Alcanizes e que foram aproveitados [há 66 deste tipo], e os que foram construídos [ao todo, são 897]. No norte do país muitos deles têm essas marcas mais antigas, como o marco 231, um bloco natural de granito, na região de Chaves. A configuração dos restantes marcos é muito parecida à exceção dos marcos naturais: é um bloco de granito que normalmente tem um número e depois tem o P e o E (Portugal e Espanha) conforme está orientado para cada um dos países», continua Rui Teodoro. E até há algumas destas divisórias que receberam nomes, como é o caso do chamado ‘marco dos três reinos’ – o marco 254.

«Foi só depois de serem colocado estes marcos que houve então o adensamento com os marcos auxiliares e de referência que durou o século XX», intervém o major José Costa que, desde 2006, é um dos homens responsáveis por ‘cuidar’ da fronteira no terreno. «Se há alguém que conhece as fronteiras deste país é o major Costa», intervém o coronel Hélder Perdigão, diretor do CIGeoE.

Uma fama justa: é que o major Costa sabe, praticamente de cor, os números dos marcos que pontuam a fronteira respetiva localização.

E… são 5243.

 

A fronteira hoje

As atuais tecnologias de georreferenciação vieram marcar uma outra etapa nesta história. Se antes eram precisas equipas maiores e mais tempo para percorrer o trajeto, hoje a localização GPS de cada marco foi ‘ratificada’ por ambos os países, o que tornou tudo mais fácil.

Ainda assim, é necessário continuar com os trabalhos de manutenção. Há dois anos, a linha de fronteira foi dividida em seis segmentos e as equipas de militares de ambos os países – em Espanha, esta tarefa é tutelada pelo Centro Geográfico do Exército de Terra Espanhol (CeGET) – percorrem um troço a cada ano. «Faz-se um troço, no ano seguinte o outro e assim por diante até se percorrer a fronteira. Passados seis anos voltamos ao início. Este trabalho desenrola-se anualmente em duas fases: a primeira fase só serve para verificação do estado de conservação do marco, se está tombado, desaparecido, se tem vegetação a tapá-lo, o estado de conservação da gravação na pedra. Por exemplo se estiver caído e for só colocar em pé bastam ferramentas rudimentares», descreve José Costa. «Mas se houver marcos principais que estejam caídos ou que necessitem de algo especial, como a ata de 1906 os atribuiu aos municípios, pedimos apoio às câmaras, até pelo facto de eles serem enormes e serem precisas retroescavadoras e máquinas de arrasto. Há vários exemplos de ajudas que nos foram dadas pelas câmaras, Barrancos várias vezes, Serpa, Bragança, ayuntamientos do lado espanhol também quando o acesso é melhor por esse lado», exemplifica o major. Este ano, por exemplo, a abertura de uma estrada em Calvos de Randín (Galiza) tapou completamente dois dos marcos principais. No dia em que o b,i. visitou o CIGeoE, uma equipa tinha-se deslocado ao local para verificar se, consoante o solicitado ao ayuntamiento espanhol, os marcos tinham sido colocados exatamente no local indicado pelos militares. «Já me relataram que sim, que está feito», atalha.

Os casos de desaparecimentos de marcos são mais frequentes do que se possa imaginar: a abertura de estradas e de corta-fogos ou a passagem de máquinas agrícolas contam-se entre os motivos mais frequentes. «No ano passado foram 16. Cinco foram seguidos na zona de Campo Maior, num terreno agrícola», conta José Costa.

Mas também há histórias caricatas. Em 2011, a equipa deparou-se com o desaparecimento de um marco principal em Cidade Rodrigo. «Falando com os portugueses ninguém sabia de nada, fomos falar com o alcaide espanhol e ele, a muito custo, disse-nos que o pessoal que tinha andado a arranjar a estrada o tinha levado, mas que não sabia para onde. Depois veio lá um senhor ter connosco e lá nos disse que tinham levado o marco para um sítio: fomos lá, a 40 km, e lá estava o marco a servir de bibelot no meio de um relvado porque ficava ali bonito».

 

Um bichinho que fica

Por ano, o major Costa passa cerca de um mês e meio entre maio e junho a percorrer o sexto da fronteira que será supervisionado. E, entretanto, já se tornou amigo dos colegas espanhóis com quem partilha esta tarefa. «Desde 2008 que é sempre o mesmo camarada chefe espanhol, o praça também é o mesmo desde 2004. Já fui jantar a casa dele a Madrid e tudo», conta.

Afinal, passam por ano muitas horas juntos. Em alguns locais, como o Gerês, só conseguem ir a pé, por isso vão de mochila às costas de marco em marco muitas vezes a «falar da vida». Este ano, em que a campanha foi exatamente nessa zona, tiveram ajuda de um helicóptero. Depois tiram fotografias a todos os marcos da fronteira e preenchem um relatório sobre o estado do mesmo – os dados ficam numa base de dados conjunta entre os dois países.

Já em setembro, resolvem os problemas que não conseguiram solucionar em maio e junho. «Depois de a campanha estar concluída, faz-se um relatório que é entregue ao nosso Tenente Coronel adjunto para Comissão Internacional de Limites [ou seja, Rui Teodoro] e depois anualmente há uma reunião entre o CIGeoE e o CeGET, umas vezes em Lisboa, outras em Madrid, em que se aprovam os trabalhos realizados no ano anterior com o relatório e os trabalhos para efetuar em maio desse ano».

Dada esta ser uma questão diplomática, o resultado da reunião terá ainda que chegar ao Embaixador dos Limites – o português e o espanhol. Um papel que por cá é desempenhado pelo embaixador Mário Godinho de Matos.

Tanto o tenente-coronel Rui Teodoro como o major José Costa falam com paixão desta que é a sua responsabilidade e admitem que este trabalho, de que se orgulham, é um vício. «Vim de lá na semana passada. Fui com a minha família ao Gerês e fui visitar os marcos onde tinha estado em maio», conta o major Costa entre risos.

O tenente coronel Rui Teodoro relata uma experiência semelhante. «É impressionante, mas sim, o bichinho está cá. Também cheguei agora de férias, estive la em baixo no Algarve e houve ali um dia em que o tempo estava meio arrevezado e fui a Alcoutim, onde a fronteira é o Guadiana mas no castelo está uma placa relativa à ata da fronteira. Também já fui ao ‘marco dos três reinos’, na zona de Chaves, com os meus filhos».

 

E Olivença?

Não é possível falar destas questões de fronteira sem mencionar o caso de Olivença. «Efetivamente, não há nenhum tratado assinado entre Portugal e Espanha que defina a fronteira na região de Olivença. Há estes dois tratados de que falámos, e é só», explica o Rui Teodoro.

O que fazem, então, os militares quando passam neste troço? «Não fazemos trabalhos de campo nessa região, numa distância de cerca de 60 e tal quilómetros. A única passagem que há é uma ponte, e essa ponte não tem marco», lembra José Costa.

Por isso, ali não há, simplesmente, trabalhos. «Saltamos num ponto da parte de cima para a parte de baixo. Normalmente almoçamos em Olivença, sempre no mesmo restaurante. E não se passa nada», diz.

 O almoço da praxe entre militares portugueses e espanhóis em Olivença talvez seja uma boa síntese desta que é, descrevem-nos, uma relação exemplar. «Neste âmbito as relações luso-espanholas vão fantásticas e recomendam-se. É um exemplo de cooperação internacional bem-sucedida, tranquila, competente e que representa bem os dois países. E os nossos povos da raia podem estar sossegados que a fronteira está bem entregue», diz Rui Teodoro.

Recentemente, o major José Costa escreveu um artigo sobre as campanhas de verificação e manutenção dos marcos de fronteira, em vias de ser publicado. E no documento, a que o b,i. teve acesso, uma frase saltava à vista: «A linha de fronteira não separa os dois países, une-os». O convívio destes militares é um belo retrato dessa visão.