A data da fundação dos clubes é mais um pretexto para as polémicas

As celebrações do 125.º aniversário do FC Porto espoletaram novamente a discussão: afinal, os dragões viram a luz do dia pela primeira vez em 1893 ou em 1906? E o Benfica também enfrenta sempre a eterna dúvida – aqui, só o Sporting escapa incólume.

Está longe de ser uma discussão recente, mas ganha importância a cada celebração de uma data ou efeméride histórica. Como aconteceu no último dia 28 de setembro, quando o FC Porto festejou o 125.º aniversário da ‘data da fundação’. Um festejo que devia ter começado em 1893, como é compreensível, mas que na verdade só começou a ter lugar… em 1988.

Confuso? Provavelmente, sim. E por isso segue agora a explicação. Até há 30 anos, os portistas tinham adotado como data da fundação 2 de agosto de 1906, dia em que José Monteiro da Costa fundou o Futebol Clube do Porto nos moldes em que hoje o conhecemos. A 26 de fevereiro de 1988, porém, os associados portistas acabaram por votar favoravelmente a proposta de passar a ter como data de fundação 28 de setembro de 1893, dia em que foi noticiada, no jornal lisboeta Diario Illustrado, a criação de um clube denominado Foot-ball Club do Porto.

O futebol chegou à cidade do Porto no final do século XIX, numa altura em que a influência da aristocracia inglesa em Portugal, e em particular na cidade nortenha, era muito acentuada. O desporto que hoje conhecemos como rei dava então os primeiros passos, sendo no entanto visto ainda como uma atividade marcadamente de influência inglesa e, portanto, ainda algo desvalorizada – estava ainda bem presente o humilhante ultimato inglês de 1890 em relação às pretensões portuguesas em África.

Nas várias viagens de negócios a Inglaterra onde acompanhava o pai, comerciante de vinho do Porto, António Nicolau d’Almeida acabou por se apaixonar pelo futebol, na altura o jogo da moda no país dos três leões. Aos 20 anos, e já depois de fundar, juntamente com vários outros rapazes do mesmo meio, o Clube Excursionista, depois renomeado Clube de Velocipedistas do Porto e, mais tarde, Real Velo Clube do Porto, o jovem amante de desporto (além das corridas de bicicleta praticava o jogo do pau, remo e natação) decidiu criar o Foot-ball Club do Porto. «Fundou-se, no Porto, um clube denominado Foot Ball Clube do Porto, o qual vem preencher a falta que havia no norte do país de uma associação para os jogadores daquela especialidade. No segundo domingo de Outubro inaugura-se o clube oficialmente, com um grande match entre os seus sócios, no hipódromo de Matosinhos. Ouvimos dizer que serão convidados alguns clubmen de Lisboa. Que o Foot Ball Club do Porto apure um grupo rijo de jogadores e que venha medir-se ao campo com os jogadores do Club Lisbonense, do Real Ginásio Club, do grupo de Carcavellos ou de Braço de Prata, para animar os desafios de football como já o são as corridas de cicles. Eis o que desejamos», podia ler-se no Diario Illustrado, periódico de Lisboa, a 28 de setembro de 1893.

E tudo o casamento levou

O referido match teve, de facto, lugar no segundo domingo de outubro, contando com a presença de 22 sócios do clube, e a 25 desse mês António Nicolau d’Almeida, na assumida qualidade de presidente do Foot-Ball Club do Porto, enviou realmente ao presidente do Football Club Lisbonense, Guilherme Pinto Basto, uma carta a desafiá-lo para um jogo entre as duas equipas. Agradecendo o convite, o líder do emblema lisboeta explicou que nessa data seria impossível comparecer ao encontro, tendo o mesmo ficado reagendado para 2 de março do ano seguinte.

Pinto Basto conseguiria, de resto, convencer o presidente, D. Carlos, a patrocinar a partida, que seria designada Taça D. Carlos I ou Cup d’El Rey.

E é aqui que o mito começa a colidir com os factos: o encontro realizou-se, mas não foi um FC Porto vs Club Lisbonense: foi, na verdade, um encontro entre jogadores das duas cidades. Por Lisboa atuaram jogadores do Club Lisbonense, do Carcavellos Club, do Lisbon Cricket Club e do Real Ginásio Club; pelo Porto, jogadores do Foot-ball Club do Porto, mas também do Oporto Cricket Club, a equipa que jogava no recinto onde decorreu o jogo (Campo Alegre). A partida terminou com um triunfo dos lisboetas por… 1+1: é que a corte atrasou-se e, quando se instalou no camarote improvisado, Lisboa já vencia por 1-0. Foi depois decidido jogar-se mais 30 minutos, e aí aconteceu mais um golo lisboeta, com a Taça a seguir para a capital.

A partir de 1894, deixa de haver notícias ou quaisquer vestígios de atividade por parte do Foot-ball Club do Porto. Alguns estudiosos da matéria acreditam que tudo se deveu ao… casamento de António Nicolau d’Almeida: Hilda Rumsey, a sua esposa, considerava o futebol uma modalidade demasiado violenta e tê-lo-á convencido a afastar-se do jogo, e por conseguinte do clube, que entrou aí num período de letargia e completa inatividade. Doze anos depois, em 1906, outro português que voltava de Inglaterra fascinado com este desporto, de seu nome José Monteiro da Costa, tomaria a decisão de criar uma equipa de futebol na coletividade de que fazia parte, o Grupo do Destino. Há, todavia, relatos de que o próprio Monteiro da Costa terá conversado com Nicolau d’Almeida e, ao saber da existência do projeto que este iniciara em 1893, decide extinguir o Destino e refundar o FC Porto, mantendo o nome e o azul-e-branco (alusivo à monarquia) como as cores do ‘novo’ clube. A nova fundação ocorre no dia 2 de agosto de 1906, data celebrada até 26 de fevereiro de 1988 quando, em Assembleia-Geral, o sócio Custódio Castro, encarregado da comissão nomeada para apreciar a questão da fundação portista, decidiu que «o FC Porto foi fundado em 1906 embora a semente tenha sido lançada em 1893». Em seguida, Rui Guedes, autor da Fotobiografia do FC Porto (publicada em 1987), apresentou dois recortes de jornais da década de 90 do século XIX que, no seu entender, comprovavam que o FC Porto fundado em 1906 era, na verdade, o mesmo clube que o Foot-ball Club do Porto fundado em 1893, baseando-se na tal relação de amizade entre Nicolau d’Almeida e Monteiro da Costa e também no facto de muitos dos jogadores que representaram o FC Porto nos jogos realizados ainda no final do século XIX, como Mackechnie, Roberto Rumsey, Wright e Ernesto Sá, terem mais tarde integrado igualmente o clube refundado por José Monteiro da Costa. O facto de não haver estatutos na primeira fundação, nem estar documentada a relação entre os dois clubes, acabou por ser desvalorizado pelos sócios e adeptos portistas, e assim acontece até aos dias de hoje.

Benfica e Sporting rivais até nas origens

No livro História do Futebol Português, editado em 2010, Ricardo Serrado contesta a legitimidade desta adoção, por parte do atual FC Porto, da data da fundação do primeiro Foot-ball Club do Porto. «A ideia de 1893 não resulta de um trabalho historiográfico, resulta de um trabalho de uma série de pessoas que são adeptos do FC Porto e que na minha opinião carece de validade. Existiu de facto um Futebol Clube do Porto em 1893, fundado aparentemente em Setembro. Existem referências nos jornais a esse clube, fundado por António Nicolau de Almeida, e que disputou a Taça do Rei de 1894, contra o Lisbonense. Este FC Porto durou cerca de um ano. Depois, em 1906, o FC Porto é fundado por José Monteiro da Costa, que tinha ido a Inglaterra e veio entusiasmado com o futebol. No livro da história do FC Porto de 1933 há um fundador de 1906, que é o António Martins, que diz: ‘O desconhecimento completo por parte dos sócios de tal jogo e a falta de dinheiro foram entraves. Como se sabe, o futebol no Porto era quase desconhecido.’ Ou seja, na fundação do FC Porto de 1906 não há nenhuma referência a um clube anterior. Estamos a falar de dois clubes diferentes com o mesmo nome, embora eu admita estar errado se surgirem provas em contrário. Não encontrei nenhuma e fiz um trabalho profundo sobre esta questão. Nos próprios estatutos dos FC Porto, desde os primeiros estatutos até bem recentemente, assumia-se que o clube tinha sido fundado em 1906. Dizer que foi fundado em 1893 é uma revisão histórica forçada e sem fundamento científico», explicava o historiador em entrevista ao Público em 2013.

Dois anos depois, Ricardo Serrado publicou novo livro – Mitos do Futebol Português – onde incidia sobre a temática. «Em 1953 ou 1954 descobriu-se que havia sido fundada uma coletividade chamada Futebol Clube do Porto em 1893. Não há rigorosamente nada – nenhuma prova, nenhum documento – que comprove que esse é o mesmo Futebol Clube do Porto nascido em 1906. Pelo contrário, o que existem é uma série de fundadores de 1906 que mais tarde vêm a público dizer que o FC Porto de 1906 não tem nada a ver com o FC Porto de 1893», refere o autor, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Ao contrário do exemplo portista, Ricardo Serrado considera correta a data adotada pelo Benfica para a sua fundação (28 de fevereiro de 1904), que na verdade se refere à fundação do Grupo Sport Lisboa, clube que alinhava de vermelho e branco e tinha no seu emblema uma águia e a frase E Pluribus Unum (latim para ‘De muitos, um’). Esta coletividade, afetada por problemas financeiros – que causariam a ‘deserção’ de oito dos seus jogadores para o abastado Sporting Clube de Portugal –, viria a unir-se a 4 de setembro de 1908 com o Grupo Sport Benfica, fundado em julho de 1906 e dois anos depois renomeado Sport Clube de Benfica, e aí sim nasceria o Sport Lisboa e Benfica. «Tratando-se de uma fusão, parece-me correto considerar 1904 a data da fundação, porque alguns elementos como o equipamento, a equipa de futebol e os sócios vêm de 1904. Há uma ligação entre o Sport Lisboa e o Sport Lisboa e Benfica», explica o mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

No caso do Sporting, apenas uma discórdia ‘menor’ relativamente ao dia a celebrar. A 8 de maio de 1906, na sequência de conflitos entre os integrantes do Campo Grande Football Clube, José de Alvalade decidiu fundar um novo clube, ainda sem nome, sendo eleito como presidente e sócio protetor o seu avô, o Visconde de Alvalade. A 26 de maio é atribuído o nome de Campo Grande Sporting Clube, sendo alterado no dia 1 de julho para Sporting Clube de Portugal. Até 1919, o Sporting festejou o seu aniversário no dia 8 de maio (ou seja, festejava a criação de um clube sem nome); a partir de 1920, em Assembleia-Geral decidiu-se alterar a data de fundação de 8 de maio para 1 de julho de 1906, o dia da alteração de nome.

Por aqui se explica também alguma da polémica entre sportinguistas e benfiquistas no que à celebração da data de fundação diz respeito. Do ponto de vista dos leões, que festejam o dia em que o clube adotou o nome por que ainda hoje é conhecido, a data da comemoração do aniversário do Benfica deveria ser a da fusão entre Sport Lisboa e Sport Clube de Benfica, a 4 de setembro de 1908, onde nasceu de facto o Sport Lisboa e Benfica, e não o 28 de fevereiro de 1904. Isto faria do Sporting o mais antigo dos dois clubes – e neste caso também em relação ao FC Porto, pois os sportinguistas contestam igualmente a decisão dos portistas de adotar o 28 de setembro de 1893 como data da fundação, considerando que o clube como o conhecemos hoje só nasceu de facto a 2 de agosto de 1906.

Refira-se, em jeito de conclusão, que o mais antigo clube entre os vencedores da I Liga (não entrando na discussão do Campeonato de Portugal/Taça de Portugal) é… o Boavista, nascido a 1903 pela mão de dois irmãos ingleses, Harry e Dick Lowe – a designação atual, todavia, data ‘apenas’ de 1910: até aí, o clube denominava-se The Boavista Footballers.