‘No próximo ano você me fala o que arrumou com esse Bolsonaro’

Uma semana depois da eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil continua dividido. E com ele muitas casas, como a de António Carlos, motorista aposentado que votou no capitão, apesar de ter mais dúvidas do que certezas sobre onde o país vai parar.

«Você vai ver se no final do ano o Lula já não está solto. Se o Lula estivesse solto, ele ganhava. E, olha, o Lula foi um bom Presidente. O que matou o Lula foi as amizades. Tem que saber quem você vai colocar e o Lula só arrumou ladrão na equipe dele». As palavras são de António Carlos, aposentado da função pública. «Meia três de idade», que é como o brasileiro diz 63, «42 de serviço». Serviço de quê? «Motorista de político numa cidadezinha aqui perto de São Paulo». E Lula teria ganho e foi um bom Presidente mas não foi no candidato que o substituiu que António votou. Como não votaria Lula ainda assim. «Se ele estivesse solto, não teria votado, mas pelo partido. Se Lula fosse candidato por outro partido, eu votaria. Mas eu nunca votei no PT. A minha mulher é PT doente, ela votou! Votou no Haddad». A eleição quase deu guerra lá em casa.

E continuará dando sabe-se lá por mais quanto tempo. «Com 40 anos de casado, não quero brigar com ela por causa de uma eleição. Ela dizia ‘vou votar, vou votar, é 13, é 13, é 13’, eu vou fazer o quê? Arrancar os fios da máquina dela para ela não votar? Agora está jogando na minha cara: ‘Vocês vão ver, daqui a um ano vão estar arrependidos’, falou para mim ainda hoje na hora do almoço. ‘Você vai ver, em outubro do próximo ano você me fala o que você arrumou com esse Bolsonaro aí.’ Eu falei ‘está bom, melhor estar arrependido do que estar morto já’».

Bolsonaro não foi eleito há uma semana ainda e nas redes sociais já foi criada a hashtag #bolsominionsarrependidos. Da mesma forma que o candidato do PSL se refere aos petistas como «petralhas», «petralhada», Bolsominions é como os opositores a Jair Bolsonaro se referem aos seus apoiantes. Agora, recolhem-se posts daqueles que votaram em Bolsonaro e que contestam algumas das medidas já anunciadas numa nova página de Instagram: Bolsominions Arrependidos. O suficiente para a risada de uns quantos dos mais de 45 milhões que votaram por um resultado diferente do que deu a escolha da maioria. Mas coisa pouca.

A verdade é que, de tudo o que ainda sem ter tomado posse Bolsonaro já anunciou na primeira semana, a notícia com maior potencial de polémica – a indicação para ministro da Justiça de Sérgio Moro, o juiz que em julho do ano passado condenou Lula a nove anos e seis meses de prisão (ver pág. 52) – foi a que menos controvérsia gerou entre o eleitorado que elegeu Bolsonaro. Titulava ainda ontem a Folha de S. Paulo que, com a escolha do juiz de Curitiba para ministro, Bolsonaro abalou a relação com o congresso, mas lucrou entre os eleitores.

Os mercados e os investidores estrangeiros podem até ter reagido bem à eleição de Jair Bolsonaro. Mas os mercados e os investidores não são as ruas, onde o primeiro grande protesto contra o Presidente eleito, marcado logo para dois dias depois das eleições, juntou em São Paulo dezenas de milhares de pessoas e terminou em confrontos com a Polícia. Nem as universidades, onde a discussão política tem ido longe demais. Entre protestos em campus, suspensões de alunos, tanto a Universidade de São Paulo como a Mackenzie se viram obrigadas a emitir comunicados para esclarecer episódios que envolveram alguns dos seus alunos. No caso da primeira, um grupo de estudantes divulgou uma fotografia tirada numa sala de aula em que um deles segurava uma arma, outro ostentava o nome de Trump, e frases como «Está com medo, petista safada?» e «A nova era está chegando».

 

‘Já tirei o dinheiro do banco, já guardei tudo’

O que interessa mesmo a António Carlos não é falar sobre Bolsonaro, mas sobre propina (suborno) e corrupção. Sobre Alckmin, por exemplo, que será agora substituído por João Doria como governador do estado de São Paulo. «Ou alguém arruma algum cargo para ele ou vai ter que voltar para a profissão, que ele é médico. Mas já está rico, já roubou muito. Já fui buscar dinheiro dele lá dentro do palácio, já. Carro oficial, chapa preta e tudo. Criaram o Bolsa Família, o bolsa um monte de coisa, e agora o Bolsodoria», ironiza sobre a hashtag com que Doria, do PSDB, fez a campanha em que, de prefeito que derrotou Haddad na cidade, virou governador de São Paulo. «É #bolsodoria, Bolsonaro e Doria».

É o que conta, mas por contar. Já não lhe interessa. O que António Carlos quer mesmo é deixar São Paulo. «Já ouviu falar em Peruíbe?». Fica no litoral Sul Paulista. «Menina, se eu escrevesse um livro dava uma história brava, viu? Mas eu vou é embora para lá, para esquecer isso». É que o motorista aposentado pode pode até ter votado Bolsonaro, mas não quer ver o que virá aí. Em Peruíbe poderá trabalhar de motorista de Uber, para ir juntando mais algum à pensão em que, com a reforma da previdência defendida por Paulo Guedes, o economista ao lado de Jair Bolsonaro, reza para que não seja tocada. «Trabalhei 42 anos, então acho que no meu ninguém vai mexer mais. É um direito adquirido, mas está meio complicado porque vai ter reforma da previdência e muita gente vai sofrer. Muita gente».

A discussão que reproduziu sobre o que se passa na sua casa, ele com a mulher argumentando sobre o que o Brasil arrumou ou não com a eleição do último domingo, é a discussão geral num Brasil que depois de uma campanha em que o debate político se polarizou terá dificuldade em voltar a unir-se. Pelo menos enquanto cada um continuar a defender o seu candidato. «Está muito dividido, sim. Mas na área em que eu trabalhava, carregando políticos para cima e para baixo, é muito complicado o negócio, viu? É muita mordomia, muita coisa errada, muita propina que rola. Quando um te dá um real, ele toma dez de você».

E acredita que a partir de 1 de janeiro, com a tomada de posse de Bolsonaro, vai deixar de rolar? «Vamos ver. Ele falou que não ia aceitar esse tipo de coisa, né?». Também Lula, ao ser eleito, prometeu acabar com a corrupção. «É. Vamos ver agora o que vai ser. Já tirei o dinheiro do banco, já guardei tudo. Ninguém está com dinheiro em banco, todo o mundo sacou o que tinha guardado. Sabe lá se como o Plano Collor não tem também um Plano Bolsonaro». António refere-se ao congelamento de 80% de todos os depósitos overnight das contas correntes ou das cadernetas de poupança que excedessem o valor de 50 mil cruzados novos com que Collor acordou os brasileiros logo um dia depois da sua posse, em 1990, para fazer face à inflação descontrolada que afetava a economia brasileira. «Não lembra o que aconteceu quando o Collor entrou? Congelou as contas e desvalorizou muito o dinheiro. Foi complicado. Teve gente que tinha muito dinheiro que endoidou, que morreu do coração. E olhe agora a Venezuela também. A sorte da gente é que essa terra é abençoada».