Exército. Príncipes da cartografia

Produzir uma carta geográfica é um trabalho moroso e difícil. Entre rios e lagoas, picos e depressões, há 86 anos que os militares do Exército vão apontando os caminhos.

Um mapa com ar amarelecido tem quê de mágico. Talvez seja o cheiro que nos lembra História, a do mundo ou a de casa dos avós. Talvez seja só a lembrança de caminhos já trilhados, ou a esperança das viagens que aí vêm. A essência de um mapa – ou de uma carta geográfica – vai muito para lá das do conjunto de linhas, números e escalas que os pintam, mas chegar até esta formulação que nos é entregue pronta a ser descortinada pelo olhar e pelo senso comum é um processo laborioso e demorado.

Desde os primórdios que, em Portugal, foram os militares a dar corpo em papel às linhas da geografia, já lá vão 86 anos – na verdade, são bem mais do que estas quase nove décadas. Lá iremos. Comecemos com os 86 anos, data exata da formação dos Serviços Cartográficos do Exército – e que se completaram há precisamente uma semana.

Os antigos serviços cresceram em valências, como por exemplo a responsabilidade pela manutenção da fronteira do país, e mudaram de nomenclatura – Centro de Informação Geospacial do Exército (CIGeoE). Nos dias de hoje são visitados regularmente por alunos dos cursos de engenharia geográfica e geoespacial, cursos das áreas da topografia ou da geografia.

À boleia da efeméride, o SOL foi conhecer o CIGeoE, perceber como funciona a produção cartográfica e, muito mais do que a ideia de mapas amarelecidos, voltou de lá com a bagagem cheia de uma instituição virada para o futuro. Antes, porém, comecemos com uma breve incursão a um passado que se confunde com a história do país.

 

Um longo caminho

O nome do brigadeiro José Maria das Neves Costa (1774-1841), que concluiu a sua formação na Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho em 1796, é indissociável da história da cartografia. Os primeiros levantamentos de fôlego de Neves Costa começaram por ser feitos no Alentejo, em 1803, e depois em Lisboa, em 1808, carta topográfica que lhe levou três meses e pela qual ficou conhecida. Além dos levantamentos, estudou a representação das formas de relevo e discutiu temas como o valor atribuído à léguas. Até à sua morte, o cartógrafo continuou a defender que era necessário não só pormenorizar a carta de Lisboa já feita como prolongá-la até Peniche e Santarém – tudo trabalhos essenciais, dado que falamos do período das invasões franceses.

Durante o século XIX, mantém-se um certo panorama de desorganização nesta matéria, em que a ‘Carta Topográfica Militar dos Terrenos da Península de Setúbal’, realizada entre 1813 e 1816 por ordem de Beresford – trabalho que, entre outros oficiais, também conta com a pena de Neves da Costa – se apresenta como uma «exemplar» exceção.

Só em 1911 é criada a Secção de Cartografia e Militar do Estado-Maior do Exército, que seria suprimida em 1929. Finalmente, a 24 de novembro de 1932, nascem os Serviços Cartográficos do Exército, que a partir de 1944 são instalados na Estrada de Benfica, e que a partir de 1959 passam a designar-se de Serviço Cartográfico do Exército. É sob esta nomenclatura que se mudam para a rua da Escola Politécnica e, em 1975, são novamente relocalizados para a morada atual, um edifício na avenida Dr. Alfredo Bensaúde, nos Olivais, ao lado do laboratório militar. Se a casa não andaria mais às costas, o nome ainda não estava definido: em 1993 o centro passa a designar-se por Instituto Geográfico do Exército e só em 2015 ganha a atual nomenclatura.

Hoje, além dos mega-arquivos que guardam todas as cartas geográficas e outras reservas importantes, o edifício tem um museu, alberga o único observatório da região de Lisboa que se encontra aberto ao público, uma biblioteca e ainda uma loja onde qualquer cidadão se pode dirigir para pedir fotografias aéreas de uma determinada área do país, e até de Cabo Verde, Guiné-Bissau, de Angola e de Moçambique, cujo território também foi fotografado pela instituição na década de 60.

 

A trabalhar em três dimensões desde 1937

Há efetivamente cada vez mais pessoas a procurar o CIGeoE para adquirir estas fotografias. «Por exemplo, os estrangeiros que vão morar para o Algarve procuram-nos muito», conta o coronel Hélder Perdigão, diretor do centro, enquanto nos guia pelos corredores.

Uma procura que o major Mira explica rapidamente: «Há um decreto de lei que obriga a que todas as construções anteriores a 1953 não necessitam de licença de habitação. Como temos voos de 1937, de 1947 e depois outro de 58, temos muita procura dessas fotografia aéreas porque são prova legal, podem ser apresentadas nos tribunais e nas câmaras municipais para efeitos de legalização de habitação». Assim, na loja ou no site, as pessoas consultam o catálogo de voos disponíveis e escolhem a área em questão. «É o Google Maps analógico», brinca o major Mira. «Com uma vantagem: isto é fotografia aérea pura e dura, não houve aqui adulteração».

Estes voos incluíram-se na, por assim dizer, grande primeira leva dos trabalhos dos serviços cartográficos. «Entre 1934 e 1955, foi elaborada a primeira cobertura integral do território continental, num total de 639 folhas», continua Hélder Perdigão, referindo-se à chamada ‘Carta Topográfica Militar de Portugal 1:25 000’. «Esta foi uma realização única, não só pela dimensão do projeto e pelo curtíssimo prazo da sua execução, como pelo prestígio que rapidamente alcançou e que a transformou na carta base do país, isto é, na carta de maior escala a representar uniformemente todo o território nacional».

E aqui há que começar trocar a informação por miúdos. O que é, afinal, uma folha? E como passamos dos voos aéreos para a carta em si?

Nessa primeira incursão, os voos eram feitos pela Força Aérea que «chegou a ter uma esquadra específica para fazer fotografia aérea que ainda hoje está desativada». «Tinham um avião c-212 Aviocar, que foi abatido ao serviço das Forças Armadas Portuguesas e foi substituído pelo c295, que, apesar de ter lá um buraco, não está adaptado para a câmara métrica», continua o major Mira.

Estes rolos fotográficos, já com tantas décadas, continuam guardados numa câmara específica, com temperaturas muito baixas, que o SOL também visitou.

Tiravam-se então as fotografias que, já no centro, eram trabalhadas pelos operadores, sendo esta, portanto, a primeira etapa do processo de produção de cartografia. «Começa tudo com a fotografia, transformada depois em formato de três dimensões, que mais tarde é editado e passa a ser a carta», resume. Cada folha é referente a uma área de 160 km2, daí as mais de 600 folhas que mostram o continente e cerca de 60 para as ilhas. O_processo desde que chega a fotografia até à folha resultante demora cerca de nove meses. «Isto aqui é plano, mas se olharmos temos as curvas de nível», continua o major enquanto nos mostra uma folha da zona de Abrantes. «Isso é tudo adquirido tridimensionalmente. O 3D que está tanto na moda nós trabalhamo-lo desde 1937. Mas para termos o 3D não podemos ter só uma fotografia, têm que ser pelo duas que mostrem um ângulo diferente do chão – o chamado par estereoscópico».

Hoje, os voos são contratados consoante a necessidade de atualização de determinadas zonas ou quando há pedidos específicos. «Num ano conseguimos fazer cerca de 30 folhas», conta o major Mira.

E na era Google Maps faz sentido este trabalho? «Faz todo o sentido porque a fotografia aérea é um meio de prova e uma evidência de como o terreno está no momento em que é adquirida. Qualquer pessoa hoje pode ir à internet e ver qualquer parte do mundo, mas com que resolução? Com que veracidade?».

Com as fotografias aéreas nas mãos, passemos então à parte de as analisar, ou seja, à secção de fotogrametria, onde é adquirida toda a informação informação a partir das fotografias aéreas. «Cada ponto no solo tem que ter pelo menos duas fotografias para dar a sensação de estereoscopia. As fotografias são captadas de pontos diferentes, cada ponto no solo vai ser representado de forma diferente – o mesmo no cinema em 3D, tiramos os óculos e vemos duas por isso usamos estes óculos, que fazem com que um olho esteja a olhar para uma imagem e o outro para outra imagem e temos a sensação de profundidade», começa por explicar o major Franco, chefe desta secção, antes de nos passar uns óculos para podermos acompanhar esta parte do processo.

Com a simplificação do processo e tendo como base os trabalhos já feitos anteriormente, o software «reconhece em cada um dos pontos as coordenadas tridimensionais». «Assim, o operador [neste momento trabalham aqui 13 operadores de fotogrametria, sendo que alguns deles estão a fazer a segunda passagem de informação] mete lá a marca e
regista na base de dados geográficos, onde está a fazer o desenho, toda a informação». E há regras específicas para isto, as chamadas normas de aquisição, para todos os operadores fazerem da mesma maneira. Por exemplo, uma estrada larga regista-se de uma certa forma e assim por diante. «O produto final de tudo isto é a mesma informação já representada em 3D. Podemos simular se o rio Douro subir dois metros quais os prédios que vão ser afetados, por exemplo», explica. «Temos toda a informação que adquirimos em formato digital, os edifícios, as linhas de água, as elevações do terreno, a rede viária e muita outra informação de interesse militar e não só. Temos a informação em três dimensões tanto dos terrenos como das partes urbanas, e com isto podemos fazer as mais variadas simulações para a proteção civil, defesa, planeamento de operações militares».

Antes de passarmos para um exemplo prático desta informação, caminhemos rapidamente para o término desta cadeia de produção que ainda vai a meio. É que findo o trabalho da fotogrametria, é a vez de os topógrafos passarem para o terreno. Com as informações que lhes foram passadas e com edição anterior da folha que estão a trabalhar vão aos locais confirmar e ratificar todos os dados. É no terreno que os militares esclarecem, ratificam ou eliminam todas as dúvidas que surgiram à secretária.

Novamente de volta ao centro, cabe a cada topógrafo confirmar e completar os a informação que recolheu em campo. As folhas são então encaminhadas para a secção de controlo de qualidade, onde um outro revisor supervisiona o trabalho – comparando-o também como outras fontes adicionais, como, por exemplo, os dados da rede viária do plano nacional rodoviário – e, erros apontados, voltam ao topógrafo que terá de os corrigir e validar os dados.

 

Um paço protegido

Se começámos por falar de mapas amarelecidos, terminamos com um exemplo recente de abertura ao futuro.

Nos últimos tempos o CIGeoE têm trabalhado com imagens de drones. «Estes drones captam imagem com os mesmos princípios que vimos do que os aviões, mas como voam muito mais abaixo a resolução é muito maior. Este, por exemplo, é o resultado de um voo de 20 minutos sobre a fortaleza de Elvas. Voámos e a dificuldade vem depois: processar as fotografias e criar a partir daqui um modelo tridimensional do terreno», explica o major Franco, enquanto nos mostra uma imagem.

E o teste já foi feito e apresentado no dia do Exército, que este ano decorreu em Guimarães. A pedido da diretora do Diretora do Palácio dos Duques de Bragança, o CIGeoE criou o modelo tridimensional tanto do palácio como da torre e das muralhas junto à câmara da cidade. «A grande vantagem é que qualquer pontinho tem uma coordenada x y z, se por absurdo houvesse um terramoto e isto caísse tudo nós conseguíamos por pedra sobre pedra no sítio onde estava originalmente, que é a grande vantagem deste sistema», continua o coronel Perdigão. «É algo de inovador. Tem uma potencialidade muito grande na área da gestão do património e, para lá da defesa, tem um grande interesse para a sociedade civil para o levantamento dos edifícios públicos e históricos», continua Perdigão.

Para já, o CIGeoE ainda não tem drones. «Como é uma tecnologia relativamente nova, compramos um drone hoje e amanhã está desatualizado, portanto ainda não nos interessa estar a adquiri-los». Por isso o plano, para já, é «perceber onde é que isto nos pode levar e onde podemos enquadrar este trabalho nos interesses do centro, do exército e do país».

 Os próximos 86 anos da instituição preveem-se então, à luz do desenvolvimento tecnológico, ricos, preenchidos e repletos de novidades.