Duas maneiras de ver

Acontece que, quando a esquerda chega ao poder, deixa de ver os problemas de baixo para cima e passa a ter de os ver de cima para baixo

Ouvimos muitas vezes dizer: «O que se diria, se isto acontecesse no tempo do Passos Coelho?». De facto, no tempo da troika e neste tempo da ‘geringonça’, perante acontecimentos semelhantes, os comportamentos de certas pessoas e de certos partidos são tão radicalmente diferentes que chegam a ser chocantes.

O BE, o PCP, o PS, a CGTP e os respetivos líderes e dirigentes dizem hoje uma coisa e diziam ontem exatamente o contrário.

O que diriam os socialistas, por exemplo, perante este surto de greves, se Passos Coelho fosse primeiro-ministro?
Já pensaram nisso?

Um destes dias ouvi Jorge Coelho atacar os grevistas com inusitada violência, atribuindo-lhes propósitos ocultos; e, no dia seguinte, Ana Jorge, ex-ministra da Saúde de Sócrates, dizia da greve dos enfermeiros o que Maomé não disse do toucinho. 

Parecia impossível dois socialistas falarem assim sobre trabalhadores em greve. 

Mas isto ilustra, de forma eloquente, o facto de haver sempre duas maneiras de ver os acontecimentos políticos ou sociais.
Uma é de baixo para cima, ou seja, das pessoas para o Estado; outra é de cima para baixo, do Estado para as pessoas. 
Olhando de baixo para cima, podemos dizer: os funcionários públicos têm há muito tempo as carreiras congeladas, pelo que é de elementar justiça ressarci-los pelos sacrifícios passados; mas olhando de cima para baixo, podemos dizer que, se essas atualizações fossem feitas, o défice cresceria de forma drástica e isso seria altamente negativo para o país. 
Olhando de baixo para cima, podemos dizer: o direito à saúde não pode ter restrições e portanto os cortes no SNS são inadmissíveis; mas olhando de cima para baixo, diremos que o setor da Saúde é um terrível sorvedouro e o que há a fazer é utilizar melhor os dinheiros disponíveis. 

Olhando de baixo para cima, podemos dizer: o trabalho precário é uma injustiça, ninguém pode organizar a sua vida sem saber com o que pode contar, pelo que os trabalhadores com recibos verdes e afins deveriam ser todos integrados nos quadros; mas olhando de cima para baixo, diremos que, se todos os precários fossem integrados nos quadros do Estado ou das empresas, a despesa pública tornar-se-ia incomportável e muitas empresas fechariam a porta. 

Olhando de baixo para cima, podemos dizer: o ordenado mínimo é muito baixo, com 600 euros ninguém pode ter uma vida digna; mas olhando de cima para baixo, diremos que, se o ordenado mínimo subir consideravelmente, muitas pequenas empresas que vivem no limiar da sobrevivência não poderão aguentar-se e outras deixarão de contratar pessoal.

Não vale a pena continuar a dar exemplos, porque a ideia está clara.

O curioso é que, sendo esta realidade muito óbvia, poucas pessoas têm consciência dela.
A maior parte dos comentadores que vão à TV defendem um ou outro ponto de vista – parecendo não terem consciência de que estão a ver o problema apenas de um lado. 
Em geral, a direita vê os problemas de cima para baixo (a partir do Estado, da Nação, da administração da empresa) e a esquerda vê os problemas de baixo para cima (do ponto de vista dos trabalhadores).
Assim, a direita fala mais do défice, da dívida pública, das dificuldades das empresas, enquanto a esquerda fala dos salários baixos, dos direitos dos trabalhadores, do desemprego, etc.
Acontece que, quando a esquerda chega ao poder, deixa de ver os problemas de baixo para cima e passa a ter de os ver de cima para baixo.
Daí, as contradições do discurso.
Daí, as posições de Jorge Coelho e Ana Jorge.
E também o BE e o PCP passaram a revelar incoerências quando, por força do acordo da ‘geringonça’, começaram a ter de ver os problemas a partir do Estado.
Aí, todas as suas certezas começaram a estalar.

No meio disto, não é por acaso que o mau da fita é sempre o ministro das Finanças.
O ministro das Finanças é o homem que, por dever de função, mais tem de olhar de cima para baixo – pois tem um Orçamento para cumprir.
Não pode deixar que as reivindicações de baixo para cima, que são inúmeras, subvertam o Orçamento do qual é o primeiro garante. 
E esta questão vai agudizar-se cada vez mais na Europa porque, como escrevi há oito dias, aquilo que as economias dos países produzem dá cada vez menos para sustentar o Estado Social – saúde e educação gratuitas, 35 horas semanais, horas extraordinárias pagas a dobrar, férias pagas, 13º e 14º mês, despedimento só com justa causa, indemnizações significativas nos despedimentos coletivos, etc. 
Assim, a visão de cima para baixo, do Estado para os cidadãos, das administrações das empresas para os trabalhadores, vai-se impor – quer governe a direita, quer a esquerda.
E quando a pressão de baixo for muito forte, o Estado tem de adotar uma posição musculada.
Por isso, as democracias estão em perigo.

P.S.Marcelo e Costa falam das «falhas do Estado» no caso do helicóptero. Mas é um enfoque errado. No caso da Pedreira de Borba, sim, as falhas de fiscalização estiveram na origem da tragédia. Aqui não. Não foram as ‘falhas’ do Estado que provocaram a queda do helicóptero. Essas falhas verificaram-se no socorro – que infelizmente já nada poderia fazer, pois as mortes dos ocupantes terão sido imediatas. O que importa aqui sobretudo apurar são as causas do desastre.