Sir Mel Greaves. Um cavaleiro obstinado

Investigador distinguido no fim de 2018 com o título de Comandante da Ordem do Império Britânico acredita que pode ser possível prevenir a maioria dos casos de leucemia infantil, a doença a que dedicou a carreira. Tudo começou nos anos 70 numa enfermaria de um hospital de Londres.

«Tive muita sorte por ter passado a maior parte da minha vida a estudar a leucemia infantil e enquanto jovem biólogo poderia facilmente ter seguido outro caminho». É Mel Greaves na primeira pessoa, num livro publicado em 2008, onde fala da sua viagem enquanto cientista. «Todos fazemos escolhas, por acidente ou planeadas, e no meu caso houve três razões fortes».

A primeira foi a inspiração de um Nobel, Peter Medawar, laureado em 1960 pela descoberta da tolerância imunológica adquirida, que mudou a história da transplantação permitindo tratamentos para impedir a rejeição de órgãos. Greaves tinha-se especializado em imunologia, fora seu aluno e pensou que podia fazer a diferença. «Fez-me acreditar que ciência fascinante e desafiadora pode ser combinada com problemas médicos importantes», resume em White Blood. A segunda foi perceber o quão incipiente era o conhecimento em torno da leucemia, doença que então era fatal para a maioria das crianças – hoje 90% dos casos são curados, mas deixam marcas a longo prazo. «Médicos como Donald Pinkel estavam a dar passos concretos no controlo terapêutico da doença, mas era evidente que havia uma parede de ignorância acerca das bases da variabilidade clínica da leucemia, da sua biologia e das suas causas. Existia uma oportunidade e a imunologia, o campo em que me tinha especializado, dava-me um passaporte para esse território».

Faltava o compromisso e foi uma ida a um hospital de Londres que mudou tudo, corria o ano de 1973. «Pela primeira vez vi meninos pálidos e carecas de 2 a 5 anos numa enfermaria, tinham o meu filho e a minha filha a mesma idade. As crianças naquelas idades são muito especiais e é impossível não imaginarmos a nossa família naquela posição. Fiquei preso.»

Fez perguntas parecidas com as que um pai faria – porque é que a minha criança tem leucemia, qual é o problema dos glóbulos brancos, porque é que começam a funcionar mal e o que o causa – e a obstinação compensou.

No final do ano passado Greaves foi distinguido com o título de Sir, cavaleiro da Ordem do Império Britânico, o coroar de uma carreira apaixonada, mas é o caminho até aqui que o continua a mover. «Durante 30 anos estive obcecado com perceber porque é que as crianças têm leucemia e hoje temos a resposta», disse numa entrevista recente ao The Observer, onde sintetiza os diferentes passos da sua investigação, que permitiu identificar as etapas que levam ao aparecimento da leucemia linfoblástica aguda – o tipo de cancro mais comum na primeira infância – e o levou a acreditar que a maioria dos casos podem ser prevenidos. Tudo começa com uma mutação genética que surge ainda no útero materno e afetará uma em cada 20 crianças e que ainda não se sabe porque que surge nuns e não de outros, já que não é herdada. Mas é o que se passa a seguir que é mais relevante: a doença precisa de um segundo gatilho. «Para o sistema imunitário funcionar corretamente, precisa de ser confrontado com uma infeção no primeiro ano de vida. Sem essa confrontação, é deixado por ativar e não vai funcionar bem». E é só nesse quadro que estão criadas as condições para a leucemia progredir. «Quando um bebé destes é exposto a infeções comuns, o seu sistema imunitário que não estava armado vai reagir de uma forma anormal, desencadeando uma situação de inflamação crónica». Esta inflamação liberta químicos para a corrente sanguínea que provocam uma segunda mutação nas crianças que já tinham suscetibilidade de base, crucial para o aparecimento da leucemia. «Não sabemos como prevenir a mutação inicial pré-natal, mas podemos agora pensar em formas de bloquear a inflamação crónica que surge mais tarde», resume Greaves.

A ideia do investigador é criar um cocktail de probióticos que possam de alguma forma modular o sistema imunitário das crianças para não terem respostas exageradas,_à medida que não se tem cansado de alertar que há em toda esta conjugação um paradoxo de base que tem muito a ver com a forma como vivemos: a incidência de leucemia linfoblástica aguda tem estado a aumentar 1% ao ano nas sociedades mais desenvolvidas e a menor exposição de crianças a micróbios, dos cuidados com as limpezas às elevadas taxas de cesarianas – mais asséticas do que os partos vaginais – mas também o menor contacto social umas com as outras, serão uma variável a ter em conta. E Greaves, hoje com 77 anos, acredita que este caminho da investigação pode ajudar a erradicar não só a leucemia mas a travar a trajetória crescente de outras doenças autoimunes, por exemplo diabetes do tipo I, e alergias.

A sua visão sobre a evolução do cancro no geral também dá que pensar. Numa entrevista publicada em 2015 pelo projeto de divulgação científica Naked Scientists, fala do paradoxo de Peto, que à data tinha motivado uma conferência no Institute of Cancer Research (ICR, na sigla em inglês), a sua casa profissional. A ideia é simples: sendo o cancro uma doença relacionada com o comportamento das células, porque é que grandes animais como as baleias ou os elefantes não têm maior incidência de tumores do que os humanos? É à perspetiva evolucionária que Mel Greaves vai buscar respostas. «O meu pensamento sobre isto vem das observações epidemiológicas de que as taxas de cancro parecem ser baixas em populações indígenas como caçadores-coletores. Parece que as taxas elevadas muito altas são recentes na história da humanidade e vemo-las em pessoas de diferentes países, em pessoas diferentes. Não parece que a causa primeira seja genética, porque as pessoas mudam de uns países para os outros, mas mais que o risco elevado tem a ver com um estilo de vida exótico. Recriámos ecossistemas completamente artificiais para vivermos: a nossa dieta, o nosso estilo de vida reprodutivo, a maneira como interagimos com o sol, tudo. Fumar é o exemplo óbvio. Não conhecemos nenhum animal que fume. Portanto criámos este ambiente artificial que tem benefícios – é por isso que fomos por aqui. Mas as pessoas gostam de fumar, de comer muito e de se exporem ao sol sem pensarem consequências a longo prazo e temo que estejamos seriamente mal adaptados. Temos muitas restrições ao cancro, que evoluíram ao longo de milhões de anos, como todos os animais, mas nós sobrecarregamos toda a essa regulação do corpo através do stresse a que sujeitamos os tecidos por via de padrões de comportamento que evoluíram muito, muito rapidamente».

Na mesma entrevista, Greaves estima que dois terços ou até 90% dos casos de cancro serão potencialmente preveníveis, bastaria um esforço mais ativo de todos e também da ciência.

Em combinação com a deteção mais precoce dos restantes casos e tratamentos mais precisos para os tumores que se manifestarão sempre em fases mais avançadas, seria este o caminho para driblar uma doença que não é uma, mas muitas e complexas. Só é preciso procurar ver a bigger picture, o nome do blogue que edita no site do ICR, e nunca parar de fazer perguntas, como fizeram grandes cientistas como Einstein ou Medawar, escreve num texto de 2017. «O que é que estes Nóbeis têm em comum? Muito pouco. Exceto que todos têm uma paixão avassaladora pela ciência e é isso que partilho com eles. É a paixão que te mantém quando estás numa tempestade, num período de acalmia ou quando o progresso é aborrecidamente lento. Tenho uma grande admiração neste aspeto por Charles Darwin. Não era especialmente inteligente ou talentoso. Certamente tinha uma uma paixão por história natural mas, mais do que isso, fez o que realmente importa: foi ousado o suficiente para se arriscar a fazer uma grande pergunta. E depois de fazer a pergunta, perseguiu-a obstinadamente, como um cachorro atrás de um osso, durante 30 anos». Soa familiar.