‘A tabela periódica é uma base para discutir muita coisa’

A ONU declarou 2019 o Ano Internacional da Tabela Periódica. Sabe quantos minerais são necessários para fabricar os smartphones que acabam no lixo? Adelino Galvão, secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Química, fala do debate cívico que querem lançar.

Já lhe chamaram a bíblia da química, para muitos de nós é indecifrável. O que mostra a tabela periódica?

É a apresentação dos elementos químicos que estão na base de tudo. Seja de um carro, de uma árvore, de um planeta ou de nós próprios. Se dividíssemos tudo o que existe até chegar às partes mais pequenas que é possível isolar teríamos apenas estes elementos.

São 118 elementos ao todo.

Sim, 90 naturais e os outros sintetizados pelo Homem. É como se fossem peças de lego. Imagine uma casa de lego. Se a desmanchar, fica com peças de vários tipos: umas têm dois buraquinhos, outras quatro. Diferentes peças postas de diferentes maneiras podem fazer uma casa, um carro ou uma nave espacial. Também a natureza usa os átomos que estão na tabela periódica para construir tudo o que existe, do mais pequeno ou maior.

A forma como os elementos estão dispostos na tabela dá pistas sobre as suas propriedades?

Estão ordenados pelas suas propriedades químicas, no fundo em função da sua capacidade de ligação de uns átomos a outros. Na tabela periódica original só havia 60 elementos, mas já lá estavam os pontos de interrogação. Dmitri Mendeleev, que há 150 anos fez a primeira tabela, dizia que iríamos encontrar elementos com determinadas propriedades e isso logo dois ou três anos depois com+eçou a acontecer.

Quão revolucionário foi?

O que fez foi estabelecer uma correlação entre uma coisa que ele conseguia determinar, que era a massa atómica – ou seja, quanto pesava o elemento – e o que era esperado. Viu que à medida que os elementos iam ficando mais pesados havia certas propriedades que se repetiam. Fez isto como se fossem cartas de jogar: escreveu o que tinha sobre cada elemento em cartas e foi dispondo tudo numa mesa por ordem. Por exemplo, havia três elementos que, quando se somava a massa do maior com a do mais pequeno, e se dividia por dois, obtinha-se a do meio, o flúor, o cloro e o bromo. Começou a ver coisas que, ao início, pareciam esquisitas mas que serviram para dar alguma ordem aos elementos.

Continua a ser utilizada no dia-a-dia?

Absolutamente, cada vez mais. Em várias áreas, química, física, ciência de materiais. Richard Feynman, que até é um físico e não um químico, diz que se um dia houvesse uma catástrofe que destruísse toda a humanidade e se pudéssemos ter uma ‘arca de Noé’ para salvar certas coisas, se só fosse possível levar uma única coisa da ciência que permitisse aos sobreviventes reconstruir a civilização, essa coisa devia ser a tabela periódica.
É onde, no mais pequeno espaço, está a maior quantidade de informação científica.

Nestas comemorações a tónica está muito em como a tabela periódica pode promover um uso mais sustentável dos recursos do planeta e a economia circular, por exemplo mostrando a quantidade de elementos que são necessários para fabricar os smartphones (31).

Fez-se uma tabela periódica da sustentabilidade em que cada elemento surge com um espaço proporcional à quantidade que ainda está disponível, daí parecer distorcida (ver na página seguinte). Temos muito hidrogénio, mas vemos por exemplo que o hélio já está em risco [é usado na refrigeração de supercondutores necessários, por exemplo, para tecnologias que envolvam campos magnéticos intensos, com a ressonância magnética, mas a organização do Ano Internacional da Tabela Periódica defende, além da busca de formas de reutilização, parcimónia no enchimento de balões]. Além de a tabela estar distorcida para dar ênfase à escassez, temos um novo código de cores. Geralmente usamos as cores para indicar que elementos são sólidos, líquidos ou gases, agora a ideia foi mostrar até que ponto estão sujeitos a pressão.

Por exemplo o lítio está a amarelo: tem disponibilidade limitada e as reservas em risco.

Se pensarmos que todos os telemóveis, carros e computadores têm baterias de lítio e que a taxa atual de reciclagem anda à volta dos 10%, vemos que temos um problema. Na Europa trocam-se 10 milhões de telemóveis por mês e só se recupera um milhão, o resto vai para lixeiras e aterros. Estamos rapidamente a consumir todo o lítio que temos disponível.

Tecnologias em teoria mais sustentáveis, como os carros elétricos, vão estar condenadas a prazo?

Se não reciclarmos, sim. A grande mensagem é que temos de começar a ter mais consciência ambiental e pensar no ciclo de vida dos produtos. Não faz sentido trocar de telemóvel por moda, porque há um novo modelo. Se em vez de usarmos um telemóvel dois anos usarmos três, teríamos uma diminuição da pressão sobre este elemento.

Ouvimos falar do fim do petróleo, dos outros recursos menos.

Há outro aspeto de que não se ouve falar muito mas que deve fazer-nos pensar. A cinzento na tabela temos elementos extraídos de minerais de conflito, obtidos quase em exclusivo em sítios onde há guerras, exploração infantil, escravatura. É o caso do tecnécio ou do tântalo. Tal como o petróleo alimenta conflitos no Médio Oriente, existem potências a financiar conflitos em torno destes minerais por exemplo na República Democrática do Congo. Todas lhe querem deitar as mãos.

Tecnologias mais antigas não tinham os mesmos componentes? Um frigorífico, por exemplo.

Os elementos mais nobres e mais raros só têm sido mais explorados à medida que temos produtos mais tecnológicos, na miniaturização de circuitos, por exemplo. Um frigorífico não precisa de ter tecnécio. Não quer dizer que os minerais de onde se extrai esses componentes não existam noutros lados, mas estes locais que têm conflitos é onde se encontram as jazidas que sai mais barato explorar. Temos mais tecnologia e estamos a substituir combustíveis fósseis por energias mais limpas mas também trazem problemas sociais em que importa pensar.

 

No caso dos telemóveis, o que podemos fazer?

É preciso cada vez mais pensar no círculo de vida global do produto. Tem de haver uma espécie de ponto verde do telemóvel em que a pessoa quando compra um aparelho novo paga uma taxa para que, no final, sejam recuperados componentes. Isto hoje pensa-se para o que vale a pena: de uma tonelada de telemóveis consegue extrair-se 200 gramas de ouro e há empresas que o recuperam para venda. Temos de começar a valorizar tudo, como hoje há mais pressão para valorizar o vidro ou o plástico.

É a discussão que se segue depois das palhinhas e cotonetes?

Sem dúvida. Até pelo impacto que pode ter. Repare, quando se diz que vão acabar entramos na discussão que se ouve há anos sobre o petróleo – e ainda há petróleo. Haver há, mas implica explorar noutros lados. E não tenha dúvidas de que o sítio para onde as pessoas vão olhar a seguir é para o fundo dos oceanos.

Pode haver potencialidades a explorar nos elementos que ainda têm reservas abundantes?

Sim, mas o pensamento tem de ser sempre o mesmo. Pensar a longo prazo.

As reservas de lítio em Portugal têm gerado interesse internacional. É preciso cautela?

Não tenho aquele sentimento ‘not in my back yard’. Se queremos usar a tecnologia e se se descobre que é no nosso quintal das traseiras que é possível explorar um dado elemento, não tenho nada contra, mas é preciso fazê-lo bem, pensando no ciclo de vida, no que se faz às minas no final da mineração.

O passado de exploração de urânio em Portugal é controverso, muito pela forma como as minas foram abandonadas.

Sim, mas para isso existem estudos de impacto ambiental, todo um conjunto de passos que é preciso seguir. As coisas já não são como há 50 anos. Se nos calhou em sorte um recurso, temos de aceitar que seja explorado. Isto é a mesma discussão das lixeiras e incineradoras: toda a gente acha bem mas só se for no município do lado. As coisas têm de ser onde for mais sustentável mas com ponderação e rigor. Um dos objetivos do Ano Internacional é precisamente sensibilizar professores e escolas para que as gerações futuras possam ter uma cidadania mais ativa. É importante que até no domínio da ampliação curricular estes temas sejam abordados para que daqui a cinco anos, se houver um referendo, as pessoas estejam mais informadas. A tabela periódica é uma base para discutir muitas coisa. Posso pegar no carbono e discutir o petróleo, o CO2, as alterações climáticas. É uma base para discutir clima, energia, saúde.

Pode dar exemplos no campo da saúde?

Toda a gente relaciona sódio com hipertensão. Sabemos que o potássio regula os batimentos cardíacos, o ferro existe na hemoglobina e fixa oxigénio. O ferro é ferro, o átomo é o mesmo, como o ferro da ferrugem – a diferença é que na ferrugem está oxidado, tem carga, mas de resto é o mesmo átomo. Mas hoje há muitos tratamentos que são baseados em oligoelementos (micro minerais). A doença bipolar trata-se com lítio: as pessoas tomam um comprimido que altera os níveis de lítio. Às vezes basta fazer um controlo do nível de lítio no organismo para mitigar a doença bipolar ou eliminar os sintomas.

Um químico tem um elemento preferido?

(Risos) Não, não tenho assim nenhum fetiche por nenhum em especial. Mas este ano também estamos a celebrar o fósforo, o primeiro elemento a ser descoberto por métodos científicos, faz 350 anos. É bonito, fosforescente, ilumina-se à noite como os ponteiros de alguns relógios.