A chaga da Saúde

Descansem que não vou falar dos cortes no Serviço Nacional de Saúde. O tema está esgotado.  O que me chamou mais a atenção nas últimas semanas foram as alterações introduzidas por esta ministra no projeto da Lei de Bases da Saúde que recebeu do seu antecessor. A história é a seguinte: o ex-ministro Adalberto Campos…

Descansem que não vou falar dos cortes no Serviço Nacional de Saúde. O tema está esgotado. 

O que me chamou mais a atenção nas últimas semanas foram as alterações introduzidas por esta ministra no projeto da Lei de Bases da Saúde que recebeu do seu antecessor.

A história é a seguinte: o ex-ministro Adalberto Campos Fernandes tinha encomendado um projeto de Lei de Bases a um grupo coordenado por Maria de Belém – antiga ministra da Saúde num Governo de António Guterres.

Maria de Belém entregou a proposta – e qual não foi o seu espanto quando viu que o projeto apresentado pela nova ministra, Marta Temido, tinha pouco a ver com o seu.

As mudanças verificavam-se sobretudo no papel dos privados: enquanto no projeto de Maria de Belém havia um certo equilíbrio entre públicos e privados, no novo projeto a saúde era encarada como um reduto do Estado, sendo reservado aos privados um papel marginal.

A questão é insólita, pois os primeiros-ministros dizem sempre que as políticas não são dos ministros, são do Governo.

Ora, num setor tão importante como a Saúde, isto deveria ser ainda mais assim.

Mas o que verificamos é que o projeto de Adalberto era um – e o de Marta Temido é outro.

A política mudou com a mudança de ministro.

Mudou tanto, que um projeto que deveria em princípio ter o acordo do PS e do PSD, passou sintomaticamente a ter o acordo do PCP e do BE.

Houve uma inflexão de 90 graus.

Perante isso, Marcelo Rebelo de Sousa aventou a possibilidade de vetar a lei, porque gostaria que ela fosse mais abrangente.

Logo saiu a terreiro o inevitável Carlos César desafiando o Presidente da República; e Catarina Martins disse do alto da sua importância que seria inadmissível Marcelo vetar o diploma por ser aprovado pela esquerda.

O argumento tem alguma razão de ser. 

Aparentemente, a maioria que aprova as leis deveria ser indiferente para o Presidente da República.

O facto de ser a esquerda ou a direita não deveria ter qualquer importância. 

Mas neste caso não é assim. 

Porquê?

Porque na Saúde – como na Educação, por exemplo – uma de lei de bases precisa de ter condições para durar uns bons anos.

Não pode mudar ao sabor das mudanças de governo ou de maioria.

Ora, para isso acontecer, não deve ser apoiada apenas por uma das metades do hemiciclo.

Se esta Lei de Bases for aprovada só pela esquerda, isso significará muito provavelmente que, no dia em que a maioria mudar, a lei será revogada.

É isto que Marcelo Rebelo de Sousa quer evitar.

E com toda a razão.

Quanto à questão de fundo – a presença maior ou menor dos privados na Saúde -, a esquerda argumenta que «a Saúde não é um negócio», pelo que deve ser garantida essencialmente pelo Estado.

Ora, trata-se de uma falácia.

As farmácias também são um negócio e ninguém se propõe nacionalizá-las.

E os medicamentos?

Há maior negócio do que o dos medicamentos?

Portanto, o ser um negócio não é argumento.

A questão é outra: tem o Estado condições para ser o único protagonista na Saúde, podendo dispensar praticamente os privados?

Pode o Estado garantir todas as valências neste setor? 

Não pode.

O Estado não tem condições para gerir sozinho um setor tão gigantesco – além de que as pessoas têm todo o direito de poder optar na Saúde entre o público e o privado.

Exceto por preconceito ideológico, não pode dizer-se que o papel dos privados na Saúde é negligenciável.

Até por uma questão prática: as greves tradicionalmente são no setor público e não no privado.

É assim em toda a parte: nos transportes, na educação, etc.

Ora, se o Estado tivesse o monopólio da Saúde, o impacto das greves dos médicos, dos enfermeiros, do pessoal auxiliar, seria ainda maior do que é.

Basta isto para mostrar a necessidade de um setor privado forte.

Idealmente, nos vários setores da sociedade os privados devem estar presentes.

Isso dinamiza mais a sociedade, gera competição, favorece o crescimento económico.

Querer uma Saúde só do Estado é asfixiante e remete-nos para os chamados ‘países socialistas’ de triste memória.

Ora, esta é a tendência da nova lei.

E é mais uma razão para Marcelo intervir.

Pode ser que o PS insista em votá-la e remeta o diploma para Belém sem alterações, sendo Marcelo obrigado a promulgá-la.

Mas o Presidente marcou uma posição.

Disse: não sou cúmplice de uma conceção do sistema de Saúde da qual essencialmente discordo.