Félix parece ser um nome fadado para fazer parte da história do Benfica. De repente, num supetão, o jovem João Félix saltou para a ribalta do futebol português e transformou-se no menino dos olhos dos adeptos encarnados. Félix: mais um. Outro Félix que procura juntar-se ao sol que brilhou, num clarão vermelho, para Félix Bermudes e Félix Antunes, embora este com um ocaso sombrio.
Bermudes, o primeiro Félix, foi tão primeiro que é da fundação do clube. Nascido no Porto, no dia 4 de julho de 1874, foi uma daquelas figuras extraordinárias que surgem volta e meia neste país tristonho que, dizia o imarcescível Eça, se espapa como uma fétida lesma à beira Atlântico sob o nome desacreditado de Portugal. O futebol, para ele, seria sempre a coisa mais importante das coisas menos importantes. Tinha uma vida repleta e de horizontes largos. No desporto, metia-se em tudo: atletismo, ténis, ciclismo, tiro, esgrima, hipismo, natação… E a bola, claro! Jogava a meio-campo.
Na cultura, era avançado.
Poeta, dramaturgo, fundador daquela que começou por ser a Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses e é agora a Sociedade Portuguesa de Autores, era dado a tiradas grandiloquentes: «Sou benfiquista porque ajudei a construir, com uma parcela da minha própria alma, a catedral rubra da Alma do Benfica. Mesmo batido pelas vagas mais alterosas, o Benfica não soçobra!».
Escreveu o hino do clube. Avante p’lo Benfica – «Avante, avante p’lo Benfica/Que uma aura triunfante Glorifica!/E vós, ó rapazes, com fogo sagrado/Honrai agora os ases/Que nos honraram o passado!». O Regime não gostou. Não aturava avantes. Ainda por cima encarnados. Sim, encarnados e não vermelhos. O Regime também não suportava o vermelho. O hino ficou nas gavetas da memória. Continua lá, perdido no mofo, até hoje.
Surgiu nos Jogos Olímpicos de 1920, em Antuérpia, e de 1924, em Paris. Era um mestre atirador de pistola a 50 metros. A sua assinatura aparece, como autor ou colaborador, em mais de cem peças de teatro, de revista, de opereta. E em novelas e ensaios de filosofia política e espiritual. Talvez a sua maior obra tenha sido A_Conquista do_Eterno – O Homem Condenado a Ser Deus. Debruçou-se sobre a centelha divina que cada ser humano recebia do Criador. Entrava no caminho da teosofia. E, como era de esperar, esteve na base do nascimento da Sociedade Teosófica de Portugal.
Mestre da comédia: O Conde_Barão; O Amigo de Peniche; A Bicha de_Rabiar; Arroz Doce. Levou o futebol para o palco do_Politeama, juntamente com Ernesto Rodrigues e João Bastos, em 1925, com O Leão da Estrela. Em 1947, Arthur Duarte desenrolou-o nas telas de cinema com António_Silva e Artur_Agostinho, Milú e Maria Eugénia, Curado Ribeiro, Erico Braga e Laura Alves. O Benfica não entrou. Entrou um adepto fanático do Sporting que resolveu ir ao Porto ver os Cinco Violinos frente ao FC_Porto do Barata, o Baratinha, fumador inveterado de charutos.
Félix Redondo Adães Bermudes veio ao mundo na Rua de Santo Ildefonso e ficou órfão de pai e mãe muito cedo. Veio para Lisboa, ter com o irmão Arnaldo, dez anos mais velho, arquiteto de renome, tirou o Curso Superior de Comércio, trabalhou em lanifícios, fez-se homem, meteu-se na política, foi fichado pela PIDE. Morreu em 1960. Viveu com tempo para tudo.
Outro Félix, menos feliz
No dia 18 de outubro de 1953, chovera em Setúbal de uma forma diluviana. O relvado do Estádio dos Arcos, encharcado, mais parecia um lamaçal. O Vitória recebia o Benfica, para o campeonato nacional, e os encarnados entraram em campo desta forma: Bastos; Artur e Fernandes; Moreira, Félix e Ângelo; Rogério, Arsénio, José Águas, Caiado e Fialho. Ao intervalo, os sadinos venciam por 3-1. Resultado final: 5-3. «A má forma de alguns elementos do Benfica, especialmente de Félix, foi notória» escreveu-se num jornal.
Félix Antunes chegara ao Benfica em 1946. Era um inovador. O primeiro central do futebol português que teve o descaramento de querer jogar como um médio ou como um avançado. Gostava de ter a bola, recusava-se aos habituais chutões para a frente tão vulgares à época. Saía da sua zona com estilo e segurança. Contribuía para o desenho dos movimentos ofensivos e para criar desequilíbrios nos adversários. Já somava 149 jogos no campeonato com a camisola da águia. O de Setúbal seria o último.
Um mês antes fizera parte da equipa de Portugal que foi varrida por um ciclone em Viena, pela Áustria: 1-9! Félix foi apontado como um dos maiores culpados pelo desastre. Que não se tinha empenhado, que provocara problemas no estágio, que teve declarações inopinadas sobre os companheiros. A Federação Portuguesa de Futebol levantou-lhe um processo disciplinar. Tinha 31 anos. A porta da seleção nacional foi-lhe fechada e trancada a sete chaves.
Em Setúbal, ao intervalo, o ambiente era bruto. Ribeiro dos Reis, o responsável técnico, tinha como braço direito o antigo avançado Valadas. Joaquim Fernandes, o capitão, pedia aos companheiros mais garra para a segunda parte. Caiado, que chegara ao clube no ano anterior, apoiou a verve de Fernandes. Félix sentiu-se visado. A vergonha de Viena ainda lhe pesava sobre os ombros. Tinha os nervos em franja e não iria suportar voltar a ser o bode expiatório de nova derrota. Tirou a camisola, lançou-a para o chão, pisou-a e gritou: «Ando há anos e anos a bater-me pelo Benfica. Já corri por este clube muito mais do que alguma vez irás correr. Corre tu! Corre mesmo o dobro de mim que ganhas bem para isso!».
Decidira não voltar ao campo. Ribeiro dos Reis apaziguou os acontecimentos. Convenceu Félix de que o Benfica tinha de estar acima de questões pessoais. Antunes jogou a segunda parte. Demasiado penosa. O Vitória ainda fez o 4-1, mas houve um arranque orgulhoso que deixou a dúvida a pairar num 4-3. Não chegou.
O presidente do Benfica era Joaquim Ferreira Bogalho. Não ficou indiferente à confusão que se gerara no balneário. Sabendo o que Félix fizera com a camisola encarnada, abespinhou-se. Não admitiria tal falta de respeito pelo clube. Suspendeu o jogador por três anos. Era uma quase que uma sentença de morte. Terminaria a carreira no Torreense, na II Divisão.