O telefone do quarto de hotel de Lothar Schmidt, em Reykjavík, tocou estridentemente durante alguns minutos. Era o dia 3 de Setembro de 1972. Passava pouco do meio dia. Quando Lothar atendeu, ouviu uma voz sumida do outro lado: «Não vou prosseguir o jogo. Desisto». Era Boris Spassky.
O vigésimo primeiro jogo entre Spassky e Bobby Fisher pelo título mundial de xadrez fora interrompido ao 40.º lance. Todos os especialistas foram unânimes em acusar o erro do russo ao mover o bispo para o quadrado sete da rainha. Max Euwe, o holandês que fora campeão do mundo entre 1935 e 1937 e exercia o cargo de presidente da Fédération Internacionale des Échecs (FIDE) não teve dúvidas ao afirmar: «Se tivesse jogado o rei para o quadrado três da torre seria um empate fácil». E Euwe era um mestre. Afinal batera o formidável Alekhine noutra luta pelo topo do mundo do jogo das sessenta e quatro casas. Mesmo que Alekhine se tenha apresentado em algumas partidas bêbado como um cacho. Algo que levou o cubano Raul Capablanca, o maior rival de Alekhine, a afirmar: «O jogo do dr. Alekhine tem 20% de bluff. O do dr. Euwe, apesar de, em alguns aspetos, ser mais frágil do que o do seu adversário, é bem mais equilibrado».
Bobby Fisher não era dr. Fisher nem isso parecia importar-lhe grandemente. Há um filme sobre ele, realizado por Edward Zwick e com Tobey Maguire a fazer de Fisher. Chama-se Pawn Sacrifice. Criado praticamente sob as saias da mãe, Regina Fisher, o jovem Robert James foi iniciado numa filosofia da conspiração que metia a ordem de nunca atender o telefone, que estaria sob escuta, e a manter-se distante dos carros estacionados à sua porta, em Brooklyn, depois de terem abandonado Chicago. Regina viveu alguns anos da URSS pré-estalinista e não estava decidida a facilitar a vida aos espiões que, segundo ela, lhe rosnavam às canelas como cães famélicos.
Apesar de tudo, no dia 3 de setembro de 1972, Bobby levantou o auscultador para ouvir Lothar, o árbitro, confirmar que se tornara no primeiro a quebrar a monotonia dos campeões russos que durava desde 1948. Exigiu uma declaração escrita e assinada por Spassky a confirmar a desistência.
No dia 17 de janeiro de 2008, Fisher estava morto. Mas nem morto deu descanso ao universo em geral. O seu tipo de jogo, apelidado por alguns de ‘Danças Macabras’, aplicava-se inequivocamente à história da sua existência atribulada. Os rins colapsaram-lhe aos 64 anos. Nem de propósito. 64 anos de casas brancas e pretas espelhadas num tabuleiro de contradições. Apesar de vaguear como um maltrapilho, barba farta e os cabelos em repas sobre as orelhas e o pescoço, olhos esgazeados de paranoico, confinado à Islândia que o recebeu como exilado, depois de lhe ter sido retirado o passaporte norte americano e ter passado por uns meses pouco confortáveis numa cadeia de Tóquio, Bobby não era nenhum pelintra. Tinha uma conta num banco suíço com mais de um milhão e meio de dólares e uma razoável quantidade de barras de ouro. E também tinha uma mulher, a japonesa Miyoko Matai, e um filho. Basicamente, casara com o xadrez. Afinal, Miyoko era a presidente da Federação Japonesa de Xadrez.
A América voltou a interessar-se por Fisher. O Tio Sam fez os possíveis para lhe deitar a mão às notas, evocando o bizantino argumento de que Bobby não poderia ter-se casado sem passaporte. E, invalidado o contrato, a senhora Matai baixava na escala social até ao estatuto de concubina.
Há sempre rosas vermelhas e frescas sobre a campa de Roberto Fisher. Quem o contou foi Kristinn Fridfinnson, o ministro da igreja luterana de Hraungerdi, o local onde puseram sete palmos de terra sobre o seu cadáver. «Enterraram-no aqui sem me dizerem nada. Fiquei perplexo», confessa Fridfinnson.
As exéquias foram levadas a cabo por um padre católico perante apenas cinco pessoas. O defunto viajou os cerca de 50 quilómetros que separam Reykjavík de Hraungerdi quase clandestinamente. Gardar Sverrisson, o melhor amigo de Fisher tratou de tudo. E nunca abriu a boca sobre o assunto.
Bobby de católico não tinha nada. A mãe era judia, mas ele nunca se quis judeu. «I read a book lately by Nietzsche and he says religion is just to dull the senses of the people. I agree», afirmou certa vez. O problema é que, mesmo falando pouco e protegendo a sua existência de eremita de tudo o que fosse exposição pública, dizia um dia uma coisa e o seu contrário no dia seguinte. Cultivava mistérios em redor de si como quem cuida de flores num jardim proibido. Einar Einarsson, outro dos seus amigos islandeses, também responsável pelo intrigante funeral de Fisher, explicou como pôde: «There was always that dark side – he believed that dark forces were out to get him». Talvez por isso preferisse as peças negras.
afonso.melo@newsplex.pt