Há dias, o presidente do Partido Socialista, Carlos César, fez uma declaração extraordinária.
Comentando a onda de greves que tem martirizado o país, César disse que havia uma diferença radical entre estas greves e as do tempo de Passos Coelho: enquanto as outras eram «justas», as greves contra o Governo do PS são «injustas».
Assim mesmo.
Julgo nunca ter ouvido um político assumir de forma tão cândida o seu maniqueísmo: o que é feito contra os outros é bom, o que é feito contra nós é por definição mau.
Fez-me lembrar um dirigente desportivo que certa vez me disse: «Para mim, todos os penáltis a favor do meu clube são bem assinalados, e todos os penáltis contra o meu clube são um roubo».
Na sua expressão quase caricatural, este modo de César ver as coisas ilustra muito bem o que é o PS.
É verdadeiramente um partido de duas caras.
É um quando está no Governo, é outro quando está fora do Governo; é um quando olha para os adversários, é outro quando olha para si próprio.
Tem sido sempre assim.
Em 2011 o PS fez um acordo com a troika que José Sócrates classificou como «excelente» para Portugal; mas quando Passos Coelho começou a executá-lo, o acordo, para os socialistas, passou logo a ser péssimo.
Para justificar a cambalhota, o PS inventou o pretexto de que o Governo ia «para além da troika» – o que nunca aconteceu, como se sabe, pois ficámos sempre ‘aquém’ dos objetivos.
O PS sabia isso muito bem, mas a falácia servia para sustentar a sua mudança de posição – e isso é que importava.
Nesse período da troika, a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, anunciou que o Governo tinha criado uma almofada financeira para enfrentar problemas inesperados que pudessem surgir.
Saiu logo o PS a terreiro para criticar vivamente a medida, dizendo que o Governo tinha os bolsos cheios mas «os portugueses estavam de bolsos vazios».
Indiretamente, o Governo era apresentado como uma espécie de salteador que roubava as pessoas para encher os seus próprios cofres.
Mas o Governo mudou e o ministro das Finanças chama-se hoje Mário Centeno.
Ora, Centeno criou a sua almofada financeira – e quando lhe sugeriram que a pusesse a uso para resolver o problema dos professores recusou terminantemente.
Almofada é almofada.
E o que fez o PS? Criticou?
Não: aplaudiu.
Indo um pouco mais atrás, Mário Soares também mostrou no Governo e na oposição a sua arte camaleónica.
Quando era primeiro-ministro, entre 1983 e 85, aceitou as condições do FMI e impôs uma apertada política de austeridade, dizendo alto e bom que os portugueses tinham andado durante tempo demais «a gastar acima das suas possibilidades» e era altura de «apertar o cinto».
Porém, em 2011-15, barafustou o mais que pôde contra as condições da troika e colocou-se na linha da frente do combate ao Governo que as aplicava.
O que antes era bom, agora era mau; o que antes tinha de ser feito, agora devia ser combatido.
Ele, que sempre recusara uma frente popular, assumia-se como o chefe simbólico dessa frente no combate contra a ‘direita’.
Enfim, as greves contra o Governo socialista são injustas, as greves contra o Governo da direita eram justas.
Os acordos do PS com entidades estrangeiras – chamem-se troika ou FMI – são sempre bem feitos, a sua aplicação é que falha quando é a direita a fazê-la.
As medidas de cautela financeira ou de austeridade são inteligentes e necessárias quando é o PS a fazê-las, mas representam quase um ‘roubo’ quando são feitas pelos outros.
Dir-se-á que todos os partidos são assim – têm uma cara quando estão no Governo e outra quando estão na oposição.
Mas o PS especializou-se particularmente nesse jogo.
Sendo o partido que tem mais gente dentro da máquina do Estado, está sempre com um pé no poder.
E, quando lá tem os dois pés, comporta-se muitas vezes como se estivesse na oposição – atirando para cima dos adversários as culpas dos erros próprios.
Ainda hoje, os problemas do SNS são atribuídos à troika e a Passos Coelho.
Afivelando hoje uma máscara e amanhã outra, aparecendo umas vezes numa qualidade e amanhã noutra, dizendo o que convém de acordo com a máscara que usa e a qualidade em que fala, o PS é verdadeiramente um partido de múltiplas faces.
P.S. – A posição de Maduro na Venezuela tornou-se patética. Acantonado no poder com os seus capangas, defendido pelos generais fieis, faz lembrar Pablo Escobar na sua teimosia final. Também o ‘rei da droga’ se dizia um defensor dos pobres. Este vivia da coca, aquele vive do petróleo, mas a massa humana de que são feitos é muito parecida. O apoio do PCP a este homem é um triste retrato do que a ideologia pode fazer às pessoas: impede-as de ver a realidade. Quando a realidade não encaixa na doutrina, torce-se a realidade ou fecham-se os olhos. É que Maduro não é Fidel, nem sequer Chaves. Nesses, para lá dos crimes cometidos e das perseguições aos adversários, ainda se podia descobrir um lado romântico que justificasse a admiração. Mas em Maduro nem sequer isso existe. É simplesmente um funcionário que herdou o poder e está desesperadamente agarrado a ele. Como Escobar estava – e acabou morto.