«A saudade faz o que foi melhor do que era»

Esta frase, que a Francisca fotografou perto do elevador da Bica, em Lisboa, diz: «A saudade faz o que foi melhor do que era». O seu autor não colocou a vírgula que surge na fotografia, mas alguém, erradamente, achou que lhe fazia falta. No entanto, não faz, e até lhe retira o sentido, tornando-a enigmática.…

Esta frase, que a Francisca fotografou perto do elevador da Bica, em Lisboa, diz: «A saudade faz o que foi melhor do que era». O seu autor não colocou a vírgula que surge na fotografia, mas alguém, erradamente, achou que lhe fazia falta. No entanto, não faz, e até lhe retira o sentido, tornando-a enigmática. Sem vírgula, aquilo que o seu autor queria dizer é que a saudade torna aquilo que já passou muito melhor do que na realidade foi.

E todos temos consciência de que assim é. Quando olhamos para o passado, vemo-lo filtrado pelo nosso olhar atual, por aquilo que sobre ele já pensámos ou já sentimos, e esta nossa influência reflexiva sobre atos passados faz com que «o que foi» nos surja de outra forma. E, na maior parte das vezes, olhamos para aquilo de que gostámos já sem o peso de erros ou defeitos, apenas matéria depurada de falhas, e, como tal, muito melhor do que, na realidade, era. De igual modo, quando recordamos algo de que não gostámos, vemos essa situação ou pessoa com todos os filtros que já lhe aplicámos, o que a torna ainda pior do que, efetivamente, era ou, em alguns casos, até muito melhor.

É o nosso olhar sobre o passado que o deturpa porque o filtra com as nossas ideias e sentimentos atuais. Daí que a história seja sempre influenciada pela forma como para ela olhamos, à luz dos padrões contemporâneos, daquilo que hoje conhecemos e do que consideramos habitual ou normal. A escravidão parece-nos inaceitável, a obediência cega a Hitler é, para nós, incompreensível, as cerimónias fúnebres egípcias parecem-nos ultrapassadas. Mas tudo se passou num tempo determinado, mais ou menos longínquo do nosso, num contexto completamente diferente do atual. E o nosso olhar sobre o passado histórico não deve ser de crítica ou incompreensão, mas, antes, de aprendizagem, para beneficiarmos do que aportou até nós de bom e para mudarmos o que consideramos que já não é aceitável face ao que hoje somos e ao que sabemos.

Tal como em relação à história, também na vida olhamos o passado – o dos outros, mas, sobretudo, o nosso – com olhos distantes, mas, no fundo, nostálgicos, pelas alterações que ocorreram.

Muitas vezes, é essa capacidade para «romancear» o passado que nos ajuda a ultrapassar situações traumáticas, em que nos agarramos a pormenores paralelos que nos ajudam a aceitar o que se passou e a relativizar o seu efeito negativo. Conseguimos, muitas vezes, bloquear aquilo de que não gostamos no nosso passado para não continuarmos a sofrer no presente. Esquecer momentos dolorosos da vida, como um parto, um acidente de viação, ou uma queda, são formas de «pôr uma pedra» sobre o assunto e continuar a viver sem rememorar o passado. Tentamos, a todo o custo, tirar o sofrimento de dento de nós, apesar de nem sempre o conseguirmos. Diz Afonso Reis Cabral, em Pão de Açúcar: «Talvez julgasse que pôr a história no papel a tiraria do peito, de onde na verdade ninguém a arranca. Mas isso não lho disse».

E aquilo de que gostámos ganha contornos diferentes, gerando em nós uma vontade de recuperar ou reviver esses momentos. É por isso que sentimos saudade, aquele sentimento que gostamos, orgulhosamente, de descrever como um sentimento português, mas que, na realidade, não é, porque todos os povos o sentem, com vocábulos diferentes.

E é a saudade, essa vontade de fazer o passado presente, que torna esse passado melhor do que, na realidade, foi. Dizia Clarice Lispector: «Saudade é um pouco como fome / Só passa quando se come a presença». É essa mesma saudade que nos faz voltar a sentir a necessidade de estar junto de uma pessoa, de voltar a um local, de voltar a sentir algo.

E com essa saudade vamos alimentando o dia a dia, dando-lhe o combustível que, às vezes, nos falta para tornar os nossos dias mais alegres.

 

Maria Eugénia Leitão