Jordan Peele. ‘Queria fazer este filme como uma espécie de teste de Rorschach’

Depois do sucesso de Foge, Jordan Peele está de volta com Nós, onde veste mais uma vez a pele de realizador e argumentista. Desta vez, o cineasta norte-americano continua a explorar os caminhos do terror com um inimigo muito próximo – uma outra versão de nós mesmos.

Jordan Peele. ‘Queria fazer este filme como uma espécie de teste de Rorschach’

O escritor, diretor e produtor e vencedor do Oscar, Jordan Peele regressa com um novo susto cinematográfico após o sucesso de bilheteira – e a sensação da cultura pop – que foi Foge. O filme estreou nas salas portuguesas há uma semana.

Como define o mundo e a história de Nós?

Nós é um filme sobre uma família que vai para a sua casa de verão perto de Santa Cruz. A mãe, Adelaide Wilson, interpretada pela Lupita Nyong’o, experienciou um certo trauma quando era criança, um trauma que ameaça invadir aquelas férias. E depois, como as pessoas já saberão, há um encontro entre a família e quatro estranhos fora da casa e o caos instala-se.

A ideia para este filme foi-se insinuando na sua cabeça durante um tempo ou apareceu  de supetão?

As duas coisas. Esta é uma ideia que tenho germinado desde que sou jovem. Tive o devaneio – ou o pesadelo – de me ver a mim próprio numa plataforma do metro. E essa imagem arrepiante ficou comigo. Quando comecei a pensar sobre o que queria fazer no filme, sobre o que realmente me assusta, comecei a questionar-me: ‘O que há nesse medo que o torna tão primordial e universal e antinatural?’ Comecei a olhar e estudar a mitologia doppelgänger. Descobri que existe em praticamente todas as culturas, e queria modernizar essa mitologia, descobrir do que se trata e sobre o que se trata agora.

Quão importante é o elenco para si? O que viu em Lupita e Winston que o fizesse pensar que eram os atores certos para este projeto?

A Lupita é uma artista icónica, falo tanto do seu talento como da sua aparência. Tudo nela contribui para a ideia de que estamos perante uma artista singular – há apenas uma Lupita Nyong’o – o que no filme reforça a ideia do quão antinatural é termos duas. Essa foi a chave para mim que desvendou porque é que o papel lhe assentava tão bem. É um papel perfeito para ela, no qual ela entrou e juntos começámos a escavar a descobrir essa personagem. Com o Winston foi diferente. Quando vi o Black Panther e pensei nele, percebi que não se encaixava totalmente, mas isso era excitante. Falámos e percebi mais coisas sobre aquele personagem de que eu andava à procura. Juntos têm uma tal química… conhecem-se. É uma história perfeita. Vi-os juntos durante as conferências de imprensa de Black Panther, vi o magnetismo entre eles. Liguei para a Lupita, que já estava no filme, e perguntei: ‘O que achas do Winston?’ Ela adorou. Isto depois de ter falado com ele, como é óbvio.

O que trouxeram ao filme  Evan (Alex) e Shahadi (Wright Joseph)?

Tanto Shahadi como Evan são jovens atores extremamente profissionais que confiaram em mim no processo, e foi um prazer absoluto trabalhar com eles. Foram tão bons ouvintes que conseguia encontrar muitas possibilidades diferentes para cada cena. Nem sempre temos esta capacidade de ouvir num ator, muito menos num jovem ator.

Quais são os desafios quando falamos de papéis duplos?

É muito complicado e requer muito agendamento. É difícil descobrir quando e como filmamos tudo. Mas, para mim, o que quis mesmo fazer foi ter a certeza de que não trataríamos a ideia da dupla função como se fosse um incrível truque de magia que precisávamos de mostrar. Por outras palavras,  tentei filmar o filme como se tivesse dois atores a interpretar cada papel, para fazer as mesmas escolhas nos ângulos da câmara e não ficar atolado a vender excessivamente as duas pessoas na tela ao mesmo tempo. E eu acho que a ilusão funciona.

Ouvimos rumores de que deu algumas contracenas aos atores para que eles tivessem um ponto de partida.

Fiz de Red para a Lupita quando ela precisava. Foi engraçado, porque o plano inicial era mostrar aos atores o que tinham feito no dia anterior, mas ela achou que esse método a tiraria do papel. O que foi interessante, e eu sabia o que tinha que fazer. Deram-me um microfone, e eu li as falas e tentei fazer o mais próximo do desempenho que ela tinha dado, e é aí que a minha experiência de comédia veio ao de cima. Estava a imitar o melhor que podia o discurso que ela tinha interpretado no dia anterior com a emoção necessária – ela é uma atriz que se imerge na cena. Mora nesse mundo quando está lá, e foi uma tarefa assustadora conseguir isso e não entrar na terra da comédia. Foi o que aconteceu!

O que se passa com os coelhos que o incomodam tanto?

São tão assustadores! Nunca me senti completamente confortável com os coelhos. Há algo sobre eles que é desprovido de personalidade. A maioria dos animais fofinhos tem algum tipo de personalidade. Os coelhos têm aqueles olhos mortos! É como se estivessem a olhar através de nós. Amo a dualidade e este filme é sobre a dualidade. A dualidade de ter um dos animais mais amados historicamente, mas se quando olhamos de perto … Não!

Deu trabalhos de casa aos atores antes de começar a filmar. Porquê?

Há uma variedade tão grande de horror… Há pessoas que não se consideram fãs de terror e julgo que  tendem a pensar nisso em termos muito restritos. Dizem que não gostam de filmes de terror de uma forma geral, mas isso não significa que não haja outro filme  dentro do género que seja fascinante e catártico para você. Por isso, queria dar-lhes [ao elenco] uma coleção de filmes que lhes oferecessem uma paisagem para discutirmos o horror como um género dentro dos filmes, e assim eu poderia referir-me a diferentes tons que sentia que, em certas cenas, iriam funcionar. Como sabe, adoro prestar homenagens, mas ainda mais importante, adoro utilizar o que funciona em diferentes subgéneros de horror e brincar com essas ideias e esses temas. É importante ser capaz de dizer-lhes: ‘Sim, este é um momento engraçado, mas não é engraçado como Jamie Kennedy no Scream, é mais como quando o Chucky amaldiçoa pela primeira vez’. É a habilidade de ser específico que muitas vezes permite que um ator responda: ‘Oh, ok, entendi’.

Como cineasta, qual é para si o tema que norteia Nós? 

Há muitas ideias que derivam dessa noção de sermos o nosso o pior inimigo. Penso que o filme é mais alegórico do que direto, mas como famílias, como americanos, como uma unidade mundial, os seres humanos coletivamente pensam em si próprios mesmos como tribos. Parte disso vem de algo e do nosso ADN que nos dá a necessidade de fazer inimigos com quem vem de fora. Com o invasor. Há uma misteriosa força invasora que vem para levar a nossa casa. E o que queria explorar neste filme é o facto de que o verdadeiro inimigo tem a nossa cara. O estranho é uma construção.

O que espera que as pessoas retirem do filme?

Não quero presumir muito sobre o que as pessoas irão intelectualmente retirar. O que eu amo fazer é entreter. Adoro fazer as pessoas vibrarem, rirem, chorarem, terem  medo, todas essas coisas. Mas acho que, se conseguir fazer isso, eles vão sentir-se fortalecidos e armados para dissecar por que passaram por esses sentimentos. Tenho comentários muito claros que pretendia fazer, mas também queria fazer este filme como uma espécie de teste de Rorschach, que pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes.   

 

Entrevista cedida pela Universal