A encruzilhada do Ensino Superior Militar

Na semana passada afirmámos que a qualidade do ensino da Escola Naval (EN) e da Academia Militar (AM) no final do século XX era reconhecidamente de grande qualidade.

A título de exemplo, recordamos que, no período conturbado que decorreu entre 1973 e 80, a AM formou muitos alunos (civis) do Instituto Superior Técnico (IST), pois aí encontraram a ordem e qualidade de ensino que lhes permitiu continuar os cursos de engenharia civil, mecânica e eletrónica. Lembramos ainda que muitos professores davam aulas na AM e no IST, numa ligação que vem de há muito tempo e ainda se mantém.

Com o advento do Ensino Superior Militar (ESM), a Escola Naval, a Academia Militar e a Academia da Força Aérea (AFA) passaram a integrar um universo muito mais amplo: o Sistema Nacional de Ensino Superior (SNES). De fora deste sistema apenas ficaram os Institutos de Altos Estudos dos diferentes ramos das Forças Armadas.

O ESM é uma pequeníssima parcela do SNES, mas está sujeito ao mesmo regime jurídico, logo aos mesmos princípios.

E esta nova realidade, que proporcionou enormes possibilidades ao ESM, também lhe impôs regras para as quais a instituição militar não estava preparada.

Curiosamente, os primeiros tempos foram auspiciosos, pois até finais da década de 90 as exigências colocadas aos estabelecimentos de ensino superior, em termos do número de docentes doutorados e da investigação desenvolvida, não eram nada de excecional.

Por essa altura, o número de mestres e doutorados em Portugal era francamente insuficiente para as necessidades do país. Muitos se recordarão dos famosos ‘turbo professores’ que davam aulas nas mais variadas universidades do país, por vezes muito distantes.

O ESM conseguiu adaptar-se bem, mas o necessário equilíbrio entre as componentes ‘ensino militar e comportamental’ e ‘ensino superior’ nunca foi pacífico.

A título de exemplo, deixamos este dado: o número de horas de aulas nos Estabelecimentos de Ensino Superior Público Militar (EESPM) é sensivelmente o dobro do das universidades ‘civis’. Este dado é crítico pois, nos ESM, é obrigatória a presença em todas as aulas, e o número de faltas permitido é muito estreito – o que não acontece no resto do ensino superior.

Perguntar-se-á: qual a razão para tal disparidade de carga horária?

A resposta é simples e desconcertante: enquanto os alunos das universidades civis ‘apenas’ são avaliados na componente científica, os cadetes (designação dos alunos dos EESPM) têm o mesmo número de horas de aulas para obterem um grau académico — mas a estas acrescem muitas outras para adquirirem competências técnico-militares, bem como capacidades de comando e liderança (afinal, a razão de ser do ESM).

Ora, este equilíbrio é cada vez mais difícil de conseguir.

À medida que o tempo foi passando, as exigências do ensino superior foram sendo maiores, pois a proliferação de instituições, algumas com predicados duvidosos, obrigou o Estado a ser mais exigente nos critérios de qualidade.

Concomitantemente, porque o moderno campo de batalha e os sistemas de armas ao dispor das diferentes Forças Armadas são cada vez mais complexos, também a formação militar e comportamental passou a ser substancialmente mais exigente.

Eis-nos chegados a uma equação muito difícil de resolver: por um lado, os requisitos científicos e da formação militar são mais exigentes; por outro lado, a duração do dia e a capacidade humana continuam a ter os mesmos limites.

As diferentes opções que vêm sendo assumidas têm provocado muita discussão:

– Há quem entenda que a componente científica é a mais relevante e prioritária, tendo de se garantir o reconhecimento do grau académico de Mestre, exigido pelo Estatuto dos Militares das Forças Armadas, para ingresso nos quadros permanentes; mas também por uma questão de prestígio institucional, pois a exposição pública e as competências requeridas no vasto leque de cargos que um oficial pode ter de cumprir, dentro e fora da estrutura das Forças Armadas, impõe que este aufira de uma formação académica de nível elevado. E porque o tempo não dá para tudo, os inevitáveis ‘sacrifícios’ devem ocorrer na formação das componentes militar e comportamental dos futuros oficiais.

– Mas outros entendem que a componente militar é mais importante, logo qualquer cedência deve acontecer na componente científica. E os mais radicais até acham irrelevante a obtenção do grau académico, considerando que o prestígio da instituição militar advém exclusivamente do seu desempenho profissional.

São posições respeitáveis e defensáveis. Mas em 2019 já não são posições conciliáveis. Provavelmente nunca foram… embora até há bem pouco tempo acreditássemos que sim.

As exigências colocadas ao ESM são muitíssimo maiores do que no passado, decorrendo de novos e sucessivos regimes jurídicos que acompanham a evolução da universidade e da ‘sociedade científica’, mas os EESM não conseguiram alcançar essa evolução por insuficiente abertura institucional.

Têm apostado na situação de equilíbrio já enunciada, mas que não é sustentável, pelo que invariavelmente têm aumentado a duração dos cursos, muito mais longos que os ‘congéneres’ civis.

Somos de opinião que o modelo de ESM existente já não serve:

– Há cursos que já não se justificam;

– Há cursos que podem ser ‘fundidos’;

– Impõe-se uma enorme racionalização de recursos humanos e matérias.

Como sempre, e Em Nome da Verdade… continuaremos no próximo número.

*Major-General Reformado