‘Os mafiosos adoram o padrinho e chegam a vestir-se como Marlon Brando’

Professor de Criminologia na Universidade de Oxford, Varese estuda a fundo o mundo do crime organizado e até conheceu pessoalmente alguns dos seus membros. Diz que os mafiosos vivem no meio de nós e recorda a situação em que sentiu mais medo.

‘Os mafiosos adoram o padrinho e chegam a vestir-se como Marlon Brando’

Nascido em Ferrara, Itália, Federico Varese estudou em Cambridge e Oxford e fez um doutoramento sobre o fim da União Soviética. Em meados da década de 1990 viveu na Rússia, onde conheceu Nikolai Zikov, o chefe da máfia de Perm, uma cidade nos Urais. Baseado em entrevistas e conversas que teve com mafiosos, mas também em depoimentos prestados em tribunal e escutas telefónicas, o seu livro Mafia Life (ed. Desassossego) descreve vários aspetos da vida de uma organização criminosa, desde a cerimónia de iniciação à maneira como os seus membros torturam e matam os inimigos – dos Estados Unidos à Rússia, passando por Itália e pelo Japão.

Como descreve no livro, cada máfia tem a sua cerimónia de ‘batismo’ para novos membros. Há alguma explicação para serem todas parecidas?

Um dos meus objetivos era descobrir o que estas máfias têm em comum, e no primeiro capítulo, que se chama ‘Nascimento’, passo em revista todos esses rituais. Para minha surpresa descobri que são muito semelhantes entre si. Todos têm inspiração na religião local e todos implicam esta ideia de que quem adere se torna uma pessoa nova. Por isso os mafiosi dizem no ritual: ‘Hoje eu nasci’. Na Rússia inclusivamente recebem um novo nome.

Por onde começa a carreira de um mafioso?

Normalmente começa-se por cometer crimes, usar violência, mas também tem de se angariar dinheiro para os chefes. Uma das tarefas importantes é controlar pessoas, negócios, extorsão, prostituição. Se faturamos muito dinheiro e damos parte desse dinheiro aos superiores, eles ficam a gostar de nós. Mas se precisarmos que eles nos ajudem, eles também ajudam. Mas sobretudo é preciso garantir que se ‘chuta’ dinheiro para cima.

Uma vez lá dentro, como se sobe até ao topo da hierarquia destas organizações? Mostrando sabedoria, coragem, força física?

Há de facto uma carreira dentro da organização. As qualidades-chave para subir não têm tanto que ver com a violência – embora a violência tenha a sua importância – mas sobretudo com essa ‘sabedoria’ que referiu. Há muita política em jogo, e ser bom a mediar conflitos e a lidar com pessoas são qualidades essenciais num mafioso. Acho que ‘sabedoria’ é uma boa forma de descrever o que é preciso para ascender. E, como disse, também é importante fazer muito dinheiro para os chefes.

Nestes meios contam-se muitas histórias sobre chefes, sobre como derrotaram os inimigos ou fizeram alguma proeza impressionante?

A construção de mitos é muito importante para a máfia. E eles gostam de contar histórias de guerras. Uma das formas mais eficazes de o fazerem é através do cinema. Adoram quando fazem filmes sobre eles. No Japão, por exemplo, a máfia controla grande parte da produção de filmes e noutros sítios, como em Hong Kong, ficam muito satisfeitos quando são feitos filmes sobre eles. Houve um chefe de Hong Kong que até pagou para fazerem um filme sobre ele…

… mas depois não ficou muito contente com o resultado.

Pois! As coisas às vezes não correm como planeado. Mas em geral adoram quando os filmes contam histórias sobre eles, porque isso os ajuda a construir uma reputação. E uma vez construída essa reputação de serem violentos e poderosos, as pessoas ficam com medo, naturalmente, e não se atrevem a atacá-los.

Ao que parece, são grandes fãs d’O Padrinho!

É verdade. O Padrinho é o filme de que os mafiosi mais adoram. Não é um retrato rigoroso da máfia, mas é um filme que eles imitam. No caso da máfia ítalo-americana chegam a aprender de cor muitos dos diálogos, mas até na máfia russa há grupos que se modelam à imagem d’O Padrinho, e chegam a vestir-se como Marlon Brando. O poder desse filme é extraordinário.

A realidade imita a ficção.

Exato. No livro falo disso. Não é tanto a ficção que imita a realidade, até porque muitas vezes a ficção não é muito rigorosa. O aspeto fascinante é que isto funciona ao contrário: eles não se importam que a ficção seja ficção, que O Padrinho não seja uma representação exata; aliás, é da maneira que ainda gostam mais, pois a representação da sua vida não seria tão glamorosa. A sua vida real às vezes é horrível, mas eles inspiram-se nestas histórias porque elas os levam a crer que as suas vidas são interessantes e valem a pena. É a vida que imita a arte.

E se um jornalista escrever sobre eles, também gostam?

Eles gostam de publicidade, mas não de publicidade negativa. Por exemplo, há filmes que são muito fiéis aos factos, como os de Martin Scorsese, e eles não gostam desses, porque são muito terra a terra. Gostam que os jornalistas escrevam sobre eles, mas não se forem trabalhos de jornalismo de investigação que exponham os seus negócios. Gostam de descrições hagiográficas, que os glorifiquem. Claro que para nós, que estudamos este mundo, é muito importante não cairmos nisso. Este livro tenta não os mostrar como grandes heróis, nem mesmo como heróis negativos. Eles não são super-heróis, podem ser derrotados, cometem erros. É muito importante trazê-los de volta à terra, assim podemos compreendê-los e combatê-los melhor.

Entre si, os membros destas organizações usam uma linguagem especial, codificado, um tipo de calão?

Sim. No caso dos russos é mesmo uma linguagem à parte, a que se chama fenya. Outras máfias não têm propriamente uma linguagem mas usam certas palavras-chave. São organizações secretas e precisam de sinais para que os membros se reconheçam e comuniquem entre si.

Uma das palavras que associamos muito a este mundo é honra. ‘Honra’ significa para um mafioso o mesmo que significa para mim ou para si?

Claro que eles têm o seu próprio conceito do que é ou não é honrado. Em grande parte baseia-se nas regras que eles se comprometem a respeitar no ritual de iniciação. Quem passa por esse ritual aceita as regras da organização e promete fazê-las cumprir – e não são regras que nós aceitaríamos na vida normal, como punir pessoas que falam à Polícia. Mas para eles isso é algo honrado. É um universo paralelo em termos de moralidade, que tem as suas próprias regras e o seu próprio código de honra. Os criminosos russos que eu estudei são membros de uma fraternidade chamada viri-v-zakone, e zakone significa lei. Para eles, a lei é o seu código de honra, por oposição à legislação do país.

Manter a honra é cumprir as regras.

Isso.

Ao mesmo tempo, alguns deles assumem-se como pessoas religiosas. Há mafiosos italianos, por exemplo, católicos. E os mandamentos dizem ‘não roubarás’ e ‘não matarás’. Como resolvem esta contradição?

Há uma hipocrisia na forma como usam a religião. Muitas vezes são religiosos porque é essa a tradição do país onde vivem. Mas a religião – e a Igreja -, se pensar nisso, de alguma forma também está acima da lei. Em 1860 o Estado Italiano confiscou as terras da Igreja Católica e durante muito tempo a Igreja fez oposição ao Estado. Tal como a máfia. Então houve uma aliança paradoxal de interesses, porque nenhuma delas [Igreja e máfia] reconhecia a lei do Estado. O que a Igreja diz é que não se deve matar sem um motivo, arbitrariamente, e os mafiosos também acham que só se deve matar alguém depois de uma decisão tomada de acordo com o código da máfia. Há algumas ligações naturais entre a máfia e a Igreja, mas não podemos esquecer que também houve muitas pessoas da Igreja que combateram a máfia ou que foram mortas por ela, particularmente em Itália.

Diz-nos no seu livro que as máfias apareceram quase sempre em períodos de transição social. Isso acontece porque se alimentam do caos e da falta do poder do Estado?

Sim, será qualquer coisa desse género. Mais uma vez, o que me surpreende é que as origens das máfias são muito semelhantes. Em todas as situações em que há uma transformação económica ou social maciça, temos um estado que não consegue controlar essa transformação. O que as máfias fazem é substituir-se ao Estado nessa gestão. Mas não podemos falar de um caos qualquer, trata-se de uma situação em que o Estado não é capaz de governar e a máfia aparece e governa em vez do Estado.

Providenciando segurança e proteção, por exemplo?

Exatamente. No caso de uma transição para uma economia de mercado o Estado é muito lento a adaptar-se. A máfia pode ser muito eficiente. Imagine que somos vizinhos e tivemos uma disputa por causa de uma passadeira ou porque você pôs a vedação do meu lado do jardim. Em Itália leva oito anos até se chegar a uma decisão. Se você for à máfia, em duas semanas está resolvido. Se o Estado não funciona, a máfia chega-se à frente e assume esse papel.

Falemos do caso da Rússia. Uma vez que Putin parece ter hoje um controlo total do Estado, devemos admitir que as máfias existem porque ele permite?

Sim, na Rússia o Estado recuperou muito poder desde a época em que eu lá estive, na década de 90, e reduziu o poder da máfia. E se as máfias continuam a operar na Rússia é com permissão do Estado, sobretudo de polícias corruptas. Putin, no meu entender, não é o super-ditador, porque há outros centros de poder. Ele é mais o coordenador dos centros de poder – um dos quais é a máfia.

Ele gosta também de andar de mota. Esses grupos de motards não estão ligados ao crime organizado?

Ele gosta de mostrar esse lado macho. E por vezes até usa uma linguagem semelhante à das prisões. Mas acho que é apenas para cultivar a imagem de durão.

Nos dias que correm as máfias ainda mantêm características nacionais?

Com a globalização, é muito mais fácil aos membros deslocarem-se, encontrarem-se e até colaborarem. Mas devemos ter presente que são organizações regionais, muito enraizadas no seu território, e portanto preservam características desses locais, como a Sicília, a Calábria e a Campânia, em Itália, ou a Geórgia, na antiga União Soviética.

Em Hong Kong, por exemplo, têm muito a tradição de usar facas. A forma como cada máfia mata é uma espécie de impressão digital?

Sim, é verdade. Usam a violência de forma diferente e matam de forma diferente. A razão por que isso acontece é as leis serem diferentes. Em Hong Kong há punições muito severas para o uso de armas de fogo. E no Japão ainda são piores. Se alguma pessoa da organização for apanhada com uma pistola, o chefe pode ser acusado e preso. É por isso que usam facas e até espadas. Noutros países as leis são mais permissivas e usam armas de fogo. Mas também têm diferentes formas de torturar. Conversei com uma vítima da máfia russa que foi torturada com um secador de cabelo.

Como se tortura alguém com um secador de cabelo?

Puseram-lhe o secador na boca durante um período prolongado, o que queima e destrói os pulmões.

As fontes de rendimento das máfias são hoje as mesmas do que há umas décadas, ou isso tem evoluído?

As máfias adaptam-se aos tempos e às mudanças. O que não muda é o seu controlo do território. Estão muito enraizadas numa área que controlam e dedicam-se à extorsão de negócios nessa área. Uma das grandes mudanças em relação às décadas de 60 e 70 são as drogas. Hoje as drogas são de longe a maior fonte de receita e fizeram dos chefes pessoas incrivelmente ricas. A Camorra, na Sicília, e a ‘Ndrangheta, na Calábria, controlam o negócio da distribuição em Itália. A máfia siciliana não era muito rica antes do aparecimento das drogas, e hoje é das mais ricas e poderosas. Mas todas continuam a dedicar-se aos negócios tradicionais: prostituição, jogo ilegal e construção.

E aproveitam novas oportunidades que surgem, como o tráfico de seres humanos?

Embora estejam atentos a essas oportunidades, não conseguem chegar a todo o lado. A máfia siciliana, por exemplo, não controla o que se passa na Líbia. O tráfico de seres humanos entre África e a Sicília não é feito pela máfia, é feito por traficantes líbios ou nigerianos. Mas uma vez que os imigrantes chegam a Itália, aí já os exploram, sobretudo para trabalhar nos campos.

Algo que parece comum a todas as máfias é não admitirem mulheres. É por não confiarem nelas?

Para mim é um grande enigma. As máfias, como disse, acompanharam as mudanças na sociedade. E o papel das mulheres mudou tanto desde o século XIX que se esperaria que as máfias se adaptassem, mas a verdade é que nenhuma delas aceita mulheres no ritual de iniciação. Porquê? Porque é que as mulheres são excluídas? Aparecem sempre como mulheres, filhas, mas nunca como membros de pleno direito. No livro defendo que as mulheres trazem em si a semente da perturbação da organização, que é o apego sentimental aos filhos ou ao marido. O poder do amor é mais forte do que a ordem do chefe. Julgo ser por isso que a máfia tem tanto medo das mulheres. Há muitas histórias na Sicília de as mulheres ficarem obcecadas em levar os mafiosos à justiça por matarem os seus filhos, apesar de os filhos também pertencerem à máfia. Há algo muito poderoso na ligação entre mãe e filho, ou mãe e marido, que é perigoso para a organização.

Portanto nunca houve mulheres com cargos importantes…

Oficialmente não. Nunca passaram pelo ritual de iniciação. Mas houve o caso da mulher de um chefe da máfia no Japão que ficou à frente do grupo porque não conseguiam decidir-se sobre quem deveria ser o líder. E ela, como viúva do chefe, tomou os negócios nas suas mãos – e devo dizer que durante a gestão dela as coisas correram muito bem. Mas acabaram por eleger um novo chefe e ela teve de se afastar.

Os chefes da máfia que conheceu ou estudou são pessoas que vivem sempre em stresse por causa da segurança ou têm momentos de tranquilidade como todos nós? 

Os que eu conheci tinham guarda-costas e andavam armados, mas também gostavam de festas. Para eles as festas, como casamentos ou aniversários, são muito importantes. São ocasiões em que bebem e convivem mas também são oportunidades para conhecer pessoas.

E essas festas são muito diferentes daquelas que conhecemos?

Nem por isso. A máfia ítalo-americana gosta de ir para bares à noite, os russos normalmente alugam dachas no campo, em Hong Kong gostam de ir a casinos e de jogar. Na máfia siciliana gostam de ir caçar, como a aristocracia. São seres humanos, querem divertir-se tal como as outras pessoas, e tentam de certa forma imitar os hábitos dos ricos e dos aristocratas. Na Rússia, se olhar para os túmulos dos mafiosos, são muito semelhantes aos que foram feitos no período soviético para generais ou políticos. Eles querem parecer pessoas de sucesso na sociedade mainstream, tanto nas festas como na forma como são enterrados.

Quando contactou com essas pessoas não se sentiu intimidado?

Senti, não é fácil lidar com estas pessoas. Mas normalmente construí relações longas e nunca lhes colocava questões concretas sobre as suas atividades, preferia tentar perceber como viam o mundo, não ia perguntar-lhes: ‘Quem é que matou aquele tipo ontem?’. [risos]

Tem de medir cada palavra…

Sim, tenho de ser cuidadoso. Mas basicamente tento ouvir o que me dizem. Na Colômbia, por exemplo, encontrei-me com o líder de um gang que controla um bairro. Fui a uma associação de caridade que trabalha com a comunidade, e o responsável pela associação apresentou-me a esse chefe. Foi muito simpático e cativante, demos a volta ao bairro, acho que exprimi interesse genuíno no que ele tinha para me dizer e em geral eles gostam de falar sobre a sua vida.

Tem a certeza de que o que escreveu neste livro não lhe vai trazer problemas?

Espero bem que não!

Ou tem garantias porque sabe que alguém disse: ‘Ninguém toca no Federico’?

Quando escrevi o primeiro livro sobre a máfia russa, as pessoas com quem falei disseram-me para não traduzir o livro para russo. Tento seguir essas indicações. Mas escrevo sempre a verdade e não faço autocensura. O que quero perceber é isso: como sentem o mundo, o que pensam, e eles gostam de falar sobre isso. Mas não, não tenho um grande padrinho a proteger-me.

O submundo do crime organizado e o dia-a-dia das pessoas comuns cruzam-se?

A toda a hora. Porque eles vivem connosco. Estas pessoas não são diferentes de nós. Fazem parte da nossa sociedade, usam Skype, Whatsapp, seria errado fazer deles uns aliens ou pessoas à parte. Vão ao banco, vão ao restaurante, fazem as mesmas coisas que nós.

Mas há a ideia de que se movimentam em circuitos restritos, por causa da segurança.

Mas também vivem nos mesmos bairros, frequentam as mesmas lojas – claro que isso depende de onde vivermos. Se você viver num bairro de Nápoles, pode não se cruzar com o chefe, mas certamente vai cruzar-se com a família dele. Quando há uma guerra, aí sim, eles protegem-se muito e vivem escondidos.

Alguma vez visitou a casa de um mafioso?

Sim, quer dizer, algumas das casas foram confiscadas pelo Estado Italiano, por isso já não lhes pertencem. São usadas para oficinas ou atividades sociais e podem ser visitadas. São casas muito grandiosas, à saída de Nápoles, como as que se vê em filmes como o Scarface.

Qual é o melhor filme para termos um vislumbre do mundo da máfia?

Os filmes de Martin Scorsese sobre a máfia ítalo-americana [como Tudo Bons Rapazes] são muito bons e fazem um retrato rigoroso. E há filmes de produtores independentes no Japão também muito bons. Depende do país.

Fala sempre com grande tranquilidade. Nunca viveu uma situação de perigo ou de tensão enquanto investigava neste meio?

Uma vez no México, em Ciudad Juárez, perto da fronteira com os EUA, houve um grande massacre a poucas centenas de metros do sítio onde eu estava. Fiquei assustado e stressado. Ciudad Juárez é uma das cidades do mundo com maior taxa de homicídios. Sim, isso foi chocante. Embora tenhamos falado de outras máfias, a maior violência hoje está no México. Desde 2006 morreram, penso eu, 200 mil pessoas nas guerras da droga.

Sente-se esse perigo nas ruas?

Sim, é muito perigoso. E a violência pode tocar a qualquer um.