Como David Neeleman conseguiu comprar a TAP sem investir um cêntimo

Empresário David Neeleman conseguiu ‘prémio’ da Airbus de cerca de 70 milhões de euros com a troca da encomenda feita pela TAP pública, de aparelhos A350, pelos novos modelos A320 e A330. Foi esse montante que usou como investimento privado no processo de compra, em 2015.

Como David Neeleman conseguiu comprar a TAP sem investir um cêntimo

Numa espécie de golpe de magia, David Neeleman conseguiu que a empresa Airbus avançasse em 2015 com uma parcela que viria a ser relevante na compra da TAP – no âmbito do processo de privatização lançado e concluído nos executivos de Pedro Passos Coelho. Na prática, com a troca da encomenda de 12 aviões A350, cujo valor da pré-encomenda já tinha sido pago pela companhia portuguesa,  por outra de meia centena de aviões dos modelos A320 neo e A330 neo foi possível encaixar cerca de 70 milhões de euros. Este ‘prémio’ dado pela Airbus contou como investimento privado, ou seja, o mesmo será dizer que Neeleman fez omeletes com ovos que já pertenciam à transportadora aérea nacional. Fonte próxima do processo explica que, na altura, tal situação ainda chegou a ser questionada dentro do Executivo, mas que dada a situação limite ou era isso ou a TAP poderia perder tudo, uma vez que já tinha falhado pagamentos relativos à pré-encomenda e o Estado português não tinha o mesmo poder negocial que o empresário brasileiro. Uma outra fonte acrescenta ainda que, mesmo que o Estado tivesse poder negocial e quisesse fazer por si esta troca de encomendas, arrecadando para a TAP um prémio generoso, depois não teria como arranjar tripulantes para tantos aviões.

Contactada ontem, a TAP disse não poder «comentar os investimentos realizados pelos  seus acionistas na privatização mas que evidentemente são do conhecimento do Governo Português e da Parpública» e adiantou que tais investimentos já foram «explicados na última decisão do Tribunal de Contas».

«Dito isto, a TAP pode confirmar  que nunca chegou a adquirir os aviões A350 nem recebeu qualquer compensação da Airbus por vendas que não poderiam ter sido realizadas», continua a transportadora aérea.

 Ao que o SOLapurou, na proposta inicial de David Neeleman já estava a claro que a sua intenção era fazer a troca das aeronaves, tendo mais tarde, quando tudo estava a ser ultimado, o Estado feito algumas diligências para perceber se a Airbus estava mesmo disponível para fazer tal negócios, como confirmou junto da banca e de outros operadores. O dinheiro avançado terá sido uma espécie de pagamento por custo de oportunidade, dado que a Airbus teria clientes para os A350 que iriam pagar mais do que o valor pelo qual a TAP tinha opção de compra – o SOL não conseguiu apurar se Neeleman teve ou não alguma intervenção na angariação dos clientes para os A350. Mas clientes existiam e, além disso, o gigante internacional não deixava de vender à TAP aeronaves, neste caso os modelos novos,  que não tinham tanta procura, até porque vieram ainda em fase de teste.

Todos ganhavam com os recursos da companhia pública e a parte que Neeleman ganhava entrou na TAP como investimento privado, num negócio em que a Atlantic Gateway – de David Neeleman, dono da companhia aérea brasileira Azul, e de Humberto Pedrosa, o patrão do Grupo Barraqueiro – pagou 354 milhões por 61% da empresa (dos quais só 10 milhões foram parar ao Estado). 

Neeleman diz que não tirou ‘nada da TAP’

Em janeiro de 2016, numa entrevista à Visão, Neeleman explicava assim a venda dos Airbus 350: «O que eu fiz foi ir à Airbus e dizer que não queria os A350, porque não faziam falta à TAP. Mas queria os A330 e os A321 LR (Longo Alcance) porque são mais rentáveis. A TAP pode, com os A321 LR, voar para Toronto, Boston, Nova Iorque e até Chicago, com custos mais baixos» .

Questionado diretamente sobre se tinha tido algum ganho com a venda dos slots dos A350, a resposta foi: «Eu não tirei nada da TAP. Estou a trazer este valor todo e não posso tirar um cêntimo enquanto a dívida bancária da TAP não estiver toda paga. Esse é o contrato que tenho de cumprir».

Questionada ontem pelo SOL, a Atlantic Gateway garantiu que tudo o que foi contratualizado está a ser cumprido: «Todas as obrigações de capitalização da TAP que resultaram do processo de privatização foram totalmente  cumpridas por um lado por David Neeleman e Humberto Pedrosa através da  Atlantic Gateway e por outro, pela Azul e Parpública  através da subscrição do empréstimo obrigacionista. Todas as obrigações de capitalização foram cumpridas como foi já expressamente reconhecido pelo Governo português, Parpública e pelo Tribunal de Contas».

O consórcio também defendeu que «os montantes realizados na capitalização foram amplamente divulgados aquando da privatização».

E, afinal, quem teve responsabilidades? Só Pires de Lima

Apesar de ter liderado praticamente todo o processo, o ex-secretário de Estado Sérgio Monteiro, contactado ontem pelo SOL, empurrou todas as responsabilidades para o Executivo de 20 dias que fechou a venda as responsabilidades: «Não conheço, não acompanhei os termos finais da operação e portanto não tenho como fazer comentário quanto a esse ponto específico. Eu acho que não há forma de não haver investimentos, até porque as obrigações de investimento, presumo eu, ficaram contratualizadas».

Por outro lado, o ex-ministro da Economia António Pires de Lima tem outra atitude, falando até numa salvação da companhia aérea: «Assumo a responsabilidade da privatização da TAP em 2015. Era um objetivo e uma necessidade reconhecidos há mais de 20 anos. Salvou-se a companhia».

Miguel Pinto Luz – que, no Executivo que esteve em funções menos de um mês, no final de 2015, ocupou o cargo de secretário de Estado das Infraestruturas – disse apenas não querer fazer qualquer comentário, alegando que não conseguiria consultar documentação da altura.

O atual Executivo decidiu recuperar o controlo estratégico da empresa, passando a deter 50%, ganhando obviamente com isso responsabilidades extra. Esta recompra foi considerada pelo Tribunal de Contas «regular» e «eficaz», ainda que não tenha conduzido «ao resultado mais eficiente»: «Não foi obtido o consenso necessário entre os decisores públicos, tendo as sucessivas alterações contratuais agravado as responsabilidades do Estado e aumentado a sua exposição às contingências adversas da empresa».

Questionados ontem sobre o negócio feito com a Airbus, nem o Ministério das Infraestruturas, tutelado por Pedro Nuno Santos, nem a Parpública responderam até à hora de fecho desta edição.