«Somos todos estrangeiros»

Esta frase, que cruzou o meu caminho no Porto e diz «Somos todos estrangeiros», ganhou um significado mais óbvio e mais sentido ao visitar Auschwitz. Aqui, ao revisitar o horror do Holocausto, na angústia que cala fundo e faz suster a respiração, perguntamo-nos qual o sentido de um campo de concentração, criado inicialmente para alojar…

Como sabemos, a ideologia nazi assentava na crença na superioridade da raça alemã sobre todos os outros povos e no ódio às «raças inferiores», aquelas que eram consideradas «Lebensunwertes Leben», ou seja, que tinham uma «vida indigna de viver» – os judeus mas, também, os ciganos, os prisioneiros de guerra, os resistentes polacos e os homossexuais.

Disse Hitler, em 1937, durante um congresso do partido nazi, em Nuremberga: «Vai formar-se uma juventude que fará tremer o mundo inteiro. Uma juventude violenta, poderosa, destemida, feroz, é isso que quero…». É isso que queria e foi isso que conseguiu.

Assusta muito pensar que, por vezes, não estamos assim tão distantes desta realidade e que, no fundo, o Homem pouco aprendeu. Diz Clara Ferreira Alves: «Há anos que criámos os novos campos de concentração, onde concentrámos os africanos, que vieram antes dos sírios e afegãos e iraquianos, e ninguém se comoveu. Os cadáveres nas praias de Tarifa, os condenados a morrer no deserto, recambiados, não provocaram uma lágrima. A crise destas migrações existe há anos e é preciso perceber que os migrantes que agora nos comovem em Budapeste são os que tiveram sorte, dinheiro e iniciativa para chegarem aqui. Para trás ficaram os condenados à morte, as vítimas de conflitos que ajudámos a provocar e das “primaveras” árabes que o jornalismo e as correntes sociais promoveram com sentimento». E acrescenta: «Uma integração séria custará biliões. É, de longe, o problema mais grave da Europa, acumulado com a anemia económica e com a condenação da população jovem a migrar dos países europeus em austeridade. Bater no coração e proclamar o amor ao próximo nada resolve na frente da batalha. É a retaguarda imoral da piedade virtual».

Há hoje cerca de 70 milhões de «pessoas deslocadas», o que, como diz a mesma autora é um «título menos drástico do que migrantes, refugiados, imigrantes, vadios, nómadas, apátridas e vagabundos».

Como fenómeno, a migração ou movimentação geográfica da população foi sempre uma realidade na história da humanidade, desde a migração forçada de milhares de negros trazidos de África para o trabalho escravo no contexto da colonização, passando pela própria Família de Nazaré, que, pouco tempo depois do nascimento de Jesus, foi obrigada a partir de noite para o Egito para fugir da perseguição do rei Herodes, até à própria movimentação natural do Homem nos tempos em que toda a humanidade era nómada.

E, assim, no fundo, podemos concluir que todos somos migrantes, porque todos somos descendentes de nómadas. É, pois, difícil entender a reação contra imigrantes, contra outros povos, contra outras raças; no fundo, a reacção contra outros iguais a nós; em última instância, a reacção contra nós próprios.

Diz Esther Mucznik que «contra a desumanização nazi, é fundamental humanizar as vítimas», que «mais do que mostrar como morreram, importa contar como viveram». E importa lembrar os muitos milhões que perderam a vida nos campos de concentração nazis e, também, relembrar os que, felizmente, sobreviveram, personalizando-os nas figuras notáveis que todos conhecemos: Anne Frank, Edith Stein, Elie Wiesel, Imre Kertész, Maximiliano Kolbe, Primo Levi, Simone Weil e Viktor Frankl.

Porque, como diz Alberto Caeiro, infelizmente, «Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda, / E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho». Aceitamos a injustiça, a indignidade, a crueldade como algo natural e não como algo que deve ser alterado, sem nos questionarmos como é humanamente possível o homem ser tão desumano. Daí que, como disse José Manuel Fernandes num artigo, talvez «todos os europeus devessem ir pelo menos uma vez a Auschwitz. Pelo menos uma vez».

Neste local, memória das maiores atrocidades de que o ser humano é capaz, senti vontade de fazer como Tolentino Mendonça e deitar-me no chão, sentindo o momento, absorvendo a energia do local, deixando-me levar pelas emoções e chorar, chorar até as lágrimas naturalmente secarem.

O mundo é tão contraditório. E, no fundo, são as diversas contradições do mundo – e de nós próprios – que nos fazem viver.