Francisco Ramos: ‘Faz sentido um seguro público complementar’

«Há muita coisa para correr bem, mas não se vai resolver tudo nos próximos quatro anos», avisa Francisco Ramos. O secretário de Estado da Saúde defende que é a altura de discutir se um seguro complementar público não poderia ajudar a diminuir os gastos das famílias naquilo a que o SNS não garante resposta, regulando…

A revisão da Lei de Bases da Saúde é mais uma vitória política, da ‘geringonça’, ou uma vitória para os utentes do SNS?

Espero que venha a ser útil e positiva para os portugueses. As leis são um pouco como os melões: é preciso abrir e ver se funcionam de facto conforme as expectativas. É sem dúvida uma vitória política para Marta Temido, que se empenhou fortemente na elaboração da lei e na negociação. Naturalmente também do primeiro-ministro, mas em especial dela, por ter conseguido fazer as pontes suficientes para que PCP, BE e PS aprovem um texto e os três reclamando-se confortáveis com o texto aprovado.

O Ministério tem mantido a ideia de que as atuais parcerias público-privadas (PPPs) poderão ser renovadas em função da avaliação, sendo que os partidos à esquerda se bateram pelo fim deste modelo. Como é possível estarem confortáveis?

A lei compromete-se a revogar a atual legislação específica sobre PPPs sem fechar portas em relação às atuais.

Não há mais PPPs em cima da mesa: antes de rever a lei o Governo já tinha anunciado que o novo Hospital de Lisboa Oriental teria gestão pública. Se as atuais poderão manter-se, o que mudou?

As PPPs, e tenho alguma corresponsabilidade no seu aparecimento, nos trabalhos preparatórios feitos há quase 20 anos, visaram essencialmente responder a duas situações. Uma era o financiamento do investimento.

O Estado não ter capacidade de investir na construção de hospitais.

Com as atuais taxas de juro, não há nenhuma boa razão, antes pelo contrário, para o Estado recorrer preferencialmente a financiamento de um privado para o fazer.

Já nesta legislatura foi lançado o concurso para construção do Hospital de Lisboa Oriental em PPP.

Numa altura específica, depois de restrição do investimento público. E se for ver a evolução dos juros, é uma evolução que hoje sim, em 2019, conduziu a juros muito baixos. Mas além da questão do financiamento, as PPPs visavam responder sobretudo a uma questão de gestão. Há 20 anos havia a expectativa de que a gestão privada em hospitais públicos viria renovar o panorama da gestão hospitalar. Dez anos depois de parcerias, elas funcionaram bem, todos os relatórios apontam que cumpriram o seu objetivo…

Pouparam dinheiro ao Estado: o relatório da UTAP estimou uma poupança de 56 ME em Vila Franca. 

Sim, os hospitais fizeram o seu serviço, o erário público poupou algum dinheiro, mas, do ponto de vista de técnicas de gestão, não resultou evidente nenhuma novidade. O que essas entidades fizeram foi recrutar alguns dos melhores administradores dos hospitais públicos e, portanto, naturalmente tiveram um nível de gestão bastante razoável. Esta é a minha desilusão pessoal em relação às PPP.

O que esperava ter visto?

Temos problemas de estrangulamento do internamento em determinadas épocas do ano, somos surpreendidos todos os anos no Natal, no verão, com picos de afluência. Para minha surpresa, esses picos de afluência aconteceram também nesses hospitais.

Isso não dependerá da rede envolvente, dos centros de saúde?

Há 20 anos era algo apontado como ineficiência da gestão hospitalar. Desenvolver a gestão hospitalar não é comprar um produto mais barato do que o produto do lado, isso é logística. Não vi nenhuma nova técnica, nenhum novo modelo de gestão. E, portanto, neste momento, acho que as PPP cumpriram bem o objetivo de o Estado poupar dinheiro, e isso é importante, falharam por completo no objetivo de trazer novidade à gestão hospitalar.

Não se vão renovar PPP só pelo critério de poupar dinheiro?

Podem renovar-se, nas atuais, conforme for a decisão. Neste momento está em curso um novo concurso para Cascais.

Ainda vai ser lançado esta legislatura, como estava previsto?

Este ano ainda, não sei se esta legislatura.

O Governo não desistiu da ideia de lançar este concurso com a revisão da Lei de Bases? Em relação a Vila Franca remeteu a decisão para a próxima legislatura.

Mas em Cascais  o processo estava já em curso e a preparação está praticamente feita. Em Braga sabemos porque é que houve a reversão: a primeira decisão deste Governo foi lançar um novo concurso, o parceiro privado não quis fazer uma renovação por dois, três anos – de forma a que desse tempo para preparar esse concurso – pelo que não havia alternativa se não instalar a gestão pública. Em relação a Vila Franca, o Estado decidiu não renovar automaticamente: é preciso aumentar a capacidade, o que justifica que não se renove o contrato. Como nos casos anteriores, convidou-se o parceiro privado a uma renovação contingencial por dois a três anos e o prazo termina em novembro. Se o parceiro voltar a dizer que não, é óbvia a reversão para a esfera pública. Se o parceiro disser que sim, então o Estado, e aí já não este Governo, pode decidir.

Ficou claro no acordo com os parceiros à esquerda para rever a lei de bases da saúde que seria lançado o concurso de Cascais?  

É público que a decisão deste Governo foi lançar um novo concurso para Cascais, suponho que não há sobre isso qualquer dúvida.

Quando diz que a gestão privada não resolveu os picos de procura, o problema não pode estar no facto de a envolvente não ter sido suficientemente desenvolvida?

Se houve coisa que foi desenvolvida nos últimos dez anos foi a envolvente. A rede de cuidados de saúde primários, com 500 Unidades de Saúde Familiar, com mais portugueses com médico de família, com meios de diagnóstico em muitos locais, agora com saúde oral, muitos agrupamentos de centros de saúde com psicólogos. E a rede de cuidados continuados há 12 anos não existia. Hoje é insuficiente, é verdade, mas não existia. Não há nenhuma razão para que a insuficiência da envolvente justifique o que se passa. A rede de cuidados primários está a ser qualificada, provavelmente mais devagar do que gostaríamos, mas está. Hoje queixamo-nos de que só temos 10 mil camas de cuidados continuados, mas há dez anos tínhamos zero. Claro que já queríamos ter as 15 ou 16 mil que estimadas como necessárias, mas há dez anos não havia nenhuma. Em termos de funcionamento dos hospitais, de facto, estamos basicamente na mesma. Não estou a culpar ninguém, mas o efeito das parcerias a esse nível foi modesto. Fizeram bem o seu trabalho, mas não contagiaram de forma nenhuma a gestão hospitalar.

 

E tiveram efeitos negativos, como acusam os partidos à esquerda?

Eu não identifico efeitos negativos. Ainda esta semana ouvi que pode haver alguma promiscuidade e alguma seleção de casuística entre o hospital público gerido pelo privado e o respetivo hospital privado, mas isso é algo que provavelmente se passa na generalidade dos hospitais públicos com gestão pública, que é o apoio à atividade privada dos profissionais que trabalham no hospital.

É problema que é preciso resolver?

É um defeito claramente, que prejudica a produtividade dos hospitais públicos. Mas isso é a velha questão de não termos a dedicação plena dos profissionais, não necessariamente exclusiva, mas plena. Penso que essa é uma discussão que havemos de ter um dia. Acho que já aprendemos o suficiente para perceber que a dedicação exclusiva, pelo menos como a que tivemos no passado, poucos benefícios trouxe. Outra coisa é termos um modelo de trabalho que promova a dedicação plena.

Qual é a diferença?

Uma coisa é eu dizer a um médico ‘pago-te o dobro e só trabalhas para mim’. Aquilo que na minha opinião vale a pena é, aos médicos que querem trabalhar bem, garantir condições de trabalho e remuneração que os satisfaça e os leve a trabalhar só no público.

Não é suposto trabalharem todos bem?

Não conheço nenhuma profissão que  tenha uma distribuição gaussiana dos seus participantes. Há alguns muito bons, há alguns muito maus e a enorme maioria trabalha de acordo com os incentivos que tem. Se tiver incentivos inteligentes, trabalhará bem, de acordo com os objetivos do sistema. Se tiver incentivos para não trabalhar bem, a tendência natural do grosso dos profissionais será acomodar-se.

São esses incentivos que o Governo quer estudar num grupo de trabalho sobre exclusividade?

É isso que faz sentido estudar. Estamos a falar de mudar um paradigma com muitas dezenas de anos. A origem de tudo isto é o modelo pré-25 de Abril, das caixas de previdência, das Misericórdias. Claramente nessa altura os médicos eram muito mal pagos pelos hospitais oficiais, o que criou um sistema em que os médicos ajudam nos serviços oficiais e ganham dinheiro na privada. Passados 40 anos da criação do SNS, ainda não conseguimos ultrapassar esse problema de assumir que o trabalho a tempo inteiro, com dedicação plena, tem de ser bem remunerado. Dito isto, não acredito que o SNS consiga competir com valores salariais de um grande hospital privado.

Que perceção tem dos valores? 

O privado até pode eventualmente fazer como o Atlético de Madrid e oferecer 120 milhões de euros a um profissional que seja uma estrela no panorama nacional. O serviço público tem outras obrigações e nunca terá capacidade para o fazer. Agora o que o serviço público tem capacidade para fazer é oferecer o melhor ambiente de trabalho, a melhor tecnologia, as melhores oportunidades de trabalho, o melhor conjunto de instrumentos para que o profissional se sinta realizado.

Seriam incentivos em função da produtividade?

É uma matéria que merece ser trabalhada, há condições de partida muito boas, por os hospitais serem EPE, por termos muitos anos de remuneração pelo SIGIC em função da produtividade e pelo desempenho no caso dos incentivos nos cuidados de saúde primários. Já temos experiência.

A exclusividade como opção para qualquer médico não vai acontecer? 

Não sei, pode acontecer. Estas matérias têm de resultar de um consenso entre quem está no Governo, a maioria na AR, os profissionais, os sindicatos. Há hoje um consenso de que é preciso encontrar um caminho para fixar os profissionais e dar condições aos profissionais no SNS. Eu tenho a minha opinião. E se temos coisas boas como ponto de partida, também há pontos negativos, um certo ambiente de contestação e de indignação face à evolução do SNS que precisa de ser ultrapassado.

A ministra da Saúde falou de uma estratégia de terra queimada, que cria desconfiança. Não há razões para as críticas?

O mundo não é preto e branco. Durante a crise económica, tivemos quatro ou cinco anos em que houve um destruir do valor do SNS. Nestes quatro anos houve uma recuperação mas essencialmente com os custos com pessoal e na despesa com medicamentos. Este aumento de financiamento do SNS que, chegou em 2019 aos 1400 milhões de euros, permitiu essas duas coisas. E mesmo nos próximos quatro, mesmo num cenário em que as dotações do SNS cresçam como cresceram este ano, com mais 600 milhões de euros, não será possível. E é um aumento muito significativo de financiamento. Estamos a falar de um aumento de 7%, é mais do triplo da inflação. Nos próximos anos, aquilo que vai ser possível recuperar é a capacidade para responder ao natural aumento de procura que já vai ser de doze anos acumulados. Oito anos passados – quatro da troika, quatro desta legislatura – e quatro da próxima. Não vai haver aumento líquido da capacidade do SNS. Ou seja, daqui a quatro anos de certeza que vamos continuar a queixar-nos de que o SNS tem limitações. O que aconteceu entretanto objetivamente foi um pouco naquela lógica chinesa de que nas crises nascem oportunidades. Os grupos privados aproveitaram a oportunidade de não investimento do setor público para se desenvolverem e florescerem. O que cria uma situação nova e complicada de gestão do SNS.

Tem-se falado da sangria de profissionais para o privado. Esse movimento não pode também ajudar a retirar pressão do SNS?

Da minha experiência, é mais o que desajuda do que o que ajuda, pela questão da disponibilidade de recursos humanos e pela seleção de casuística. Quando as situações de doença são sérias lá está o serviço público a responder, ou então, sendo sérias ou não, quando acaba o plafond do seguro.  

Voltando ao melão e às expectativas. Os partidos à esquerda defendem um reforço do Estado, menos dependência de privados para exames, análises. É possível?

Possível é, não sei se é útil. Em vez de estar a pagar análises e meios complementares aos privados, instalar serviços próprios, é fazível. Sai mais caro, mais barato, não sei. Faz-se nos próximos quatro anos? Não faz. E duvido que seja possível manter um ritmo de crescimento da dotação do SNS de 600 ME a longo prazo.

Mas para já, para o próximo ano, ganhando o PS eleições, haveria esse compromisso?

O que está no PEC são 300 e poucos milhões. Neste momento o que posso dizer é que o secretário de Estado da Saúde espera que seja possível pôr lá 600 ME, o dobro do que está no PEC.

Espera mas já pediu?

Sei como o pedir. Sem mexer nos agregados no PEC, aliás propu-lo no Orçamento do ano passado, antes de estar no Governo, há uma forma que é reduzir as deduções fiscais com despesas de saúde em sede de IRS de 15% para 5% e temos imediatamente mais 300 ME que podem ser acrescentados a custo zero no orçamento do SNS.

Aí aumenta o indicador da despesa direta das famílias.

São opções.

Já somos dos países europeus com maior peso destes pagamentos do próprio bolso na Saúde. É normal?

Não é normal e podemos falar disso. Mas em termos de financiamento, acho que é possível desta forma chegar aos 600 ME e fazer crescer o SNS. Mas mesmo assim: é possível ter a expectativa de que tudo se vai resolver nos próximos quatro anos? Tenho a máxima das dúvidas. Quando falo das expectativas em torno da lei de bases é sobre as questões em que vai ser preciso haver regulamentação. Uma das coisas sobre a qual tenho alguma expectativa é que, pela primeira vez, a lei prevê uma regulamentação do modelo financiamento da Saúde. Da mesma forma que hoje temos um modelo claro e transparente de financiamento da Segurança Social, talvez se possa construir um modelo de financiamento para o SNS. Hoje como é definido o financiamento? Através de uma discussão entre o ministro da Saúde e o das Finanças. Conforme o peso político de cada um, assim o número é mais ou menos gordinho. Vale a pena encontrar um método objetivo de financiar o SNS, seja pelas pessoas, seja por níveis de doença.

Algum dos Ministérios vai ter de perder dinheiro.

Isso é inevitável.

Aí volta a entrar o peso político?

Exatamente. Pelo menos esse peso político aparentemente já fez o seu percurso na Lei de Bases da Saúde. A menos que toda a gente estivesse distraída, porque o artigo está na lei, que diz que a lei define objetivos critérios objetivos e quantificáveis para o financiamento do SNS. 

A relação Saúde/Finanças dominou a legislatura, com a ideia de que o Ministério está refém. Está?

Essa não é a minha visão. Em termos de governação do aparelho público, das empresas públicas, vale a pena habituarmo-nos a que as Finanças vão continuar a ter um papel importante. É uma consequência da crise, das mudanças que foram introduzidas na primeira metade desta década. Enquanto quisermos estar no espaço que estamos do euro, temos obrigações a cumprir. Uma dessas obrigações implica que o Ministério das Finanças tem uma palavra a dizer sobre o que se passa nos serviços públicos.

Mas nada nos obriga ao excedente orçamental.

Não obriga nem desobriga, mas essa também não é uma questão. Chegaremos se calhar este ano a um excedente orçamental com um aumento do financiamento para o SNS que mais do triplo do aumento da inflação.

Havendo mais dinheiro, podia investir-se mais rapidamente.

Mas aí temos de discutir qual será o valor ideal para que a saúde funcione bem. 6% do PIB? São 12 mil milhões de euros, um acréscimo de 3 mil milhões em relação à dotação que o SNS tem hoje.

Sem ir tão longe, o Governo pediu no início da legislatura um levantamento aos hospitais dos investimentos necessários. De mi milhões de euros pedidos, disse que 500 ME são prioritários, e mesmo esses não é certo quando serão investidos.

O Governo fez esse levantamento mas tomou como prioridade voltar a remunerar melhor os profissionais, reduzir o horário para as 35 horas.  

Foi a prioridade certa?

Não me pronuncio. Significou que os acréscimos de financiamento foram sobretudo utilizados para pagar melhor os profissionais e contratar mais profissionais sobretudo para compensar o regresso às 35 horas. Era um direito legítimo das pessoas a que o Governo naturalmente acedeu.

O PM e o ministro das Finanças dizem que não há cativações no SNS, mas há pedidos de contratação pendentes vários meses. Inclusive na nova ala de transplantes de medula do IPO de Lisboa, que dirigia antes de ir para o  Governo.  

Isso não é uma cativação, é uma exigência de uma justificação à prova de bala.

Mas tem lógica um hospital esperar nove meses, um ano, por uma autorização  para contratar um médico, um enfermeiro?

Na minha opinião não tem lógica um hospital esperar cinco minutos, nem dez meses. Mas aí estou longe de estar muito acompanhado. Para mim o que faz sentido é a decisão estar nos hospitais e não no Governo e defendo-o há muito tempo. Continuo a fazê-lo com aquele projeto que lançámos no sentido de devolver autonomia aos hospitais, que, mais uma vez, está a correr bastante mais devagar do que eu estava à espera.

Anunciou um projeto em 11 hospitais que iriam recuperar autonomia. A última informação que tenho é que só foi assinado um contrato com um hospital.

E mantém-se assim. Há um despacho assinado por mim e pelo secretário de Estado do Tesouro que define todo o processo mas só foi possível assinar o contrato do Hospital da Figueira da Foz.

A demora neste regresso à autonomia não passa um atestado de incompetência aos administradores?

Passa um atestado de desconfiança praticamente a todos nós. Mal ou bem, quando a prioridade foi apertar a despesa custasse o que custasse, centralizou-se decisões. Este Governo não arrepiou caminho em relação a esta matéria. E agora o regresso a autonomia exige confiança e condições de monitorização e acompanhamento que estão a ser instaladas. Espero que rapidamente.

Foi a legislatura com o maior número de greves na Saúde.

Quer dizer pouco. Acho que para a história ficará que os portugueses tiveram um comportamento estoico entre 2011 e 2014, no auge da crise. Estivemos disponíveis para tudo. Vimos ordenados reduzidos, as pessoas perderam direitos, pessoas passar das 35 horas para as 40 horas com o mesmo vencimento e tudo continuou a funcionar. As pessoas criaram uma expectativa de recuperar direitos e ter direitos acrescidos. O horário passou de 35 para 40, as pessoas refilaram mas fizeram. Passa-se de 40 para 35 horas e tivemos greves fortíssimas.

Houve um excessivo otimismo do Governo no início da legislatura?

Houve provavelmente uma deficiente gestão das expectativas. Não sou capaz de identificar declarações demasiado otimistas.

Os enfermeiros costumam lembrar um vídeo que António Costa lhes dirigiu na campanha. Houve a promessa do médico de família para todos os portugueses.

Se quiser, exatamente por isso estou a tentar prevenir quando digo que nos próximos quatro anos há muita coisa para correr bem, mas não se vai resolver tudo. 

Numa entrevista ao SOL, Constantino Sakellarides defendeu que falta estratégia, passa-se as legislaturas a tapar buracos. Concorda?

É verdade que há um défice de capacidade de planeamento no Ministério da Saúde. Agora os principais problemas de falta de acordo são os partidos políticos? Não. Os principais problemas são ainda resquícios do corporativismo de antes do 25 de Abril, nunca resolvidos na Saúde. O poder das profissões, médicos, enfermagem, o poder da industria farmacêutica, o poder das farmácias, essas visões parcelares dos interesses da Saúde que para mais se reivindicam de fiéis intérpretes dos interesses dos doentes, o que é completamente mentira. Se alguém tem legitimidade para reivindicar o interesse dos cidadãos é o Governo, a Assembleia da República ou os municípios, não são de certeza absoluta as corporações.

Têm-no feito bem? Não é quando o SNS falha que as ordens ocupam esse espaço?

Sobretudo quando a oposição falha há por vezes alguns bastonários que se sentem tentados a ocupar o lugar do líder de oposição.

É um comentário para o bastonário dos médicos e para a bastonária dos enfermeiros?

É um comentário para aqueles que tentam ocupar esse espaço.

Mas é factual que há tempos de espera elevados, que há admissões nas urgências encerradas por falta de médicos.

Certo, o que eu não consigo perceber é que o principal papel dos representantes das profissões seja fazer essas denuncias. Acho que é curto. E, no fim do dia, para além de reivindicar mais dinheiro, o que temos? Veja-se a chamada a Convenção Nacional da Saúde, que juntou todas as corporações deste país com interesse na saúde. O que é que saiu daí? É preciso mais dinheiro. Ainda por cima mais 1200 ME. Na prática já foram postos mais 1400 milhões. Resolveu-se alguma coisa? Não. Se se pusesse hoje 1200 milhões, ficava tudo na mesma, provavelmente tirando os problemas dos tesoureiros dos fornecedores que teriam a sua dívida resolvida. 

Como é que se resolve o resto? Está-se sempre a falar dessa reforma de fundo que nunca acontece.

Vai ter de ser construída, vamos ter de adaptar o sistema a novas realidades, ao envelhecimento e doenças crónicas. A última vez que tivemos experiências de mudança significativa resultaram no despedimento do ministro Correia de Campos. Criaram-se as USF, cuidados continuados, a exigência de uma garantia de qualidade para as maternidades, daqueles SAP que funcionavam à noite e para onde as pessoas eram levadas para depois serem encaminhadas para as urgências, reformulação da rede de emergência, criação de ambulâncias medicalizadas. Enquanto o ministro estava em funções, todos os dias havia partos em ambulâncias. Saiu e por um golpe de mágica deixou de haver partos em ambulâncias. Foi a última experiência que tivemos de um ministro que quis modernizar o SNS. Teremos de voltar a tentar e ter uma estratégia capaz de vencer os interesses das corporações.

Começam a vir a público propostas para as Legislativas. Como vê a proposta do CDS de alargar a ADSE a todos os trabalhadores do privado?

Acho que vale a pena ser discutido haver eventualmente um seguro complementar público. É um modelo que começa a ser usual na Europa. O caso francês é paradigmático. 85% dos franceses têm um seguro complementar para além do seguro social. É a questão que dizia há pouco: Portugal é dos países onde as pessoas pagam mais cuidados de saúde do próprio bolso. Pagam mais em quê? Medicamentos, consultas de especialidade que não Medicina Geral e Familiar, próteses, saúde oral e aparelhos auditivos. Há duas hipóteses de olhar para isto: o SNS tem de resolver tudo ou eventualmente pensar num seguro complementar que ofereça principalmente este tipo de cuidados. Acesso à saúde oral, cobertura adicional nos medicamentos, óculos, próteses.

E as pessoas pagariam para ter este tipo de seguro e poderiam ir ao privado nesses casos?

Sim.

E quem não tem rendimentos? Os 60% de isentos do SNS, teriam esse seguro suportado pelo Estado?

Tem de ser estudado. A questão é: vamos mantermo-nos fixados numa lógica em que o SNS tem de dar tudo e o que não dá fica para os seguros privados e para os gastos das família do próprio bolso? Ficamos com a situação atual em que um terço dos gastos em saúde em Portugal são suportados pelas famílias, seja em seguros ou gastos diretos e estamos a falar de 6 mil milhões de euros por ano, o que é muito dinheiro, num mercado desregulado e selvagem. Ou então podemos tentar regular esse mercado através de um seguro complementar. Hoje os seguros que temos reproduzem o que o SNS oferece, a própria ADSE é redundante. Em termos de políticas públicas de Saúde, acho que valeria a pena pensarmos em seguros realmente complementares ao SNS, que pudessem tornar mais justo o acesso. O que me parece prioridade em termos de alargar a cobertura pública é para as áreas em que as pessoas mais gastam dinheiro do próprio bolso.

Mas isso é diferente de alargar a ADSE a todos os trabalhadores.

A ADSE neste caso podia ser o veículo. 

É possível alargar a cobertura da ADSE a todos os portugueses?

Acho um caminho mais difícil, até porque os próprios beneficiários naturalmente não querem partilhar esse benefício. 

Está concluída a discussão pública de novas orientações metodológicas para estudos de avaliação económica de medicamentos. O que se pretende com esta revisão? 

Foram estabelecidas há 20 anos regras para o estudo de avaliação económica. Parte deste trabalho é pura e simplesmente uma atualização. Estamos a falar da fase em que os medicamentos são avaliados a nível nacional: depois de entrarem no mercado, faz-se uma avaliação para ver se são ou não melhores do que os que existem atualmente, mais eficientes do ponto de vista terapêutico. Segue-se uma avaliação económica, que vai informar as negociações com as farmacêuticas. É aqui que estamos a intervir. Há 20 anos, incluiu-se na equação o contributo para a sociedade, mas constata-se que é difícil de medir. Agora o que está proposto é passar a ter a perspetiva do custo para o SNS, torna mais apertado a contabilização dos benefícios que entram na análise e vai dar meios ao Infarmed para negociar preços mais baixos.

Não vai diminuir o acesso a inovação?   

Não. O que se está a alterar é que até aqui, por exemplo, a farmacêutica estimava os dias que se iam poupar em termos de absentismo. Isto deixa de contar, é um beneficio para a Segurança Social, não é um benefício para o SNS.

Faz sentido compartimentalizar a análise dessa forma?

Não se pode deixar de olhar para os constrangimentos orçamentais de quem adquire a medicação e temos de ter um processo mais objetivo. Hoje a avaliação farmaco-económica funciona mais como justificativo das empresas para conseguir preços altos do que como instrumento da administração pública para conseguir valores mais eficientes. 

O caso de Matilde trouxe para a esfera pública o debate sobre os custos da inovação.  

Parece-me que temos de caminhar para uma maior transparência na fixação de preços. Já propusemos que, no âmbito da próxima presidência europeia, com o trio Portugal, Alemanha e Eslovénia, este seja um dos temas. Se a generalidade dos países tem um enorme desconforto em relação à confidencialidade dos preços, discuta-se. 

O futuro será obrigar as empresas a revelar os preços?

Acho que é preciso debater. Não faz sentido as empresas queixarem-se de critérios pouco transparentes na decisão de financiamento ou não financiamento e depois não sabermos rigorosamente nada sobre como se chega ao preço. O preço do medicamento da Matilde, 2 milhões de dólares, até pode ser perfeitamente justificado, são muito poucos casos, mas  não fazemos a mais pequena ideia sobre o que levou àquele valor. Numa reunião recente do grupo técnico de La Valleta, que junta seis países na discussão destas questões, percebemos que no outro medicamento para a atrofia há uma variação nos preços de 1 para 7. Tudo países europeus. E toda a gente está convencida que tem o melhor preço. Para mim é um mistério como é que a Europa convive bem com isto, mas convive e há uns anos largos.

Ainda sobre a lei de bases. Confia, como o primeiro-ministro, que a lei será promulgada em Belém?

Confio que as soluções encontradas respeitam as indicações do Presidente da República.

Como se reverte o decreto-lei das PPPs sem fechar portas, como defendia Belém?

O que o PR disse foi que as alternativas não deviam ficar vedadas e a lei diz que podem, de forma supletiva e temporária, ser celebrados acordos. Terá de haver uma forma de concretizar na regulamentação essa possibilidade. 

Há um ano teve um acidente grave, uma queda que o deixou com uma lesão medular. Passar pelo SNS como doente muda a perspetiva?

Muda. A pessoa torna-se mais sensível a pequenas necessidades. A posição de ver um hospital deitado numa maca, aquilo que se vê é o teto, é algo que por regra nenhum gestor e nenhum profissional vê. É outro hospital aquele que os doentes veem. O meu comentário na altura foi que ia deixar de ter condições de gerir o IPO porque levaria a situação financeira ao vermelho muito rapidamente, não teria coragem de dizer que não a qualquer solicitação de uma enfermeira, de um doente. Mas é isso, passei a estar muito sensível às pequenas coisas, a cadeira ligeiramente partida, a mesa manca, o duche que funciona ou não funciona. Um duche quando uma pessoa está internada é tão importante e é uma coisa tão barata. É preciso ouvir os doentes. Aqui no Ministério, a principal mudança foi talvez conseguir ter tempo para tratar de mim. Conseguir disciplina para sair daqui às 7 da tarde para fazer fisioterapia, o que noutros tempos seria impossível.

Esteve internado quando tempo?

Dois meses e meio. Faz um ano na segunda-feira e vou voltar ao local onde caí, ao local do crime, ao Festival de Música Internacional de Marvão, é belíssimo e recomendo.