O encanto de uma caixa de música

São mais de 600 peças ligadas à história da reprodução musical, uma viagem até à chegado dos vinis na decada de 50 do século passado. Para trás, mais de 50 anos de inovações, caixas de música de cilindro, juke boxes de discos metálicos. A magia acontece em Arraiados, Pinhal Novo, com direito a visita guiada…

O outdoor chama a atenção na autoestrada: Museu da Música Mecânica (MMM), Pinhal Novo. Até Arraiados, seguindo do centro da vila na direção da Lagoa da Palha, há mais placas a indicar o caminho, daquelas que avisam quantos minutos falta para chegar. Há-de haver uma explicação para a sinalética aprumada num país onde a orientação fora dos grandes centros não é propriamente o forte, ainda que haja sempre uma alma pronta a dar indicações. Luís Cangueiro, que em outubro de 2016 abriu as portas à sua coleção particular instalando o museu numa quinta da família no concelho de Palmela, começou por ser professor de liceu, de Latim e Grego. Nos anos 90 mudou-se para o universo da publicidade e tornou-se especialista nos cartazes à berma da estada, área de negócio que ainda mantém. Esta, a de comissário de museu, é quase uma terceira vida, para onde confluíram as outras e uma paixão antiga pelo colecionismo.

Depois das placas nos levarem certinhos ao destino, o edifício deste museu que é, também ele, uma alusão a uma caixa musical e uma homenagem à música mecânica – um projeto de traços modernos da autoria do arquiteto Miguel Marcelino – ergue-se na planície calma. São 15h30 de sábado, hora da visita guiada que, quase três anos depois da inauguração do MMM, Luís Cangueiro, de 77 anos, faz questão de assegurar aos fins de semana. O sol queima lá fora mas ainda se junta um pequeno grupo, que resiste ao dia de praia. Nem todos dominam o português, mas a verdade foi dita há muito: a música é linguagem universal. Ao longo da visita, os mais novos hão-de dançar ao som de lâminas, tubos, campainhas, pratos, sons de quando a música, primeiro dependente da corda e só no século passado movida eletricidade, começou a invadir o espaço familiar.

Durante a semana são sobretudo as escolas que procuram o museu, que este ano, em maio, tornou a ser distinguido pela Associação Portuguesa de Museologia nas categorias de melhor catálogo, de  estudo sobre museologia – com uma tese de mestrado sobre a coleção particular transformada em museu – e teve ainda uma menção honrosa pela parceria com o Museu do Fado. Foi o mote para a reunião de um conjunto de fados em discos de cartão perfurado e em discos de metal, naquelas que terão sido das primeiras experiências de reprodução mecânica da música portuguesa.

O espólio do MMM resulta de 25 anos de coleção, num processo de «desencantar» cada uma das peças, em leilões e vendas particulares, diz aos visitantes Luís Cangueiro. «É o termo certo», continua. «Desencantar é mesmo isso: ir à procura de uma peça que nos encanta. Estas a mim encantaram-me pelo som único, irrepetível». 

Assim começa a viagem que nos leva pela história da reprodução musical até ao aparecimento do disco de vinil, no início dos anos 50. Hoje a relíquia tornou a ser popular, mas para trás havia século e meio de inovações, emoções, os primeiros passos de comodidades que damos por garantidas como poder estar a jantar com música de fundo (sem precisar de contratar uma banda, claro está). A pensar nisso mesmo – e Cangueiro tem um dos exemplares – a certa altura inventaram-se bases que se colocavam no centro da mesa e a que se dava corda para que as lâminas de aço tocassem lá dentro, num processo invísivel aos olhos, para deleite dos convivas das casas mais finas.

 

AS PRIMEIRAS CAIXAS DE MÚSICA

Durante as visitas guiadas, as peças são manuseadas – na visita sem guia não é possível tocar nos aparelhos, existem gravações em alguns pontos da exposição que permitem conhecer o som de algumas das 600 máquinas, instrumentos e outros aparelhos reunidos no museu. Cangueiro começa a visita pelo início da história: as caixas de música de cilindro metálico. A invenção é atribuída ao relojoeiro suíço Antoine Favre, em 1776, e a exposição inclui algumas das variações fabricadas ao longo do século seguinte, que permitiam tocar dez, doze melodias, em peças que não eram só um apurar da mecânica mas obras de arte, com desenhos e detalhes minuciosos. Há quadros musicais, autómatos como um passarinho cantor dentro de uma gaiola, até se entrar na fase dos discos metálicos, mais manuseáveis do que os cilindros de música.

O fabrico da primeira caixa de música de disco metálico é atribuída ao alemão Paul Lochman, lê-se na parede do museu, que veio assim introduzir mais uma das inovações nesta história da reprodução da música já no ano de 1885. No MMM, uma das atrações é um disco metálico com a última música tocada pela orquestra do Titanic, ‘Near my God to Thee’. Não consta que o navio levasse uma máquina de música a bordo, mas a produção estava a massificar-se. No catálogo O Maravilhoso Mundo da Música Mecânica, lembra-se que, em 1903, a empresa Kuhno-Lochmann, que tornou Leipzig o centro da indústria de discos metálicos, tinha fabricado num ano 5000 máquinas e cem mil discos. Ainda no final do século XIX surgem, em alternativa aos discos, bandas de cartão, onde a música deixava de estar ‘escrita’ nas saliências passando a ser ditada por perfurações em papel, num processo que fazia movimentar foles, como era o caso da moderna Manopan, patenteada em 1886. No meio disto tudo, há os percursores das juke boxes e discos que chegaram a ter 70 centímetros, prolongando assim a duração dos temas.

O espólio continua para os fonógrafos, os primeiros aparelhos capazes de gravar e reproduzir a voz humana e, mais tarde, música. O primeiro de todos, o Tinfoil, foi inventado por Thomas Edison em 1877. No cilindro rodeado por uma folha de estanho, as primeiras palavras gravadas pelo efeito das vibrações vocais foram nada mais do que os primeiros versos de uma cantiga de embalar, ‘Mary had a little lamb’. No MMM há um exemplar francês, Tinfoil Fondain & Ducret, das primeiras experiências de gravações em folha de estanho no velho continente, dois anos depois do feito nos EUA. O estanho daria lugar a cilindros de cera, com o mesmo princípio. E surgiam os primeiros auriculares, aparentamente inspirados nos estetoscópios da Medicina. Segue-se uma fileira de gramofones, com campânulas coloridas, onde não podia faltar uma referência ao famoso cachorro Nipper, que se tornaria imagem de marca da gravadora His Master’s Voice, da The Gramophone Company de Londres. Foi retratado pelo pintor inglês Francis Barraud, a quem o irmão deixara o animal de companhia e um fonógrafo com alguns cilindros com a sua voz gravada. Nipper deixava-se ficar junto à campânula, como se estivesse a ouvir o antigo dono.

 

A ARISTON DOS DISCOS VOADORES

De todas as peças, há uma preferida? Já na sala de trabalho, onde há rolos, discos metálicos e tiras desdobráveis, além de livros sobre o universo da música mecânica, Cangueiro diz que responder seria como um pai escolher entre um filho. «É uma coleção que começa no início dos anos 80, com peças que ia vendo em leilões e me despertaram a atenção. Ia-me apercebendo das diferenças, juntando diferentes sons», explica. 

A ligação à música vinha-lhe dos tempos de estudante em Coimbra, quando dirigiu o coral da Faculdade de Letras. O espírito de colecionador pode dizer-se que era «nato», começou em miúdo com selos. Mas há uma peça que será sempre especial. Na casa onde nasceu, em Miranda do Douro, uma quinta senhorial onde os pais eram feitores, havia uma caixa de disco de cartão Ariston, que fazia uns «sons esquisitos» e não descansou enquanto não desmanchou – destruiu, é a palavra – para ver o interior. Anos mais tarde, faria questão de ter uma semelhante na coleção. Discos parecidos com os que nos tempos de menino serviam para lançar ao ar nas brincadeiras em Prado Gatão são hoje tocados com especial emoção e Cangueiro diz que é muito essa ligação ao passado que acaba por comover alguns visitantes, que ao ouvir a música a arrancar lembram uma máquina que os avós tinham em casa, um tema dos tempos de criança. «Não sei se a motivação para isto foi esta caixa, é capaz de ter sido um misto de tudo. Eu gostar de música, gostar de colecionar e ter tido um dia aquela caixa de música que me ficou na memória». 

O resto fez-se de tempo, de pesquisa e de investimento gradual. As peças mais cobiçadas chegam a valer dezenas de milhares de euros – um autómato de uma bailarina a fazer dança de ventre foi arrematado no ano passado em Lisboa por 110 mil euros, exemplifica Cangueiro. Foram os anos áureos da publicidade, década de 90, início dos anos 2000, que permitiram dar lastro ao interesse. «Nunca teria feito esta coleção com a vida de professor. Foi nos anos bons da publicidade que ganhei o suficiente para fazer o investimento na coleção e depois no museu», diz. Um projeto que não teve apoios estatais e é uma aventura familiar – os filhos ajudam, na entrada e nas visitas. O orgulho é visível, tanto pelas distinções como pelo resultado. «Consegui reunir todas as tipologias da música mecânica, assim definida quando não existe um processo de amplificação do som, o que não existe em muitos museus. E ser um museu particular também não é muito habitual». 

A primeira peça que comprou foi um gramofone,  num centro comercial de Almada, o que na altura, com os CDs em explosão, já era excêntrico q.b. E há alguma peça em falta? «Muitas. Muitas serão a repetição do que tenho, a um nível superior. Há uma peça chamada Heroica que tem três discos a tocar ao mesmo tempo. Vi uma vez uma, mas não dava para recuperar. Tenho uma peça de 1912 que é um violino Mills, toca sozinho. Um dia um museu apresentou-me uma peça com três violinos. São peças assim… Não as tenho por duas razões: ou porque não existem ou porque não teria dinheiro para as comprar. Já gastei as minhas reservas», sorri o colecionador.

Saímos com uma lembrança da loja. Dá-se corda e rodopia uma bailarina ao som de ‘Greensleeves’, canção do folclore britânico de que ninguém sabe propriamente a história. Tantos anos depois, continua a haver qualquer coisa de mágico na delicadeza de uma caixa de música.