«Hoje foge desta selva urbana»

É muito difícil viver num ambiente que nos rouba tantas horas para nos deslocarmos para casa, para o trabalho ou para ir passear; tempo perdido nas filas de trânsito ou dos transportes públicos, o que condiciona o nosso estado de espírito e nos leva a sentir sempre em falta, sempre com pressa, sempre a correr. 

Esta inscrição num pilar de um viaduto na zona de Campolide, em Lisboa, diz: «Hoje foge desta selva urbana». Já não é a primeira vez que uma frase começada por «Hoje» surge no nosso caminho. Mas é curioso que esta frase em particular tenha sido pintada num cruzamento de estradas e viadutos, em plena selva urbana.

Ora, quem vive na cidade, nesse «rumor e vaivém sem paz das ruas» nas palavras de Sophia, está no centro desta azáfama, numa encruzilhada de prédios altos, de estradas barulhentas e do rebuliço causado pelas muitas pessoas que passam.

É curioso que esta selva de asfalto tenha muito pouco de selva e seja, antes, um espaço tantas vezes sem alma e que, com frequência, asfixia a liberdade de viver com mais calma, sem pressa nem correrias. Como dizia Bob Marley, na canção «Concrete jungle»: «a vida, doce vida, deve estar em algum lugar / para ser encontrada / Ao invés de uma selva urbana / Onde é muito mais difícil viver». E tem razão, porque é muito difícil viver num ambiente que nos rouba tantas horas para nos deslocarmos para casa, para o trabalho ou para ir passear; tempo perdido nas filas de trânsito ou dos transportes públicos, o que condiciona o nosso estado de espírito e nos leva a sentir sempre em falta, sempre com pressa, sempre a correr. É essa falta de tempo e a constante correria da cidade que nos fazer viver de costas voltadas para o outro, contribuindo para o egoísmo que grassa quando vivemos em pisos que se sobrepõem na vertical, sem que tenhamos sequer oportunidade de conhecer quem vive a nosso lado.

A selva urbana, sobretudo nas zonas de maior densidade populacional, afasta as pessoas das outras pessoas, do contacto humano e pessoal. A maior parte dos prédios nestas zonas tem garagem, pelo que os habitantes se tornam isso mesmo, habitantes, que saem e entram de carro, não tendo de se cruzar com outros habitantes, todos sendo cingidos a meras características redutoras. A humanidade deixa de ser humana porque deixa de ser habitada por seres humanos.

No entanto, a cidade não é só metáfora de acontecimentos negativos. A cidade é também a construção, pelo Homem, de um espaço onde nascem novas ideias, onde se produz cultura, onde se partilha arte. A cidade é um local construído pelo Homem, onde acontece tudo aquilo que é característico do homem. Como diz o poeta Albano Martins: «Uma cidade / pode ser o nome / dum país, dum cais, um porto, um barco / de andorinhas e gaivotas / ancoradas / na areia. (…) / Uma cidade pode ser / um coração, / um punho». No fundo, uma cidade pode ser tudo o que os seus habitantes desejarem.

A cidade, a «polis», reúne todos os homens em torno de um ideal, procurando facilitar a vida, por permitir que tudo esteja ao seu alcance. É um ideal que assenta em fundamentos de bondade, e cabe a cada um de nós tentar que esse ideal não se desvirtue.

Diz Bernardo Soares no Livro do Desassossego: «Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem». Muitas vezes, lutamos por ideais que acabam por não ter sentido porque, perdidos de nós e dos outros, já nem sequer sabemos para que rumo vamos, ficando parados, à espera.

 

Maria Eugénia Leitão