Várias frentes ativas no caso das golas

Já não está em causa se as golas são inflamáveis e há muito que o negócio dos kits antifumo deixaram de ser a única suspeita dos investigadores. Processo já tem vários arguidos. 

É uma verdadeira bola de neve o caso que envolve a Proteção Civil e o Ministério da Administração Interna. Começou em julho com uma notícia de que 70 mil golas distribuídas à população para uso em caso de incêndio eram inflamáveis, depois levantaram-se dúvidas sobre as ligações políticas dos donos das empresas fornecedoras e hoje estão a o Ministério Público está já a investigar uma série de ajustes diretos feitos pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) no âmbito de programas de prevenção aos incêndios. No inquérito em curso estão em causa os crimes de  fraude na obtenção de subsídio, de participação económica em negócio e de corrupção.

Tanto o presidente da ANEPC, Mourato Nunes, como o até esta semana secretário de Estado da Proteção Civil, Artur Neves, e o seu antigo adjunto Francisco Ferreira são já arguidos, tal como as empresas Foxtrot e Brain One.

O negócio das golas 

Na última quarta-feira 200 inspetores da Polícia Judiciária de vários pontos do país, seis procuradores e sete outros elementos da Procuradoria-Geral da República (PGR) fizeram oito buscas domiciliárias e quarenta e seis não domiciliárias. As diligências aconteceram de norte a sul do país, visando inclusivamente a casa e o gabinete do secretário de Estado da Proteção Civil, a sede da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) – assim como a casa do seu presidente –, a empresa Foxtrot Aventura e vários Comandos Distritais de Operações de Socorro (CDOS).

A notícia de que foram distribuídas 70 mil golas inflamáveis no âmbito do programa Aldeias Seguras começou por ser considerada pelo Ministro da Administração Interna como «irresponsável e alarmista», mas a forma como foram adjudicadas as empresas levaram logo o Ministério Público a abrir um inquérito, dado haver indícios de crime.
Logo em julho, o adjunto do secretário de Estado Francisco Ferreira pediu para sair, depois de se saber que fora ele quem sugerira as empresas que forneceram as golas, os kits de emergência e os panfletos de sensibilização, no âmbito do programa Aldeia Segura, Pessoas Seguras.

Só a Foxtrot Aventura, Unipessoal Lda. – de Ricardo Peixoto Fernandes, marido de Isilda Gomes da Silva, presidente da Junta de Freguesia de Longos, em Guimarães – arrecadou 102 200 euros (sem IVA) pelo fornecimento das 70 mil golas que, apesar de serem destinadas a pessoas envolvidas em situações de incêndio, são de material potencialmente inflamável. E ganhou 165 mil euros (sem IVA) com a venda de kits de autoproteção. A empresa foi fundada após o Governo ter decidido criar este programa.

Para a elaboração de panfletos foi escolhida a Brain One, por perto de 11 mil euros (valor sem IVA), empresa com histórico de contratação com o município de Arouca, de que fora presidente Artur Neves.
Os valores das golas e dos kits no geral são apenas uma parte do custo total do programa Aldeia Segura – Pessoas Seguras. Segundo o jornal i revelou logo em julho, no total, tendo em conta uma análise feita no portal Base.Gov, foram gastos de cerca de 1,4 milhões de euros com este projeto. Brindes, coletes e sinalética, são alguns dos exemplos dos contratos celebrados. Vários destes contratos estão a ser analisados pelos investigadores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que investiga a criminalidade mais complexa.

Os brindes e as outras suspeitas

Numa breve consulta a este portal percebe-se que entre o ano passado e julho deste ano foram adjudicados pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), pela Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, IP e por municípios como Vale de Cambra, Loulé, Coimbra e Portimão serviços relacionados com este projeto (Aldeia Segura) que, no total, ascendem a 1383 mil euros (sem IVA). Excluindo os contratos assinados com a Foxtrot e com a Brain One, o montante fixa-se nos 1,1 milhões.

Os contratos começaram a ser celebrados em maio do ano passado. Logo após o contrato com a Brain One (o primeiro), no final de maio e no início de junho do ano passado, surgem os contratos com a Foxtrot, a que se junta um com a sociedade Safety Águeda. Pelo fornecimento de sinalética para caminhos de fuga, a Proteção Civil pagou a esta última empresa 329 900 euros (sem IVA) – no portal Base consta que a Safety Águeda já prestou serviços a entidades públicas por 38 vezes, tendo recebido mais de 733 mil euros.

Em julho de 2018, a Proteção Civil compra à empresa Símbolo de Memória – que já prestou serviços a entidades públicas outras dez vezes – spots para passarem em televisão e rádio, num total de 73 900 euros. Um mês depois, a ANEPC fez uma consulta ao mercado e escolheu a Touch Fire para o fornecimento de 800 coletes para oficiais de segurança local. Esta sociedade não era também estreante nos contratos com entidades públicas – soma já uma dezena de adjudicações e um total de 120 565 euros.

Em setembro, para aquisição de bens de sensibilização que custaram ao erário público 40 200 euros, a Proteção Civil escolheu a empresa Stampa, SA – que no setor público apenas apresentou trabalhos para a Junta de Freguesia de Belém.

E para a compra de brindes como bonés, esferográficas e lápis foi escolhida a empresa MBA – Marketing e Brindes. Tratou-se de um ajuste direto de 23 385 euros – 28 763,5 com IVA. A empresa soma diversos contratos com entidades públicas.

Um dos contratos mais curiosos é celebrado em dezembro do ano passado – um estudo de mercado para perceber qual «a eficácia das campanhas de sensibilização da população denominadas ‘Aldeia Segura/Pessoa Segura’ e ‘Floresta Segura’». A entidade adjudicante foi a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, IP – criada pelo atual Executivo e que tem como principal função «garantir a análise integrada do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais para assegurar a sua solidez e eficácia». O contrato foi celebrado com a GfK por 52 mil euros. As conclusões ainda não são conhecidas, não obstante o SOL as ter já pedido.

Um dos últimos contratos – o mais caro – foi celebrado com a empresa Nova Expressão. Através de concurso público, a ANEPC adjudicou à sociedade o planeamento de meios e publicidade para a campanha de TV, rádio e web por 519 867 euros.

Já no que toca aos municípios, Portimão comprou à Prime Digital painéis informativos por 4780 euros, Vale de Cambra contratou Sara Catarina Correia Almeida para apoiar na implementação do projeto – por cerca de 12 mil euros – e Loulé recorreu à Acrilzita, que nunca havia trabalhado para entidades públicas, também para comprar painéis informativos, por 19 200 euros. 

Novo Sistema de mensagens

As autoridades estão ainda a investigar um contrato relativo ao novo sistema de envio de mensagens escritas para as populações em áreas com risco elevado de incêndio. 

O MAI celebrou contratos com as operadoras Meo, Nos e Vodafone no valor de 735 mil euros (sem IVA) para as comunicações móveis e adjudicou o serviço de desenvolvimento do sistema nacional de alerta a uma empresa que aparentemente não presta este tipo de serviços. Trata-se da Fast Yubuy e o ajuste direto foi celebrado por 74 mil euros (sem IVA). A investigação, que não tem dúvidas sobre os contratos com as operadoras, terá estranhado este último contrato.

Em maio, o SOL revelou que as operadoras de telecomunicações ainda aguardavam notícias para perceber como se iria desenrolar este ano a difusão de alertas de fogos às populações. Isto, porque o sistema de SMS já havia demonstrado alguns problemas no último ano, mas o novo sistema que o MAI pretendia implementar – o Cell Broadcast – ainda estava longe de ser posto em prática.

 

O arguido que sai e o que fica

Artur Neves foi exonerado a seu pedido depois de em julho ter recusado sair. Mourato Nunes mantém-se na ANEPC.

Artur Neves ainda aguentou algumas semanas desde que as notícias começaram a sair, mas acabou por ser obrigado a pedir a exoneração na última semana quando se ficou a saber que era um dos arguidos. O ex-secretário de Estado da Proteção Civil , está no centro de todas as suspeitas no que toca às golas – cuja empresa fornecedora foi indicada pelo seu antigo adjunto –, mas há um outro tema que nos últimos tempos manchou a sua imagem: o seu filho tem uma participação de 20% numa empresa – a Zercac – que assinara contratos com entidades públicas – uma situação que aparentemente seria proibida pela lei em vigor das incompatibilidades de titulares de cargos políticos  (ver caixa). No âmbito dos três contratos celebrados com a Universidade do Porto e com o Município de Vila Franca de Xira, encaixou 2,1 milhões de euros.

A lei determina que empresas detidas em mais de 10% por familiares diretos de governantes não podem celebrar contratos com o Estado, sendo o seu incumprimento punido com perda de mandato. Apesar das notícias, conhecidas logo em agosto, Artur Neves não saiu e manteve o total apoio do Governo. Além de Costa, Santos Silva chegou mesmo a dizer que «seria um absurdo a interpretação literal da lei». O certo é que na altura o primeiro-ministro pediu um parecer ao conselho consultivo da PGR.

Mourato Nunes fica e com apoio

Se uns saem outros ficam. Mourato Nunes confirmou na quinta-feira ser arguido, mas deixou calara a sua intenção de se manter no cargo: «Como teve oportunidade de transmitir a toda a estrutura da ANEPC, [o presidente] não concede nas imputações invocadas quanto ao seu envolvimento em quaisquer que possam ser os factos deste processo». Concluiu ainda que vai colaborar com a Justiça, sem deixar de exercer os seus direitos.
No mesmo dia, o MAI fez saber que «respeita as decisões individuais tomadas pelo Eng.º José Artur Neves e pelo Tenente-General Carlos Mourato Nunes». E reiterou «a plena confiança» no presidente da ANEPC.  

Parecer PGR

Lei não pode ser lida de modo cego

A PGR entregou esta semana, poucas horas depois da operação rebentar, o parecer pedido por António Costa em julho sobre as incompatibilidades dos políticos – a propósito das notícias que davam conta de que o filho de Artur Neves detinha 20% de uma empresa que fez negócios com entidades públicas. Ontem, Costa emitiu uma nota com as conclusões do conselho consultivo da PGR, das quais se destaca: «As normas jurídicas não podem ser interpretadas de forma estritamente literal».
PM homologou o documento

O parecer vem assim dar razão ao PM, ao referir que uma interpretação literal seria inconstitucional e que o espírito da lei era travar negócios com áreas tuteladas por familiares. Depois de homologada, a interpretação passa a valer para toda a administração pública.