Numa sociedade cada vez mais mediatizada, um dos problemas que se colocam na política – e noutras áreas, como o espetáculo ou até a literatura – é uma pessoa fazer-se notar. Os jornais, as rádios, as televisões falam todos os dias de milhares de pessoas, têm centenas de convidados, e alguém fazer-se notar no meio desse cafarnaum não é tarefa simples.
Para um ilustre desconhecido conseguir distinguir-se no meio da multidão é preciso ter qualidades excecionais – ou então ser ‘diferente’. E pode ser-se diferente de diversas maneiras. Que o diga José Castelo Branco.
Rui Tavares, líder do partido Livre, já tinha sentido na pele essa dificuldade. Concorrera a várias eleições sem sucesso, o que nem é muito de estranhar pois é um mau comunicador. Fala para dentro, é pouco expressivo, tem um registo monocórdico. Por isso, talvez fizesse melhor em dedicar-se à investigação histórica, para a qual tem vocação, do que à política, para a qual não tem vocação nenhuma.
Percebendo que não iria uma vez mais ser eleito, Rui Tavares recorreu nas últimas eleições a um ‘truque’: candidatou uma jovem completamente desconhecida mas que iria necessariamente dar nas vistas por duas razões – por ser negra e por ser muito gaga.
Tenho um irmão gago, cujo problema melhorou com a idade mas que na adolescência tinha muitas dificuldades em pronunciar certas palavras e em articular as frases, sobretudo quando estava nervoso. Sei, portanto, o que é a gaguez. E também sei que é constrangedor para um gago ser exibido em público perante uma bateria de jornalistas com câmaras apontadas à sua cara e microfones apontados à sua boca. Se para uma pessoa ‘normal’ a situação não é fácil, para um gago é mil vezes pior.
Ora, Rui Tavares sabia isso. Assim, julgo que não tinha o direito de sujeitar Joacine Moreira a essas situações. Ninguém se sente bem a repetir a mesma sílaba durante longos segundos com toda a gente a olhar para ela. Ninguém se sente bem a não conseguir exprimir uma ideia, porque está constantemente a tropeçar nas palavras – ao ponto de os ouvintes começarem a sentir-se também eles próprios constrangidos, já não dando atenção ao que a pessoa diz mas sim fazendo figas para que acabe a frase.
Não há direito, repito, de sujeitar uma pessoa a provações destas perante milhões de espetadores.
Dir-se-á: mas uma pessoa gaga não pode ser deputada? Não será isto uma discriminação? Claro que é. Mas todas as atividades têm as suas limitações. Um cego não pode ser pintor, como um coxo não pode ser corredor. Por acaso até houve um que foi, mas não é exemplo para ninguém.
A política faz-se sobretudo através da palavra. Um deputado exprime-se sobretudo pela palavra. Ora, quem tem graves dificuldades de dicção não pode ser deputado. Aliás, o próprio Rui Tavares o admite, ao pedir mais tempo para Joacine. Ou seja: reconhece que ela não consegue exprimir-se no tempo que lhe cabe. Mas tal seria motivo para não se candidatar – e não para ter uma situação de privilégio.
Ao perceber que, se fosse ele o candidato, não seria eleito, Rui Tavares arranjou um ‘duplo’ que facilmente daria nas vistas não pelo que diz – pois as ideias da deputada ninguém as percebeu, e as que se perceberam não são recomendáveis, como o «feminismo radical» – mas exatamente por aquilo que não consegue dizer.
E isto é lamentável. Se vamos por este caminho, qualquer dia os partidos começarão a explorar em cheio as deficiências, porque constatam que isso rende votos. Cegos, deficientes motores, surdos-mudos, eventualmente portadores de trissomia 21 começarão a invadir as listas à procura de votos piedosos.
Onde vamos parar?
As pessoas com problemas mais ou menos graves têm direito a ser respeitadas. Não podem ser expostas de uma forma despudorada ao consumo público, como o Livre fez.