Carta com um silêncio nas entrelinhas

Fernando, faz-me um favor: marca lá aquele penálti que falhaste e me valeu um treze no Totobola para que eu fique bem comigo mesmo.

É tarde. Ou cedo, depende do ponto de vista. No Calcutá, na Rua do Norte, o Hiren e o Nilesh aturam-nos até ao fim da infinita indiana paciência. Conversamos, bebemos, fumamos. Depois regressamos a casa. Despeço-me do Tó Melo, do João Barbosa, do Jorge Nabais, meto-me no carro, ligo o rádio num posto qualquer, oiço a música que já ouvi, tantas vezes, em vozes roucas e desafinadas, em Anfield: «Walk on, walk on/With hope in your heart/And you’ll never walk alone/You’ll never walk alone…».

Troquei mensagens com o Fernando Gomes. Desculpa, Fernando, vou fazer aqui uma inconfidência, não vais levar a mal. Há muitos anos, há que anos!, ouvia também, num aparelho como este, o relato de um Benfica-FCPorto na Luz. Último minuto. Penalti contra o Benfica. Na tua frente, o Bento, amigo que se encantou como dizia o Guimarães Rosa. Que se encantou cedo demais. O Bento tinha um jeito brusco de ser amigo. Estava-lhe no sangue. Na brusquidão, subitamente, surgia uma ternura. Recordo-me mais da ternura do que da brusquidão. 

Fernando, esta carta é para ti, mas eu vou dizer-te com toda a sinceridade: queria que falhasses. Não por ti, sempre calmo, sempre tranquilo, sempre cavalheiro. Era pelo treze. Eu explico: até aí, eu e o meu primo Pedro, lá na Águeda da minha infância, da minha adolescência, de toda a minha vida, faltava um quadradinho certo para completar o Totobola. Benfica-FC Porto: dupla – 1 e X. Porra! Se marcasses golo era o 2. Lá se ia o treze. Fizemos figas. Não contra ti, meu querido amigo, não a favor do Bento, meu querido amigo, figas à mais pura das ganâncias. Ora, que amizade a minha… Fui mais amigo do treze do que de qualquer um de vós, embora se o Bento levasse a melhor nós também ficávamos com as contas certas. Do lance, não me recordo. Foste tu que falhaste ou ele que defendeu?
Já que estou aqui numa maré de sinceridade, vou acrescentar: o prémio foi uma merda. Mais de trinta e tal mil apostadores fizeram o mesmo treze. Vinte e um contos, se bem me lembro. Com quinze comprámos um carro. Um Anglia Fascinante todo podre, com só meia porta do lado do morto. Mas era um carro. O meu primeiro carro. Agradeço-to a ti ou ao Bento? Um dia qualquer tiraremos isso a limpo.

Gostei de falar contigo, hoje. Senti-te, como sempre, campeão no futebol e na vida. «When you walk through a storm/Hold your head up high/And don’t be afraid of the dark…», cantam eles em Liverpool. Partias quase fantasmagórico para os penáltis e todas as bolas que caíam na grande-área, à tua frente, eram penaltis, alguns de cabeça, o jeito firme do pescoço, um golpe seco, colocado. Ah! Porra, Cabecinha-de-ouro! Tiveste um a teu lado que também era assim, mas noutro estilo, o Walsh. Nunca vi duas cabeças entenderem-se tão bem juntas. Voavam como pássaros que não precisam de bandos.

Vou ligar-te em breve. Voz com voz. Deixa só que, aqui, me lembre. Aqui nas linhas. Lisboa, tantos do tal. Meu querido Fernando, como andas? E tu respondeste, firme, com aquela certeza de quem enfia no braço um pedaço de pano a dizer capitão de homens: «Estou na luta!». Era o que faltava se não estivesses. Na luta da grande-área da existência onde qualquer jogo se decide.

Íntima é a relação entre o tempo, o espaço, a matéria e a energia, dizem os sábios. Digo-te sem meios termos: que se quilhe a termodinâmica, a relatividade e a física quântica. Einstein não é para aqui chamado. Os meus amigos são sempre meus amigos e não há relatividade nenhuma nisso. Como também o tempo que passa por todos nós, carregando-nos aos ombros no caminho irrecusável da velhice, não apaga o que foi ficando para trás. Lembro-me, outra vez há muitos anos, conversarmos na cozinha de tua casa, no Algarve. Não podíamos adivinhar que, neste preciso momento, teria a necessidade profunda de te escrever e a necessidade ainda mais profunda que me lesses. Vendo bem, não é sequer uma questão de ler e de escrever, mesmo que essa seja a utilidade de uma carta. É somente o reencontro.

Olha, faz-me um favor: marca lá o penálti que falhaste ou que o Bento defendeu. Marca golo e festeja daquela forma muito tua, braços ao ar, um sorriso quase tímido, uma explosão misturada de sentimntos por dentro que certa vez definiste como orgasmo. Estou-me nas tintas para o treze no Totobola e, acredita, não é pelo dinheiro, que foi nenhum, valeu apenas a alegria de algo incomum. Marca o golo por ti e por mim e por todos aqueles que te amam e não te deixarão nunca caminhar sozinho. Marca o golo, porque marcar golos era o teu Destino. Depois, quando o festejares, não contes com mais palavras minhas. Conta apenas com o silêncio de um abraço. 
afonso.melo@newsplex.pt