‘Os filósofos como Diderot eram as estrelas de rock da sua geração’

Na biografia que dedicou ao autor da Enciclopédia, Andrew Curran mostra um homem brilhante, irrequieto e provocador cujo nome se tornou conhecido das elites cultas do Vaticano a S. Petersburgo.

Conhecido sobretudo como filósofo e autor (com d’Alembert) da Encyclopédie (publicada entre 1750 e 1772), Denis Diderot (1713-1784) foi uma das mais ilustres figuras do Iluminismo. Filho de um mestre cuteleiro, cedo os pais perceberam que era dotado de uma inteligência excecional. Estudou num colégio jesuíta com o objetivo de se tornar abade – mas o lugar que ambicionava foi-lhe recusado. O seu espírito inconformista haveria mais tarde de fazer dele um feroz opositor da Igreja.

A sua atividade fervilhante tocou muitas áreas:escreveu sobre o colonialismo, imaginou a evolução das espécies antes de Darwin, denunciou a escravatura e fez crítica da arte.

Idolatrado por Catarina a Grande da Rússia, adquiriu para ela o núcleo da coleção do que viria a ser o Museu do Hermitage em São Petersburgo, e foi generosamente recompensado. Embora tenha atingido a celebridade em vida, guardou os seus escritos mais pessoais e controversos para serem publicados a título póstumo.

Mas nem na morte encontrou repouso: no inverno de 1793, nove anos depois do seu desaparecimento e durante os desmandos da Revolução, um bando de ladrões de sepulturas profanou o seu túmulo. «Depois de retirarem da cripta o caixão de chumbo de Diderot, os homens limitaram-se a despejar o corpo em decomposição para cima do chão de mármore da igreja», conta Andrew S. Curran em Diderot e a Arte de Pensar Livremente (ed. Temas &Debates). «No dia seguinte, os restos mortais de Denis Diderot […] foram presumivelmente reunidos e transferidos sem cerimónia para uma vala comum a cerca de um quilómetro a leste. Ninguém deu conta; ninguém noticiou na imprensa». Para o próprio também não faria diferença:«Quer se apodreça debaixo do mármore ou debaixo da terra, apodrece-se sempre», escrevera o filósofo materialista anos antes.

Curran, que é especialista no século XVIII e professor de Humanidades na Universidade Wesleyan, no Connecticut (EUA), respondeu às perguntas do SOL por email.

Como é que alguém que parecia destinado a ocupar um importante cargo na Igreja acaba por tornar-se um paladino do ateísmo?
Naquela época [século XVIII] muitas pessoas entravam para a vida religiosa porque oferecia um emprego certo, seguro e bem pago. Vindo de uma família tão religiosa, Diderot tinha certamente inclinações religiosas, mas era talvez um livre-pensador e no seu íntimo um rebelde. Quando chegou a Paris, viu-se no meio de uma sociedade onde muitas pessoas estavam a abandonar a fé; estava na moda ser-se cético. Mas ele foi mais longe. Além de adotar essa postura, decidiu denunciar publicamente a religiosidade do seu século.

Quais foram os primeiros sinais de afastamento da Igreja?
Diderot não se tornou um ateísta de imediato. Começou por questionar a sua fé e os fundamentos epistemológicos da fé. Antes de se tornar mais combativo, tentou desesperadamente encontrar uma forma de acreditar em Deus que fosse racional. Mas isso acabou por não resultar.

O facto de o pai o ter encarcerado num mosteiro carmelita quando ele anunciou que queria casar com uma lavadeira, Toinette, também ajudou a que ficasse com um certo ódio pela Igreja?
É possível que tenha ajudado. Durante esses dias de prisão ele foi tonsurado [corte de cabelo típico dos frades] e provavelmente sovado. E ficar fechado era algo de que este escritor gregário não gostava mesmo nada. Além disso, uma irmã sua tinha morrido por detrás das paredes de um convento, o que o levaria a detestar ainda mais a reclusão.

Foi a Enciclopédia que fez de Diderot uma celebridade europeia?
Sim, a Enciclopédia fez de Diderot um nome familiar do Vaticano a São Petersburgo – entre as elites literatas, claro. Os seus escritos mais importantes, no entanto, são aqueles que não foram publicados durante a sua vida.

Parece-lhe justo, então, que ele seja hoje recordado sobretudo como o autor da Enciclopédia?
É a faceta do seu legado mais fácil de lembrar. Rousseau tem O Contrato Social, Voltaire o Cândido, e Diderot a Enciclopédia. Os legados dos escritores tendem a cristalizar-se em torno de uma obra principal e Diderot não é exceção, apesar de ter feito muito mais do que isso.

O prestígio que Diderot adquiriu traduziu-se em proventos financeiros? Como era a relação dele com o dinheiro?
Isso acabaria por acontecer de forma muito evidente quando Catarina a Grande fez dele um homem rico, ao ‘contratá-lo’ para cuidar da sua [de Diderot] própria biblioteca de três mil volumes pela soma astronómica de 50 mil livres [equivalente a cerca de 650 mil euros atuais], que correspondiam a 50 anos de pagamento adiantado!

Apesar da oposição do pai, Diderot acabou mesmo por casar com a lavadeira Toinette. Mas a sua maior paixão foi talvez a sua amante Sophie. As cartas dele para Sophie que chegaram até nós estão repletas de declarações de amor ardente, mas há muitas outras que foram destruídas. O que podemos supor que continham essas cartas desaparecidas?
Provavelmente eram ainda muito mais explícitas, cheias de alusões diretas ao seu relacionamento sexual. Mas estou apenas a supor…

Além de se debruçar sobre a ciência, a filosofia, a religião e a política, Diderot também escreveu crítica de arte. O seu gosto era tão progressista quanto as suas ideias?

Diderot podia ser avant-garde e conservador ao mesmo tempo. Acredito que em parte a sua condenação do pintor [rococó] François Boucher estava relacionada com o facto de ele querer distanciar-se das cenas bucólicas lascivas que Boucher pintou. Ele era, ainda assim, muito mais moderno noutros aspetos, especialmente na compreensão de que o verdadeiro poder da arte era a sua capacidade de chocar, de desafiar e ir além das convenções.

Conta-nos no seu livro que antes de um encontro entre ambos, a imperatriz Catarina da Rússia pediu para colocarem uma mesa entre as duas cadeiras, porque o filósofo estava sempre a tocar-lhe na perna. Isto era normal? Não havia todo um cerimonial na corte russa?
Sim, havia seguramente muitas regras de protocolo, mas os filósofos como Diderot estavam a redefinir as regras; eles eram as estrelas de rock (ou de hip-hop) da sua geração; bad boys cuja criatividade e produção artística lhes permitia transcender a sua classe social.

Quando foi que se apercebeu de que Diderot podia ser um tema interessante para uma biografia? Qual foi a qualidade ou traço de caráter dele que mais o cativou?
Adoro a vivacidade de Diderot, a sua mente, o seu ceticismo, e o facto de ele olhar para cada questão a partir de múltiplos pontos de vista, o que traduziu em diálogos tremendamente animados.

Há dias, ouvi um amigo a tecer um comentário maldoso sobre uma personalidade muito popular em Portugal: ‘Um oceano de conhecimento… com um palmo de profundidade’. Tendo tocado tão diferentes campos do saber, Diderot não acabou por ser forçosamente superficial?
Talvez tenha sido superficial nalgumas áreas, mas foi mais longe do que a maioria na compreensão das implicações das várias disciplinas. E, ao escrever sete mil artigos e editar talvez uns outros 30 mil para a Enciclopédia, tornou-se o polímata mais espantoso da sua geração, um génio que conseguia dançar entre as disciplinas com a maior ligeireza.