No interrogatório da fase de instrução da Operação Marquês conduzido pelo juiz Ivo Rosa, José Sócrates justificou a opção de viajar em classe executiva nas múltiplas deslocações aéreas que fez depois de abandonar a governação do país, em 2011, dizendo que, no seu entender, «era uma humilhação para um ex-primeiro-ministro viajar em classe turística».
Esta foi apenas umas das diversas contradições em que o ex-líder do PS incorreu ao longo das quatro sessões de interrogatório e em que foi confrontado com os factos de que o Ministério Público o acusa e que configuram crimes corrupção, branqueamento de capitais e evasão fiscal. É que, embora viajasse predominantemente em executiva, no dia em que foi detido no âmbito da Operação Marquês, faz agora cinco anos, no aeroporto de Lisboa, Sócrates estava a regressar de Paris em classe turística.
Com a preocupação de afastar o amigo Carlos Santos Silva do cenário em que os factos da acusação do MP o colocam (o de ser o seu fornecedor de dinheiro até no período em que chefiava o Governo), José Sócrates justificou as avultadas despesas que fez durante este período – e para as quais não possuía rendimentos correspondentes – com uma revelação inesperada: a mãe, Maria Adelaide Monteiro Pinto de Sousa, teria recebido do pai dela, nos anos 80, uma herança de um milhão de contos (o equivalente a cinco milhões de euros). E que esse dinheiro era por ela guardado em espécime num cofre da sua casa, do qual regularmente retirava quantias que doava ao filho, nomeadamente para sustentar as suas viagens ao estrangeiro (e ao ritmo, segundo acrescentou, de 12 mil euros por cada deslocação de férias).
Agência de viagens desmente Sócrates
Neste nova ‘narrativa’, terá sido a expensas da mãe que o antigo governante compunha a sua vida de luxo, antes e depois de abandonar funções em S. Bento, tendo apenas necessitado de empréstimos do empresário e amigo Carlos Santos Silva após ter ido estudar para Paris.
Até aqui, segundo Sócrates explanou no último dia de interrogatório, era Santos Silva quem pagava as viagens de avião e a as estadas em hotéis, enquanto ele, com o dinheiro do cofre da mãe, pagava as refeições. Recorde-se que, no processo, constam viagens de Sócrates e da família, como finais de ano em Veneza, férias de Inverno em estâncias de esqui, verões no Brasil, em Formentera e no Algarve – tudo com estadas que duravam entre uma a duas semanas.
Com esta novidade de uma espécie de ‘tesouro’ guardado em notas, José Sócrates quis fazer crer ao juiz que, sobretudo enquanto governante, pagava as despesas a meias com Carlos Santos Silva.
Inquirida pelo MP, Nazaré Soares, a funcionária da agência de viagens Top Atlântico – que foi responsável não só pelas marcações das viagem de Sócrates mas também pela sua faturação – revelou aos investigadores a forma como as coisas se passavam nesses tempos: começava por ser o gabinete do primeiro-ministro a pedir que as faturas originais fossem emitidas em nome do próprio; a seguir, solicitavam a respetiva anulação e a emissão de novas faturas sobre as mesmas despesas, mas em nome de Carlos Santos Silva; no fim, era este quem pagava e em cheques fracionados.
Documentos recolhidos durante as buscas efetuadas corroboraram esta versão, que foi igualmente confirmada por uma das antigas secretárias de Sócrates em São Bento, Rute Martins. Esta encaminhava as faturas para Santos Silva e pedia-lhe os cheques, que depois eram enviados à Top Atlântico. O MP não tem dúvidas: este esquema serviria para dificultar um escrutínio futuro ao rasto do dinheiro e camuflar a sua origem.
Dinheiro não cabia no cofre
Sócrates não deu mais pormenores sobre as alegadas retiradas de dinheiro em notas do cofre da mãe – dinheiro que, quando esta abandonou o andar no edifício Heron Castilho, em Lisboa, e foi viver para um modesto r/c em Cascais, passou, segundo disse, a estar guardado num cofre na sua própria casa. Este segundo cofre foi de facto encontrado nas buscas ao apartamento de Sócrates, na altura também no Heron Castilho, em novembro de 2014: estava vazio e não tinha mais do que 50 centímetros de altura e 30 cm de profundidade (dimensões impossíveis de comportar grandes quantidades de notas). Além disso, a investigação tem documentadas, com escutas telefónicas e vigilâncias policiais, 40 entregas de dinheiro vivo, de Carlos Santos Silva a Sócrates, totalizando cerca de um milhão de euros, entre julho de 2013 e novembro de 2014.
Ficou ainda por explicar, por exemplo, como é que, no período de transição do escudo para o euro, em 2001, a mãe conseguiu trocar tal quantidade de notas de escudos por euros, e no prazo em que era legalmente possível fazê-lo (numa qualquer instituição bancária, primeiro, e depois apenas no Banco de Portugal). Tudo isto sem fazer disparar os mecanismos legais em vigor de alerta de suspeitas de branqueamento de capitais
Além disso, o ex-primeiro-ministro também se contradisse ao tentar explicar por que razão só agora, depois de já ter sido submetido a três interrogatórios no processo da Operação Marquês, resolveu avançar com a teoria da herança da mãe – o que, tendo fundamento, até lhe poderia ter poupado os quase 11 meses de prisão preventiva que passou na cadeia de Évora. Explicou então ao juiz que só agora teria lido a acusação para ser mais «espontâneo» nas respostas a dar a Ivo Rosa. E aqui caiu em mais uma contradição: é que, logo a seguir à saída do libelo acusatório do Ministério Público, há cerca de dois anos, imputando-lhe a prática de 31 crimes, Sócrates procurou desmontar o documento numa série de vídeos que colocou no Youtube. Para além, naturalmente, de o procurador Rosário Teixeira e de o juiz de instrução na fase de inquérito, Carlos Alexandre, lhe terem exposto os factos e indícios criminais que havia sobre ele durante esses interrogatórios.
Mãe de Sócrates vivia com dificuldades
A chocar também frontalmente com esta ‘narrativa’ que José Sócrates quis passar a Ivo Rosa, pelo menos desde 2006 que a sua mãe, Maria Adelaide, vivia na sua total dependência. Segundo a acusação do MP, foi José Paulo Pinto de Sousa (primo do então primeiro-ministro e que o MP suspeita ter sido o seu primeiro barriga de aluguer, antes de Santos Silva) quem recebeu de Ricardo Salgado seis milhões de euros de contrapartidas propostas a José Sócrates para travar em 2007 a OPA da Sonae à PT, e que canalizou o dinheiro para fazer face às despesas de Maria Adelaide e de toda a família.
Esse dinheiro fora transferido para a Gunter Finance, uma das offshores de José Paulo, criadas por gestores do UBS que mais tarde cairiam nas malhas da investigação do processo Monte Branco, a maior rede de fuga ao fisco e branqueamento de capitais que operou em Portugal. E as únicas notas que realmente parece terem existido eram as que chegavam às mãos de Maria Adelaide através do circuito montado por essa rede suíça, que utilizava o cambista Francisco Canas (que ficou conhecido como ‘Zé das Medalhas’), com loja aberta na Rua do Ouro. Era aí que os clientes de Canas se deslocavam. Os mais cuidadosos mandavam alguém de confiança e, no caso da Gunter, o dinheiro era levantado por Aurélio Alves, um funcionário de uma empresa da família Pinto de Sousa e homem de confiança de José Paulo.